O Demônio Barista Brasileira

Autor(a): Helena Shirayuki


Volume 1

Capítulo 04: Intrometida, parte 1

Depois de muita insistência, Alex e Aspen me convenceram a ir no rolê que haviam marcado para hoje a noite. Particularmente não estava com boas expectativas, por mais que tivesse interesse em saber quem era a pessoa que gostaria de me ver.

Quando terminamos de almoçar, eu e o garoto voltamos para casa. Ele, diferente de mim, não parecia preocupado com nada; Liel não aparentava ter aversão a lugares movimentados e muito menos a conhecer novas pessoas.

Me preocupava um pouco onde isso vai parar. Estávamos no meio do caminho e me sentia constantemente vigiada pelo moleque. Qualquer pergunta que ele fizesse sobre o encontro de hoje ia me deixar maluca.

— Ei. Você parece estar muito nervosa. Algum problema? — Ele parou de olhar o seu celular enquanto caminhava, perguntando.

Foi só pensar no diabo que ele abriu a boca. Inferno!

— Ah, nenhum — menti. — Apenas queria ficar em casa mesmo. A última coisa que queria era ir pro shopping depois da semana cansativa.

Mesmo que não fosse a intenção, respondi de maneira espontânea. Ele aparentava algum tipo de preocupação.

— É sério? — indagou.

— Sim. Seríssimo.

— Foda-se.

Retiro o que disse. Ele não vai parar de agir desse jeito tão cedo; abaixe suas expectativas, senhorita Marcy. Não é como se ele fosse perceber alguma tentativa minha em socializar e iria deixar de ser um babaca. Isso faz jus ao que ele é.

— Hahaha! A cara que você fez foi hilária. — Gargalhou.

— Isso não teve graça, idiota. Você só foi escroto mesmo.

— Perdão, é que te ver irritada é divertido. É quase como uma terapia pra mim.

Ele ficou me incomodando durante todo o caminho até chegarmos no prédio. Quando parei em frente à porta do nosso apartamento, abri a mochila para pegar a chave, mas por alguma razão, não a encontrei onde geralmente a guardava. Onde que tá essa merda?

Procurei no meu estojo, no bolso dos lados e em todo e qualquer buraco que esses benditos pedacinhos de metal poderiam estar, mas quando escutei o barulhinho delas balançando…

— Está procurando por isso aqui?

Filha da puta. Quando olhei pro lado, o desgraçado estava com elas em mãos. Como que ele tinha pegado? Era outro truque de mágica dele? Agora que notei, seus chifres apareceram de novo, então claramente o moleque aprontou um. Tentei pegar a chave, mas ele logo escondeu o braço. Fiz uma segunda tentativa, mas ele se afastou. Minha paciência tava no limite por causa cansaço e esse corno ia terminar de torrar os meus culhões.

— Moleque, me devolve essa merda.

Ficamos nessa brincadeira de gato e rato por cinco minutos, esses que duraram uma eternidade. Fiquei tão exausta que não notei uma parte do piso solta. Após isso, a única coisa que me lembro foi de ir de cara no chão.

Pouco tempo depois, escutei um barulho de porta destrancando. Me virei pensando que era o Liel entrando no meu apartamento, mas logo dei de cara com um velhote que morava ao lado. A pergunta que não queria calar era: por que diabos tem um idoso aqui?! Vai me dizer que esse coroa tá fazendo algum dos cursos também? Faça me o favor!

Não que isso me importasse, pois nem teria a oportunidade de perguntar depois de todo o esporro que tomei. Perdi minutos da minha vida escutando um velho capenga me chamando de doida, sem vergonha e ainda falando que tenho que crescer e procurar algo pra fazer da vida. Ele me encontra caída igual merda no corredor e a primeira coisa que ele pensa é que sou uma adolescente rebelde.

Pois bem, depois que ele terminou esse esculacho e voltou para a caverna dele, me levantei do chão e fiquei olhando para os lados, caçando o moleque. Como ele sumiu repentinamente e não estava em lugar algum, imaginei que tivesse ido para o lado de dentro. Sendo assim, abri a porta do meu apartamento e voalá, lá estava o cretino. Quando cheguei na sala de estar, encontrei o engraçadinho estirado no sofá igual um gato de hotel.

— Você sabe que eu poderia ter sido expulsa por aquela gracinha, né? — afirmei com preguiça.

— Qualé! Não deu em nada no final. Tá reclamando de besta.

Liel não se importa mesmo. Ele continuou girando no sofá igual uma criança sem nada pra fazer. Pior do que isso era algumas de suas manias estranhas: ele mordia as próprias unhas o tempo todo e agora ficava correndo atrás do próprio rabo. Tenho minhas dúvidas se esse moleque é um demônio mesmo ou um gato, pois toda vez que os chifres dele aparecem, tenho a impressão de que ele ficava mais rabugento que o normal.

— Ei. Vou ir tirar um cochilo. Quando estiver faltando uma hora pro horário da gente sair, eu vou me ajeitar.

O capetinha não respondeu, apenas fazendo um joinha com o polegar. Antes que ir descansar, lavei meu rosto no banheiro para amenizar as olheiras de defunto e amarrei meu cabelo para não embaraçar. Após isso, marquei um despertador para as 18:00 e finalmente deitei e adormeci.

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Dring! Dring! Dring!

Toda vez que escuto esse maldito som, bate uma vontade de jogar o celular pela janela. Espero que eu não seja a única que tenha esses pensamentos intrusivos.

Uahh… — Bocejei. — Preguiça da porr-… Liel, que merda é essa?!

Após ter me sentado e me espreguiçando, olhei para o lado e a primeira coisa que vi foi o demônio de cabeça pra baixo me encarando. Ele se segurava na parte de cima da beliche, ficando pendurado igual aqueles macaquinhos de zoológico — não entendam isso como uma comparação racista.

— O que foi, garota? — Sua feição, antes neutra, agora era de raiva. — Não precisava berrar desse jeito nos meus ouvidos!

— Moleque, eu acabei de acordar e me deparei com você me olhando desse jeito. Cê esperava que tipo de reação?

Não tenho tempo para pensar no porquê dele ter feito isso; nós temos um compromisso. Assim que me levantei, fui direto para o armário procurar as roupas que vestiria para sair. Enquanto fazia isso, Liel ficou voando pelo quarto até se sentar em cima do guarda-roupa, olhando para baixo igual uma criança curiosa querendo saber o que estava fazendo.

— Você já se arrumou? — perguntei.

— Faz um tempinho. Ia ser um inferno ter que te esperar pra poder usar o banheiro e me trocar.

Não sou do tipo que gosta de me atrasar, então defini o horário para acordar tendo em mente o tempo necessário para nós dois. Felizmente, graças a ele, agora tinha tempo de sobra para lavar o meu cabelo, escolher o que iria vestir e ainda chegar com vinte minutos de antecedência. Que maravilha!

Depois de pegar um suéter preto e uma calça branca, fui direto pro chuveiro. Pouco tempo depois, já vestida, saí do banheiro com a toalha ao redor do pescoço e fui calçar meu tênis. Quando finalmente terminei de me aprontar, eu e o demônio saímos do apartamento e fomos pra o lado de fora. Após descermos as escadas e passarmos pela portaria, sem que nós soubéssemos, Alex e Aspen estavam nos esperando.

— Ué, vocês aqui? Não me lembro de ter ligado ou pedido para virem aqui. O que aconteceu?

— Tá faltando quinze minutos. Esqueceu que sempre que saímos, a gente te busca? — perguntou o careca.

— Não preciso que cuidem de mim o tempo todo, caras. Enfim, vamos logo ou iremos nos atrasar.

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Após uma longa caminhada, finalmente chegamos no shopping. Já tinha me arrependido da escolha de vir para cá a muito tempo, ainda mais quando notei a multidão que circundava o local. Era uma noite de sábado, não tinha como ser diferente disso.

O local estava lotado, então tivemos que marcar um local para nos encontrarmos. Escolhemos a praça de alimentação, pois era onde poderíamos comer e ficarmos sentados sem nos preocupar tanto com o amontoado de gente. Quando nos aproximamos, antes mesmos que pudesse ter ideia de onde o grupo estava, a única coisa que escutei foi alguém chamando pelo meu nome em meio àquela zoada ensurdecedora.

— Marcy!

Ao olhar pro lado, uma jovem moça do belo cabelo cacheado me abraçou. Demorei pra reconhecer quem era, mas o cheiro do perfume doce me trouxe memórias quase que instantaneamente.

— Hahaha! Oi, Cassidy. Quanto tempo! — Retribui o abraço, sorrindo.

— Estava com saudades!

Logo atrás dela, vieram outras duas pessoas, respectivamente, Spencer e Leon. Esses três faziam parte do meu antigo grupinho da escola; foram as únicas pessoas, excluindo meus dois outros amigos, que não terminei o ensino médio com algum tipo de rixa. Eles são incríveis.

Yo. Fala tu, grandona. — Spencer estendeu o punho.

— Já te falei que esse não é o meu nome, emozinho.

Depois de cumprimentar todo mundo, fomos até uma das mesas disponíveis em meio àquele grande salão e nos sentamos. Quando pegamos o cardápio, já fomos escolher o que iríamos pedir. Sem muitas discussões, o grupo inteiro preferiu pizza, mas a questão que ainda pairava sobre nós era: quais seriam os sabores?

Imagine o caos. Spencer, Leon e Cassidy começaram uma briga fodida entre time calabresa, mussarela e catupiry. De início, foram apenas eles três berrando um com o outro e dizendo que sabor X era melhor do que tipo Y, mas logo Aspen se intrometeu e virou uma guerra.

Felizmente, loirinho não estava com a mesma paciência de mais cedo; por sorte, ele deu um basta naquela infantilidade e pediu duas pizzas grandes com 4 sabores (duas para cada). Dessa forma, todo mundo iria saborear o que mais gostasse e, de quebra, ainda poderiam levar as fatias restantes pra casa. Nunca que esse grupo vai aguentar comer tudo que vai vir.

— Vocês não mudaram mesmo, né? Continuam brigando por tudo — comentei.

— Disse a maior arrumadora de confusão da escola — retrucou o emo. — Toda semana tu parava na coordenação por um motivo diferente.

— Não me lembre dos meus tempos sombrios, Spencer. Não sou mais como antigamente.

— Se eu contasse… — Liel falou de canto.

Quando o demônio abriu a boca, todos os olhares foram direcionados para ele. O que ele iria contar? Não tinha nem um dia que estava com esse moleque; era impossível ele confirmar qualquer uma das falas do pessoal na mesa ou agregar algo que me fizesse virar piada.

Bem, pensei que não. Durante os minutos seguintes, assisti o maior show de mentiras que alguém poderia contar. Foi uma desgraça. O moleque só precisava falar uma coisinha sobre mim que, na sequência, os outros  colaboravam contando minha vida quase inteira pro demônio. Fique me mordendo por dentro durante toda a conversa.

— Liel, Liel! Tenho outra pra ti — Spencer afirmou.

— Conta! Conta!

— Teve uma época, isso lá no início do terceiro ano, que uma aluna nova tinha entrado na nossa sala, tá ligado? Ela não tinha feito amizade com ninguém durante as primeiras semanas, mas a Marcy pegou e puxou ela pro nosso grupo. E advinha o motivo?

O garoto esbugalhou os olhos, em curiosidade. Esperou que o colega desse a resposta.

— A Marcy tinha ficado caidinha por ela logo no primeiro dia.

— Ela já se apaixonou? — Liel ficou surpreso. — É sério?!

— Seríssimo. E te conto mais: era o tipo de pessoa que você menos esperaria que ela fosse gostar. Tinha um cabelo azul escuro natural que chamava a atenção de qualquer um, sem contar que era fissurada em rock. Inclusive, ela fez parte da nossa banda na época. A Rosenheim que a ensinou a tocar guitarra.

Cabelo azul natural? Não me recordo o momento que vi alguém que batia com essa descrição, por mais familiar que fosse. E sobre a parte de ser uma guitarrista, me lembro claramente de já ter tocado muito bem, mas não sei por qual razão eu parei. Se eles foram mesmo da minha banda, poderiam me lembrar.

Estou faminta. Não entender sobre o que eles estão falando está me deixando entediada e com vontade de comer. Talvez seja melhor observar o ambiente em volta pra ver se o tempo passa mais rápido.

Tem bastante gente hoje. Crianças, adolescentes, adultos; todo tipo que se poderia imaginar. O letreiro da hamburgueria mais ao lado me fazia babar ao lembrar daquelas batatas fritas, bem como o sabor da carne processada. Por mais danoso que fosse ao corpo, ainda era gostoso. Era uma das únicas besteiras que gostava de comer quando saia e…

— Marcy? Marcy?

Senti uma mão pesar sobre meu ombro. Quando virei o rosto, Aspen estava me chamando.

— Acorda, mulher. A pizza chegou.

Não notei o tanto que minha mente havia ido longe. Quando tempo se passou? A quanto tempo fiquei presa na minha cabeça? Quando que eu…

Urgh… Tá, eu não ligo. Que se foda. Já tenho acumulado estresse o suficiente por hoje. É melhor aproveitar minha deliciosa comida e depois eu penso nisso.

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Depois que todos comeram, boa parte dos patetas — especialmente Spencer, Cassidy, Leon e Aspen — estavam passando mal de tão cheios. Quase todos haviam comido três fatias, com exceção de mim, do Alex e do Liel.

— Meu senhor, eu tô passando mal. — O barbudo estava com a cabeça deitada por cima da mesa.

— Já te falei pra você parar de exagerar, amor! — disse o loirinho.

Ainda faltava dividir a conta. Apenas estávamos esperando toda a galera dar sinal de vida para fazermos isso. Não é como se eles fossem capazes de se comunicar desmaiados.

Enquanto a gente boiava, Liel se levantou, limpando sua boca com um lenço enquanto dizia:

— Podem ir dividindo os valores. Eu vou no banheiro e pago minha parte quando voltar.

E enfim, ele saiu. Não tinha como os outros fazerem a divisão, então fiz o favor de pedir a conta e calcular quanto cada um pagaria; já estou tão habituada com esse tipo de palhaçada que nem me importo mais. Enquanto ficava fuçando a calculadora, senti alguém dar uma cutucada em meu ombro. Quando me virei, percebi que Alex havia se sentado ao meu lado.

— Ei, Marcy. Aproveitando que essa galera não está ouvindo, poderia te perguntar uma coisa?

— Hm? Sim. Diz aí.

— Desde que chegamos, tu parece meio dispersa. Sei lá, é como se você não sentisse vontade de participar da conversa. Isso foi por que eles falaram da…

— Não sei de quem você está falando.

Ele recuou quando o interrompi. Seus olhos pareciam tensos e esboçavam um claro receio.

— Sendo sincera — continuei, — odeio quando vocês citam pessoas que eu nem conheço, ainda mais quando dizem que ela tem alguma relação comigo ou baboseiras desse tipo. É como se eu fosse a única a não entender a língua de vocês.

Alexander parecia querer falar alguma coisa, mas sempre que sua voz ia sair, ele parava. Claramente o loiro estava relutante.

Após nossa conversa, ficamos em silêncio. O tempo começou a passar e quase todos na mesa já estavam “conscientes”. Já tinham se passado 20 minutos e nada do Liel retornar. Comecei a sentir um frio na barriga; não sei o porquê, mas tinha um mau pressentimento. Por isso, decidi ir atrás dele e avisei a todos que estavam aqui que iria procurar por ele.

Depois de me levantar, segui pelos corredores. Por sorte, apenas havia um banheiro na direção que ele havia ido, então não seria difícil de achá-lo. Foi do jeito que pensei: em poucos minutos, em meio à multidão, o encontrei. Só que, diferente do que eu esperava, o garoto não estava sozinho; havia uma outra presença muito familiar. O cabelo curtinho, o piercing na lateral da boca… Ah, merda! Eu tenho que correr. Isso não é um bom sinal.



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