O Demônio Barista Brasileira

Autor(a): Helena Shirayuki


Volume 1

Capítulo 02: Colega de quarto

Quando voltei pelo quarto e fui encurralada por aquele vulto estranho, percebi aquele ser de chifres vermelhos e orelhas pontudas me observando enquanto se segurava no vão entre o teto e a parede.

— Mas que merda é essa?!

Minha respiração estava densa e pesada, assim como minha mente vivenciada um turbilhão de informações que me paralisavam diante do iminente perigo. O que eu estava vendo? Estava alucinando com alguma coisa que nunca vi antes, ou isso ainda era a realidade? Por instinto, minhas pernas se moveram. Corri em direção à porta do quarto e, mesmo com a sensação de um nó na garganta, tentei gritar por ajuda.

— Socorro…

Mas antes que minha voz saísse, a criatura — se é que posso chamá-la assim — se agarrou em mim e colocou a mão sobre a parte inferior do meu rosto, me arrastando com seu peso pelo quarto e me impedindo de gritar.

Meu fôlego, que já estava escasso, agora era quase inexistente. Estava sendo estrangulada com toda força do mundo e não conseguia me livrar desse peso em minhas costas. Tudo estava escurecendo; conseguia sentir meu corpo me abandonando aos poucos conforme um cronômetro mental contava os segundos para o desmaio.

— Não… consigo… respirar…

Só que, de repente, fui jogada contra o azulejo do chão. Pensei ter morrido, mas senti a minha garganta arder em meio a uma tosse violenta, assim como minha visão desembaçar. É, para a minha felicidade, eu ainda estava viva.

Rastejando pelo chão, alcancei o móvel mais próximo e me encostei. Numa pequena brisa quente que invadiu a janela, as cortinas deram espaço para a luz do Sol adentrar mais a fundo no quarto, e logo fui capaz de ver a verdadeira identidade daquele que se escondia na penumbra.

— L… Liel?

Ele estava sentado no chão, com as pernas em forma de lótus. O garoto mordia as unhas afiadas de suas mãos com feição raivosa.

Gr… Era só o que me faltava — resmungou. — Você podia ser menos incompetente e não ter aparecido, sabia?

— Como é? — indaguei em meio a outra tosse, incrédula. — Você é doente, moleque? Depois de tu quase ter me matado, essa é a primeira coisa que você fala?

Liel definitivamente não entendia a gravidade da situação. O moleque quase me estrangulou e ainda fui culpada por isso. Já estava ciente que ele tinha um parafuso a menos, mas não ao ponto de ser um completo babaca.

— E o que são essas…? — Estava me referindo às suas características físicas.

— Não é óbvio?

— Não.

Ele suspirou e logo esboçou decepção em seu olhar.

— Eu sou um demônio, mulher. Eu tenho chifres, orelhinhas pontudas, presinhas e por aí vai. — Ele apontava para cada parte do seu corpo na medida que falava. — Não tava meio “na cara”?

— Assim, acho que se eu soubesse o que era um demônio, não teria reagido daquela forma.

— Não entendi. — Ele cruzou os braços e inclinou a cabeça pro lado.

— Moleque. Você esperava que fossem jogar um tapete vermelho pra você e dizer “boas vindas, capeta”? Ninguém espera encontrar a porra de um chifrudo pendurado na sua parede.

Não tive resposta. Ao invés disso, fui recebida com um chutão que me fez voltar a abraçar o solo. Que capetinha agressivo, em?.

— Eu já te falei! — berrou. — Eu sou um demônio! Um de-mô-nio! E não fala assim dos meus chifres!

— Já entendi, caralho. Você não precisa repetir o que você é, inferno.

A essa altura do campeonato já nem tentava entender o que estava acontecendo. A pessoa que tive a pior primeira impressão é o meu novo colega de quarto e, pra piorar, é uma criatura mitológica de outro mundo. Era tudo o que eu precisava para sair da mesmice da minha vida patética: um garoto gentil como um jumento e com o temperamento do satanás. Nossa, estou muito feliz — só que não.

O que eu deveria fazer numa situação como essas? Não sei. Ninguém acreditaria na história de um demônio de apartamento mesmo. A única forma de pedir ajuda seria criando uma situação fictícia, pois esse moleque não deixa de ser um pé no saco independentemente de qual fosse a origem dele.

Nessas situações, apenas há uma pessoa na qual poderia recorrer: Aspen. Sempre que me metia em furada com gente louca, quem sempre me tirava da enrascada era ele. O tanto de cabelo que esse homem tem é inversamente proporcional à sua paciência e inteligência, não é atoa que fico abismada com o tanto de conhecimento desse cara. Ele respira e o cérebro expande.

Mas tá. Antes de qualquer coisa, preciso sair do chão; planejar tudo isso sem nem ser capaz de ficar de pé é furada. Poderia pedir ajuda para o demônio, mas tava meio óbvio que ele iria recusar.

— Aê, tampinha. Me ajuda a me levantar aqui?

— Não.

Dito e feito. Minha única opção seria continuar deitada no chão até minhas pernas decidirem funcionar. Fiquei lá por bastante tempo até conseguir me levantar de novo, mas quando o fiz, pude finalmente cumprir os meus planos matutinos.

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Era por volta das 10:30. Nunca tinha visto uma cafeteria tão lotada como hoje. Era até difícil mensurar de onde vinha toda essa gente, porque tinha desde engravatados muito bem vestidos até idosos e estudantes de todas as faixa-etárias imagináveis. Parecia que o mundo inteiro tava numa seca pra beber café.

E lá estava eu: perto do balcão de mármore esperando um dos funcionários chamar o meu amigo. Como estava tudo cheio, demoraria até que Aspen tivesse um tempinho livre sequer para conversar. Era ele quem ficava na cozinha, então o coitado trabalhava igual condenado nessas situações.

Para minha sorte, logo vi outro barista chegando — como o conheço, sabia que também trabalhava na cozinha. Em cerca de 5 minutos, o calvão deu as caras em frente ao caixa com um odor forte de presunto e queijo impregnado no seu uniforme. Tava quase gorfando tudo que tinha comido mais cedo.

— Marcy. Você aqui essa hora da manhã? — Franziu as sobrancelhas. — No que posso ajudá-la?

— Você me conhece muito bem. Se eu apareci aqui fora do meu horário convencional, não é para pedir café.

Ele coçou a lateral de seu rosto, como se tentasse lembrar o que isso significava.

— Ah, entendi. Você quer bater um papo sobre alguma coisa que está acontecendo, certo?

— Exatamente.

— Tudo bem. Senta em alguma mesa e logo vou até você.

— Certo. E por favor, limpa esse avental pois ele está cheirando a carniça.

Fiz o que ele havia pedido e fiquei esperando. Pouco tempo depois, como prometido, ele veio, mas estava acompanhado de uma presença inusitada e familiar.

Hey, hey, lady!

Uf… Oi, Alex.

Esse é Alexander, namorado do Aspen. Diferente do careca, só fui conhecer ele no terceiro ano do ensino médio. Ele sempre foi muito popular com as garotas e de boa condição financeira, não é atoa que todos achavam que ele tinha uma namorada. Felizmente, todas as expectativas foram frustradas quando ele disse que gostava de homens.

— Poxa, garota. Seja mais amigável. Faz muito tempo desde que a gente se viu, não é? — Ele sorriu, se sentando na cadeira ao meu lado e cruzando as pernas.

— Realmente. Mas hoje o meu papo é com o seu namoradinho.

— Sim, eu sei. Ele me chamou para poder auxiliar caso seja necessário. Se preferir, apenas finja que não estou aqui.

Como um estudante de psicologia, é muito comum ele agir assim para poder observar e entender melhor as pessoas, ainda mais aquelas com certas particularidades como a minha. As vezes ele é bem invasivo também, mas ninguém consegue dispensá-lo e ele sempre se mostra um amigo muito valioso e querido. Devo muita coisa a ele, por mais que eu não consiga retribuir.

Como tópico não era uma parada tão pessoal, acabei por deixar o incômodo de lado e relatei toda a situação. Parte do que contei realmente tinha acontecido, como a situação da cafeteria e a grosseira de quando Liel chegou no dormitório; mas o restante, tive que contar tantas mentiras que Judas acharia um oponente à altura.

— Espera, o Liel? — Alex arregalou os olhos. — Aspen, acho que você não ficou sabendo, né?

— Sobre?

Tanto eu quanto o barbudo nos inclinamos em nossas cadeiras, curiosos. O loirinho parecia tenso e preocupado. Inclusive, até pensei que ele tiraria sarro da situação, que é uma coisa bem comum, mas ele estava mais sério do que o normal.

Em resumo, o que ele contou foi que rolavam certos boatos a respeito do Liel pela cafeteria sobre a personalidade dele. Alguns diziam que havia dias que ele apenas ficava com cara de mal humorado; mas em outras ocasiões, ele era tão agressivo que já chegou a agredir outro funcionário. Havia especulações sobre ele ter algum problema, mas a situação ficou tão feia que consideraram até citar o nome dele como um tipo de “mau presságio”.

— Nossa, esse garoto é maluco. — Aspen colocou a mão sobre o rosto, sentindo que fez burrada. — Agora que você falou, percebi que certos empregados sempre evitavam trabalhar com ele no mesmo ambiente. Devia ter prestado mais atenção. Peço perdão por ontem, Marcy.

— Tá tudo bem, não esquenta — respondi. — Você tinha seus motivos para pensar daquele jeito e tá tudo bem. O ponto agora é o que devemos fazer a respeito dessa situação.

Alex colocou a mão por baixo do queixo e se apoiou na mesa, pensando por um bom tempo antes de falar algo.

— Olha, sem sombra de dúvidas, a melhor alternativa seria você se mudar, pois considerando tudo que escutei dele ontem e hoje, tenho medo do que ele seria capaz entre quatro paredes.

Tanto eu quanto Aspen concordamos com a afirmação. O loiro continuou falando após isso.

— Só que o problema é que, até você encontrar algum quarto vago em outro dormitório, iria levar um tempão. Ou seja, você só conseguiria se mudar daqui a um ou dois meses, isso se desse sorte de algum aluno sair durante esse período.

Ele tem razão. A nossa universidade é uma das que mais oferece bolsas e descontos em matrículas, então é sempre um sufoco mudar de quarto, quem dirá de prédio. Não me livraria do moleque tão cedo.

— Tá, se isso está fora de questão, o que você sugere? — perguntei.

— Olha, eu tenho uma ideia louca, mas já aviso que você vai odiar.

— Desembucha. Não temos tempo pra isso.

Ele respirou fundo antes de falar.

— Você vai ser obrigada a conviver com ele de qualquer jeito, então minha sugestão seria tentar ficar amiga dele e…

— Já tentei.

— Deixa eu terminar de falar. — O loiro me encarou. — Sim, eu sei que você já tentou isso, mas o ponto é que ele é um cara difícil, ou seja, pra ele parar de ser esse filhote de satanás, você tem que ir no joguinho dele pra pelo menos aliviar sua barra até chegar a sua mudança.

Grunhi em sofrimento e deitei minha cabeça sobre a mesa. Já não aguentava passar dois minutos com ele, quem dirá dar bola pras coisas que ele faz. Não tinha muita escolha, então apenas podia me preparar para torrar os poucos culhões restantes na minha cabeça.

Sigh… Tá, eu vou tentar.

Alexander sorriu por um momento. Não entendi a razão, mas até que não era tão desconfortável. Após chegar a essa conclusão, me despedi dos dois e saí da cafeteria, seguindo pelas ruas movimentadas até o mercadinho próximo para fazer as compras da semana. 

Ao chegar lá, fui passando pelos corredores de produtos pensando no que compraria. Eu não precisava de muitas coisas, mas estava pensando em levar um pouco mais do que o habitual para caso o pestinha quisesse comer. Não tenho a obrigação de fazer isso, mas nunca se sabe — ainda mais agora que vou ter que aturar o drama dele.

Comprei mais do básico e torci pelo melhor. Não sabia se ele tinha alguma restrição alimentar, apesar de que seria engraçado ele ser vegetariano logo quando trouxe bastante coisa feita de carne ou de origem animal.

Depois de uns vinte minutos, pude finalmente respirar o ar livre e voltar para o apartamento. Assim que passei portaria e subi as escadas, parei em frente à porta de madeira do meu número, com receio.

Fica tranquila. Não exploda e não perca a cabeça. Segue o jogo — sussurrei para mim mesma.

Suspirei uma última vez, girei a chave e entrei. No momento que passei pelo corredor estreito da entrada, notei a sala de estar vazia. Não escutava som algum no ambiente, assim como tudo parecia bem arrumado: as almofadas do sofá estavam enfileiradas, o tapete estava centralizado no cômodo e as sacolas de lixo que fiquei de botar pra fora não estavam mais aqui. Ele fez tudo isso ou era coisa da minha cabeça?

— Liel?

Depois de colocar as sacolas em cima da mesa, fui em direção ao quarto, pois era o único local que ainda não tinha procurado pelo moleque. Antes mesmo de me aproximar, escutei um barulho de batida que não parava. Era como se alguém estivesse abrindo e fechando a porta do armário constantemente, talvez tirando e colocando coisas lá. Não dava pra saber.

Que merda é essa?

Quando abri a porta, uma camisa voou sobre meu rosto. Depois de tirá-la, percebi que haviam inúmeras coisas minhas — que estavam dentro do guarda-roupa — girando e voando pelo cômodo. Parecia que tudo estava possuído; havia uma aura vermelha ao redor de cada objeto que ia pra lá e pra cá como se alguém estivesse controlando.

E realmente era o que pensava. Quando olhei pro lado, lá estava o pestinha no canto do quarto fazendo movimentos com as mãos. Sempre que um dedo dele levantava e abaixava, a porta do armário abria e uma das peças de roupas magicamente se dobrava e era guardada no lugar. Era coisa de doido.

— Isso é… outra macumba sua? — perguntei, coçando os olhos para ter certeza de que não estava vendo coisas.

— Algum problema com isso? — Ele estava sentado no chão e me encarava com o mesmo olhar monótono de antes.

— Não exatamente. Só quero saber o que cê tá fazendo com as coisas do meu armário e por que as minhas coisas estão voando.

— “Meu” é uma palavra muito forte. Estou apenas arrumando um pouco da sua bagunça para que fique mais fácil de arranjar meu próprio espaço do guarda-roupa. Teremos que dividir, de qualquer forma.

Ele tinha razão. No armário havia duas portas, mas desde que meu último colega saiu, comecei a usar as duas para ficar mais fácil a organização. Seria um inferno ter que ajeitar toda essa tranqueira de novo.

Uf… Olha, poderia ter me pedido para arrumar pra você. Não é sua obrigação ficar ajeitando minha bagunça, sabe?

— Se você fosse menos incompetente, não estaria fazendo isso. Mas assim, já que você quer tanto.

Esse é o momento que eu deveria ter calado a minha boca. Após a sua fala, Liel bateu palmas, o que fez todo aquele amontoado de roupas pararem de brilhar e caírem no chão. Por sorte, nenhum objeto quebradiço que tinha guardado estava do lado de fora, mas isso não mudou a babaquice dele. Com certeza não foi a primeira e nem será a última vez que vou ter que lidar com essas filha da putagem dele.

Enquanto tentava arrumar tudo de novo, o garoto se levantou e limpou a palma das mãos, depois as colocando em seu bolso e indo em direção à porta do quarto. Ao passar por ela, ele se virou, me encarando novamente com desprezo.

— E aí? Você vai me levar pra almoçar ou vai passar o dia inteiro dobrando camisas?



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