Volume 1 – Arco 1
Capítulo 5: O que te define
— O que quer dizer com isso, Heinrich? — Vaia sentia a preocupação na voz do capitão, era como uma farpa em sua nuca que não saía e nitidamente perturbava-o.
— É que vocês foram os únicos que compraram passagens de ida e volta, os outros passageiros eram colonos ou familiares dos cidadãos daqui.
Heinrich se virou para a rua principal de Fajilla — uma grande avenida de ladrilhos que desce até a baía — e chamou os jovens com um sinal de mão, pedindo para que o sigam.
— Cálix, não precisa vir. Vou apenas pegar a bagagem de seus colegas. Fique aí com Talyra. — disse Heinrich sem nem olhar para o rosto do jovem.
— Fiquem com a bebê. Onde podemos nos encontrar depois? — perguntou Lâmina
— Olha, eu queria andar um pouco pela cidade!
— Você parece bem entusiasmada pra explorar a ilha, Talyra…
— Relaxem, deixa que eu cuido dela e da bebê. — respondeu Cálix após arrumar seu cabelo e fazer um joia com a mão.
— Vocês dois! — Heinrich chamou, olhando fixamente para o céu azul — Vamos logo, não podemos perder tempo.
Um senso de familiaridade indesejada penetrava a mente de Heinrich. Bem longe, no céu, alguns pedaços de papel caíam, e o capitão os reconhecia bem.
Logo após se dividirem de Lâmina e Vaia, Cálix e Talyra planejavam passar pela feira de Fajilla. Apesar de ser uma localidade distante e considerada “inóspita”, os colonos de Arquoia pareciam ter povoado bem a ilha, os mercados e praças eram vivos, diversas famílias andavam e conversavam.
Os jovens atraíam muita atenção, entretanto. Pessoas que passavam acabavam por dar uma bisbilhotada sem perder o ritmo do passo, demonstrando estranheza, mas nenhuma ameaça.
Quanto mais se aproximavam do centro, mais era possível ver lojas e estabelecimentos pintados das mais diversas cores, vendedores de vidro e peixes exóticos — produtos comuns que Cálix já havia visto na ontem — mas agora sob a luz da manhã. O centro de Fajilla torna-se um lugar belo. A ignorância deles os cegava; pensavam que esta ilha era apenas o fim do mundo. No entanto, ao observarem aquele espetáculo de cores e luzes, sentiam o desejo de permanecer lá para sempre.
Pessoas alegres, vendedores cumprimentavam-se, crianças saltavam e brincavam na neve, enquanto uma equipe de músicos foi ao palco central da praça e começou a tocar uma melodia alegre, com instrumentos rústicos e medievais, uma visão completamente estranha para Cálix e Talyra, que viveram as suas vidas até agora em lugares distópicos em comparação com este.
— “Apenas uma ilha”, sei…
— Veja a positividade desse lugar! Eu quase me sinto, onipotente… — Cálix cruzou os braços, olhando para a paisagem do centro com um semblante determinado.
Talyra abre o livro de seu pai, indo para páginas em branco, ela começa a escrever ávidamente com uma pena que estava junta ao grimório.
— Olha! Não é só música, parece que serão várias atrações para o dia. Vejamos… poesia… show de talentos? Uau, quem diria que esse lugar teria tanta cultura…
— O que disse, Cálix? Eu não ouvi. — Talyra fechou o grimório, retornando para a realidade.
— Um show de talentos! Vamos lá, Talyra, o que uma maga não tem de talentos?
— Não inventa. Somos forasteiros, esse povo não quer saber de nós fazendo farra na cidade, viu como eles nos olharam? — A maga enrolou os dedos no cabelo, nervosa.
— Tem razão, acho que rosa não é a melhor cor para pintar o cabelo… M-Mas e daí?! Por que não se inscrever? Não pode ser tão ruim assim. — Cálix apontou para uma pequena barraca que indicava um local para as inscrições dos eventos.
A praça se enchia cada vez mais de pessoas, agora com tantas que a presença dos dois jovens não era mais destaque.
— Se não quer fazer por mim… faz por ela, vai. A viagem será longa, não seria legal a bebê te ver brilhando pelo menos uma vez? — O jovem levantou a criança, que estende os braços, tentando alcançar o rosto da maga.
Talyra olhara para aqueles olhinhos vermelhos com cada vez mais intensidade, mas ela não conseguia.
Talvez se ela apenas mostrasse um truque básico do livro de seu pai… algo como um chafariz de água que faz um arco-íris; soltar um buquê de flores pela varinha, ou fingir que sopra fogo.
Nada disso funcionaria, que graça teria? Observar uma maga tendo que usar um livro para fazer truques. Isso não era inovador ou brilhante, apenas genérico e sem-sal… Talyra pensa na possibilidade de usar aquilo… não, ninguém se importaria.
A maga pensa mais um pouco na bebê, até que seu fluxo é interrompido por Cálix.
— Alô? Terra para Talyra.
— Hein? Cálix… olha, eu sei que você tá tentando ajudar, mas… eu não consigo. Quer dizer… eu não quero, tá?
— Ah não! — O menino ergueu a sobrancelha com um sorriso contagiante — Logo quando eu já fiz sua inscrição?
— Você fez o quê?! — Talyra entra em um choque de ansiedade desenfreado, ela agarra Cálix pelos ombros e começou a balançá-lo. — Eu não estava pronta ainda!!
Cálix perdeu um pouco do embalo da felicidade o ver comoção desnecessária da maga, ele olhou para a bebê, que já não parece mais tão feliz.
— Isso não faz sentido, você é uma maga! Cheia de truques, especialista no controle da Aura, como eles dizem.
— “Eles” quem, Cálix?! Hein?! Me diz quem?! — Talyra explodiu em gritos com o jovem — Sabe o que eles dizem? Que eu sou uma fracassada. Uma menininha mimada com o “livrinho do papai” que nem sabe usar a própria magia!
A bebê se virou para o rosto do menino que a segurava, estava calmo, mas sério. Cálix sabia que não conseguiria conversar com Talyra enquanto ela estivesse estressada pelo que ele fez.
O jovem levantou a palma da mão e olhou de forma concentrada para a maga, o fraco som de “s” saía de seus lábios. A bebê parece impressionada, era como se Cálix usasse alguma forma de misticismo, talvez aquela pertencente aos Clérigos…
Pá!
— Se acalma, garota! Eu não gosto de quando as pessoas gritam assim…
Talyra ainda estava com a cabeça virada e a bochecha vermelha, perplexa com a atitude do colega. Contudo, ela realmente se sentia mais calma, e um pouco envergonhada do alvoroço que estava fazendo. Suas preocupações desmoronam quando ela volta o olhar para Cálix.
Seu chapéu caía lentamente no chão. Sob a luz dos três sóis, seus sedosos cabelos pretos acompanhavam os ventos, como se cada fio individual trouxesse um fragmento do juízo que ela perdeu.
Cálix pegou o chapéu de bruxa e abanou um pouco para tirar a sujeira, colocando-o na cabeça da menina. Ele a envolveu com o braço desocupado e guiou-a até um banco vazio.
— Vou te conta algo que aprendi: “Todas as frustrações vão embora quando se as compartilha com alguém”. — Cálix continuou — Por que não toma esse show como um aprendizado? Libere sua tensão em algo fabuloso!
— Você só tá sendo legal comigo porque somos companheiros de missão agora.
— Não sabemos, isso pode tudo ser uma grande coincidência… mas é sério: Vai lá naquele palco, mostra pra essas pessoas do que você é capaz!
A bebê não sentia nada nos movimentos de Cálix, não conseguia detectar Aura, mas tinha certeza de que aquilo era um ato genuíno de empatia. Ela começa a rir enquanto tenta abraçar os dois.
Talyra não consegue se sentir mais nervosa com aquela pequenina sorrindo alegremente para ela. A maga respirou fundo, olhou para o grimório do pai com afeto, mas decidida. Ela fechou o compartimento da cintura que guardava o livro e sacou sua varinha:
— Tá bom, clérigo… Mas se der tudo errado, eu vou congelar seu cabelinho rosa para sempre.
— Essa é a melhor parte: nada vai dar errado! Haha!
Após um momento de comentários e piadas sobre o show que estava prestes a começar, Cálix disse que iria pegar uns espetinhos de “seja lá o que eles vendem aqui” e se retira do banco com a bebê, deixando Talyra a sós com seus pensamentos de novo.
“Escolha a magia que te define!”
“Tem certeza de que não é muito abstrato, Lily? Por que não combina com outra magia? Algo descolado como as sombras! Você tem esse estilo, filhinha…”
— Pai… como você era bobo… — A maga soltou uma leve risada olhando para as nuvens.
As folhas das árvores caíam naquele ambiente frio completando ainda mais a imagem daquela praça vívida. Num momento de lembrança e otimismo, Talyra fecha o punho no ar, prometendo que vai dominar sua magia.
A desculpa de comprar comida parece ter sido bem-sucedida, agora, Cálix poderia observar mais de perto a figura que viu no meio da multidão, duas características que batiam precisamente com a descrição fornecida por Vaia: alta e usando um manto preto, além das curvas das roupas, deixando claro que se tratava de uma mulher.
Ela estava de costas, inspecionando uma maçã em uma das barracas da feira. Cálix sentia seu olhar penetrante de longe, uma presença que Talyra não conseguira identificar por estar confusa e irritada.
Mas apesar de ser bobo e descontraído, Cálix era perspicaz e nunca deixou de procurar pela possível ameaça que rondava a ilha.
Seria burrice procurar briga em um lugar público, por conta disso, Cálix decide puxar uma conversa casual, se aproximando dela pela lateral, em outra barraca:
— Também é estrangeira, né?
— Idem — Ela tinha uma voz suave, mas potente, como se pudesse ordenar para que Cálix desse meia-volta naquele exato momento.
— O lugar é agradável, não concorda? É quase como se as únicas ameaças fossem os monstros fora das muralhas.
— Realmente, o Abismo Revolto não é um lugar seguro. — a mulher cheirou a maçã, deixando-a bem próxima do rosto
— Não mesmo, especialmente para bebês como esta fofinha aqui — Cálix ajeitou a criança em seus braços, sem tirar o olhar da moça.
…
— E ainda mais… para quem tenta feri-las
Quando Jasmyne estava prestes a se virar, um projétil rápido corta o vento e o rosto da moça, se fincando na maçã. A Xamã passa a mão no corte, sentindo um ardor pelo frio.
Ao olhar para a fruta, ela confirma suas preocupações: era aquele caco.
Que cortou sua perna no vilarejo.
Que ela deixou para trás.
Ainda manchado de um sangue seco e escuro como sua alma.
Jasmyne não demonstrou nervosismo. Apenas refletiu, em como a única vez em que descuidou o profissionalismo, ela havia sido rastreada. Em menos de um dia.
— Não havia razão para matar todas aquelas pessoas. A não ser que quisesse a bebê… por que não a levou?
— Você tem muita coragem de aparecer aqui e fazer perguntas… você sequer tem a noção de quem eu sou? — Jasmyne firma sua voz, deixando algumas moedas no balcão pela maçã.
— Uma assassina.
A resposta provocativa de Cálix foi certeira, quando a Aura roxa começava a emanar do punho de Jasmyne.
Cálix piscou, e num instante, a mulher desaparece na multidão.
Ainda segurando a bebê, ele suspira em frustração — a ameaça não estava mais ali. Mas continuava na ilha
Uma voz ecoou da praça:
— Para a nossa próxima apresentação do show de talentos de Fajilla, temos uma forasteira que veio a turismo: A incrível maga, Lily!
Talyra agora sentia uma vergonha imensa, já não bastava ser chamada para o palco contra sua vontade, agora Cálix colocara um apelido nela, no qual apenas seu pai conhecia.
A maga arruma sua jaqueta e seu chapéu, preparando o colete de lã e a gola de sua camisa polo, ela adentra da multidão com uma cara fechada. Parecia que ela precisava ir ao banheiro, mas Talyra força seu espírito para ignorar os olhares e se colocar diante de dezenas de pessoas em plena luz do dia.
Cálix se vira para notar que Jasmyne havia desaparecido entre as pessoas. Ele poderia encontrar ela caso quisesse, mas decidiu ignorar o assunto por agora e ir ver a apresentação da amiga.
A palidez e tensão de Talyra faziam seus dedos tremerem. Ela mal conseguia firmar a varinha. Cada par de olhos sobre ela era uma adaga invisível.
A varinha escorregou uma vez, quase caiu.
Mas então ela olhou ao fundo da multidão. Cálix ergueu a bebê — com os bracinhos esticados — como se dissesse: “Ela acredita em você”.
Ela se lembrou das palavras do seu pai:
“Os magos são mais fortes quando usam as magias que eles próprios escolhem, você é ótima, minha Esmeralda, a melhor de toda a escola!”
E dos conselhos de Cálix:
“Libere sua tensão em algo fabuloso!”
Talyra respira ao ar fresco da manhã, e começa a movimentar sua varinha. Não era algum movimento memorizado do livro de seu pai, mas algo original, ela tenta a magia pessoal.
Os olhos da maga brilharam em um verde radiante, que iluminava a plateia com grande esplendor. Todos param para observar o show de luzes que Talyra liberava.
Com um destaque tão luxuoso que o restante da praça parecia ofuscado, como se a magia tivesse transformado aquele ponto em um palco místico de atenção absoluta.
A garota fazia desenhos precisos e lineares com a varinha, formas geométricas básicas — como cubos e pirâmides. Não deixavam a desejar para a plateia, que ficou simplesmente maravilhada.
Cálix e a bebê já tinham altas expectativas, mas ficaram completamente atordoados com a visão deslumbrante de um show de luzes mágicas. Ao observar Talyra, ela estava claramente concentrada, como se o nervosismo ou a ansiedade não a pudessem atingir.
Comentários podia ser ouvidos de crianças e de membros da guarda da cidade:
— Mamãe, como ela faz aquilo? — a pobre mulher nem sabia como responder
— Isso é mesmo seguro? — murmurou um guarda.
— Que se dane se é! — retrucou o outro — É a coisa mais linda que já
Depois de alguns segundos das grandes formas se movimentarem pelo céu da praça. Talyra acaba com a magia, ficando ofegante como consequência.
O público aplaude, as crianças dançam em felicidade com a demonstração mística da garota, Cálix assovia com os dedos ao fundo, e a bebê bate palmas de forma desengonçada.
Pela primeira vez em sua vida, Talyra sorria diante de uma plateia.
A cidade foi modesta o suficiente para conceder a ela uma cesta de comida em gratidão à apresentação fantástica.
Quando a plateia finalmente se acalma, Cálix chega perto de Talyra, com a bebê sorrindo, radiante.
— Lily, isso foi absolutamente insano!! Parece que não vai precisar congelar meu cabelo, hehe…
— Ah, cale a boca, seu Clérigo vagabundo. Eu só consegui fazer isso na hora, o mérito é todo seu! Obrigada pelo apoio… — disse ela, com voz cansada e olhos marejados
Na distância, observando de um beco, Jasmyne fica ainda mais intrigada com a presença dos jovens naquele local. Ela segura a maçã.
Aquela apresentação foi estranha.
E então, do céu claro de Fajilla, uma sombra se aproximou de sua cabeça.
Uma carta.
Planava até ela, girando suavemente no ar, com o mesmo ritmo de outras dezenas — não, centenas — que começavam a surgir no horizonte da cidade.
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