Volume 1 – Arco 1
Capítulo 4: Magia Bruta
Estavam reunidos os quatro jovens em uma taverna, foram longos minutos de caminhada quieta até as muralhas de madeira de Fajilla.
No começo, nenhum deles teria concordado em perder tempo numa taverna, mas Cálix queria esclarecer algumas coisas. Além disso, no momento em que ouviram a barriga da bebê roncar, a relutância se transformou em um consenso.
Aquele moleque tinha o costume de ter uma língua solta, apesar de seu constante entusiasmo, aquilo passava do limite em certas horas.
“Lâmina, por que tu usa esse chapéu? Está escondendo sua calvície?”
“Vaia, que garras afiadas… orelhas pontudas… e dentes estranhos você tem!”
O espadachim e a moça estavam tendo sua paciência lentamente degradada. A única que se beneficiou disso, de certa forma, foi Talyra. Desde que ela caíra dos céus, estivera bem tímida, mas a presença alegre e agitada dele era sempre boa, fazendo até mesmo a bebê sorrir.
Com o tempo, após entrarem na cidade, Cálix já tinha superado a timidez da maga, que movera parte dos cabelos negros que cobriam o rosto, deixando agora os seus belos olhos claros à mostra.
Depois de tanto tempo, eles finalmente conseguiam ver a beleza da baía que era Fajilla, só que daquela vez, com a luz dos dois por outro ângulo.
Não tiveram muito cuidado na hora de escolher o lugar para tomar café, pegaram um estabelecimento pequeno, mas que parecia ser de família. Fajilla tinha por volta de doze mil pessoas, fazendo dela uma cidade pequena para padrões globais.
O cheiro era de madeira velha, e os pisos rangiam a cada passo, as velas haviam sido apagadas e a taverna estava cheia de pescadores e outros clientes frequentes.
Familiar que nem as casas do vilarejo, as conversas e risadas calorosas eram constrangedoras para os jovens. Lâmina coçava a nuca, enquanto Vaia massageava a própria testa olhando para a bebê que segurava.
Cálix e Talyra ainda pareciam entusiasmados com a conversa que tinham até entrarem. Ao notar o desconforto de Vaia e Lâmina, Cálix tentou alegrar o clima — sua especialidade.
— Ei, o que estão esperando? Não estão com fome? Venham, tem uma mesa bem no centro — O jovem fez um gesto com o braço e apontou para uma das mesas isoladas da taverna, ela estava relativamente limpa e continha quatro cadeiras.
Os quatro se sentaram, apesar de serem tão diferentes, o único que se destacava era Cálix. Ele parecia não se importar em usar roupas “modernas” e não um manto, como os outros.
Após poucos segundos de espera, eles foram finalmente atendidos por uma garçonete. Ela era mais nova do que eles, tendo por volta de quinze anos, vestia um uniforme marrom junto de um avental branco, sujo por algumas manchas de café e outras bebidas. Aparentemente, tivera uma manhã bem agitada.
Ela entregou pequenos cardápios aos jovens e fez as apresentações, de forma bem nervosa e atrapalhada.
— S-Sejam bem vindos ao Descanso da Baía: A melhor taverna deste lado de Arquoia! Já conhecem a casa?
— Não, na verdade. É minha primeira vez. — disse Cálix já olhando para o cardápio de madeira entalhada. — Hmm… vou querer um suco de groselha. Se conseguir, já traga leite e uma cadeira infantil, temos uma bebê conosco.
Vaia pediu uma taça do vinho mais caro que tinham, Talyra pediu hidromel — uma bebida rara na região — e Lâmina pediu um copo de água gelada. Cálix começou a suar frio, notando aos poucos o que estava acontecendo.
— Dinheiro não dá em árvore não, viu?
— Que peninha… — respondeu Vaia.
— Mas enquanto esperamos nossas bebidas, o que você queria discutir, Cálix?
— Bem, Lâmina. É que, principalmente, com a chegada da Talyra, fiquei preocupado com o andamento da missão.
— Missão? Como assim, vocês trabalham juntos?
— Você não sabe das missões? Estranho — indagou Lâmina, colocando a mão no queixo — mas elas são basicamente o que gira o tempo das pessoas ultimamente.
— De fato, encontrar o objeto, que agora sei que é a bebê, foi uma missão. Entretanto, não acredito que tenha sido da mesma forma.
— De todo modo, há uma organização bem famosa, que as pessoas chama de “O Círculo”, ela surgiu faz poucas décadas e dominou o continente inteiro. Fazendo as pessoas correrem para todo canto em busca de matar monstros ou encontrar artefatos.
— E o que as pessoas ganham em troca?
— Ninguém sabe — interveio Cálix, com um sorriso no rosto — E essa é a melhor parte: as pessoas fazem missões e acabam num estado de êxtase. Continuam sem saber quem está por trás, mas algumas coisas nesta missão específica estão fora do normal…
Primeiramente: Missões realizadas por múltiplas pessoas geralmente se iniciam em grupos que já se conhecem ou têm algum tipo de relacionamento.
Segundo: Nenhum alvo de missão — que eles já ouviram falar — era humano.
E terceiro…
— A situação da mulher que atacou o vilarejo — disse Vaia — Se ela caiu na casa onde encontramos a bebê, significa que ela a viu. Não havia nada de mais interessante lá, então por que sair sem seu alvo?
— Ela ainda pode estar na cidade… Lembra-se da aparência dela? — perguntou Lâmina cruzando os braços.
— Olhos azuis, muito alta, cabelos louros, roupa preta… são algumas características marcantes.
— Se o objetivo é evitá-la, então vamos só fazer isso. — Cálix colocou as mãos na mesa, como se tivesse solucionado um caso — Os barcos do Heinrich deveriam sair da ilha amanhã à noite. O ponto de entrega d’O Círculo mais próximo ficava em Arquoia.
— Então estamos realmente no Velho Mundo… — comentou Talyra.
Antes que pudessem comentar no assunto, a garçonete retornou com as bebidas de todos. Apesar do lugar ser pequeno e caseiro, a apresentação das bebidas era impecável, a garçonete também trouxe uma cadeira infantil. Onde ela colocou a bebê para deixá-la confortável junto ao seu leite na mamadeira.
A criança mantinha os cabelos cobertos por uma manta, cuidadosamente ajustada por Vaia, que se certificou de esconder parte do rosto para não chamar a atenção. Mesmo cercada por curiosos e com pouca luz, ninguém parecia notar a sua presença incomum.
Cálix só conseguia sentir o dinheiro se esvaindo de sua carteira à medida que a menina colocava os pedidos na mesa.
— Eu lhe agradeço, viu Cálix? Não tomo vinho de qualidade há um bom tempo — provocou Vaia com um sorriso perverso, ela girou a borda da taça com suas unhas afiadas.
— É agora que eu realmente não vou ter dinheiro para a maldita viagem…
Talyra ficava com água na boca, quase babando, enquanto observava a cor amarelada da bebida em sua caneca de vidro. Antes que pudesse colocar as mãos nela, a maga sentiu a bebê puxando sua manga longa.
— O que foi, fofa?
— Sentiram isso? — Vaia foi a primeira a notar.
Um homem ao lado soltou uma reclamação a respeito de sua bebida ter esfriado muito rápido. Ao olharem em volta, os jovens perceberam que as bebidas quentes de diversos clientes pararam de soltar fumaça, suas visões se encontraram rapidamente em um indivíduo que parecia envergonhado.
— Ah… p-previsível — caçoou Cálix apontando para Lâmina enquanto tremia de frio.
— De novo não…
O frio se intensificou, até que as bebidas de Cálix e Vaia congelaram. Talyra puxou seu livro e realizou outra magia para manter seu hidromel e o leite da bebê na temperatura ideal.
— Maga… como você consegue? — Lâmina encarou Talyra com um olhar frustrado. Não só ela não se incomodava pelo frio, como também parecia ter um controle estável.
— Não olhe para mim, é você que está vazando Aura para todos os lados. É como tentar conter esse hidromel delicioso em um escorredor de macarrão. Eu falo, mas as pessoas juram que controle de Aura é algo complexo.
As pessoas da taberna começaram a discernir a fonte do frio, o homem alto de preto com a espada encostada na cadeira já emanava um vapor gélido.
Lâmina estava com holofotes sobre sua cabeça — não de forma positiva.
— Mas eu não sei fazer isso, garotinha. Esse é o ponto.
— Tá bom, então… hum… Ah, já sei! Que tal se você transferir a sua Aura extravasada para algum objeto? Como sua espada, por exemplo.
Cálix e Vaia quase não conseguiam conter suas risadas, Lâmina estava disposto a morrer sozinho do que sacar sua espada contra um monstro. A moça colocou a mão no ombro da maga enquanto abaixava suas expectativas com um sorriso largo.
— Ah, eu não te culpo Talyra — disse Vaia num tom debochado — mas esse espadachim aí não vai encostar na espada dele por nada.
Lâmina estalou os dedos e ficou surpreso com a proposta:
— Tem razão, maga. Já que a Aura se manifesta como um frio intenso, talvez eu consiga passar para a espada apenas tocando nela…
O espadachim encostou na lâmina da montante, com Talyra observando a Aura focada nas mãos. O frio do ambiente se dissipou antes que as pessoas pudessem fazer alguma reclamação.
— O quê?! — berrou Cálix, incrédulo. Com Vaia ainda mais surpresa e boquiaberta do seu lado — Como assim?! Ontem você quase teve um derrame quando estava se segurando para não sacar a arma. E agora, você encosta como se não fosse nada!
— Existe uma diferença entre sacar uma arma para combate e simplesmente tocar nela, seu idiota!
— Estou curiosa… como nunca pensou nisso antes? — indagou Talyra.
— Na verdade, sempre que eu sacava uma espada, eu acabava fazendo a transferência. Só que a intensidade do combate fazia com que elas quebrassem toda vez.
— Talvez funcione porque você não está em combate. Quando o corpo entra em estado de luta, a Aura se intensifica — mesmo que encostar na espada funcione agora, não quer dizer que vai funcionar lá fora.
— Acho que eu não vou me preocupar com isso por agora.
A espada de Lâmina brilhava com o azul cristalino de sua Aura fria, chamando a atenção de diversas pessoas. O ar aconchegante e caloroso da taverna começou a tomar conta novamente, enquanto Cálix e Vaia olhavam decepcionados para suas bebidas.
— Bom, aproveitem seus sorvetes de groselha e vinho, haha! — disse Talyra enquanto brindava com a bebê. As duas começaram a beber em sincronia, sorridentes.
O mau-humor dos jovens não conseguiu se manter diante daquela cena de aquecer o coração, Cálix soltou uma gargalhada, enquanto Vaia riu levemente com a mão diante da boca, já Lâmina apenas fez um sorriso de canto de boca, mas satisfeito por resolver seu problema.
Os cinco se retiraram da taverna, com Vaia dando tapinhas nas costas de Cálix enquanto o consolava sobre sua nova situação financeira. Ao andarem pelas ruas agitadas de Fajilla, eles encontraram um conhecido, bom para todos, exceto para o jovem clérigo.
— Jovem Valente…
— Ah, Heinrich, como é bom vê-lo! — disse Cálix. Talyra podia ver a Aura do jovem se mexer de forma conturbada, como se ele estivesse sob estresse extremo, mas ele sabia esconder bem.
Cálix sabia que provavelmente seria uma cobrança ou algo do tipo para acabar com seu dia.
— Vamos precisar fazer a viagem de volta para o continente um pouco antes do esperado — ele parecia concentrado na fala. Contudo, acabou se perdendo ao notar a bebê que andava com eles — mas, mudando de assunto… Eu não sabia que vocês se conheciam, e estou vendo duas carinhas novas.
— Eu sou Talyra, é um prazer conhecê-lo, senhor…? — A jovem travou um pouco o jeito nas palavras, querendo saber a identidade do homem.
— Meu nome é Heinrich, sou capitão da frota atracada no porto. Atualmente estou fazendo diversas viagens em nome de Arquoia e acabei transportando seus amigos para cá, isso inclui o caloteiro.
— Ei!
— Mas estava percebendo que essa bebê era nova… seria ela sua filha? — perguntou o capitão apontando para Vaia, que segurava a criança.
— Missão d’O Círculo. Você já deve saber o esquema.
— Ah, mas é claro que sei! Afinal, de onde acha que tirei esse sabre lindíssimo?
Os jovens dirigiram o olhar para a cintura de Heinrich, onde viam um belo armamento negro. Uma espada curva de bainha escura com inscrições em dourado de uma língua desconhecida. Aquele objeto emanava um poder absurdo, seria a recompensa de uma missão?
— Mas missões d’O Círculo geralmente não incluem escolta. E vocês já se conhecem? Se trata de uma missão em grupo, então por que não vieram no mesmo navio? — Heinrich se abaixou para fitar Cálix.
— Essa é a questão. Recebemos a carta da missão enquanto estávamos separados, por algum motivo ela nos uniu — respondeu Vaia.
— Não ligo pra nada disso! Pessoal, vejam: Heinrich não quer me degolar, e eu já disse que minha bênção foi concluída. Então diga, meu caro barba de bode, como foi o encontro com a sereia ontem? — declarou Cálix, fazendo gestos exagerados como se estivesse se apresentando num palco.
Heinrich nem conseguiu ficar bravo — apenas arregalou os olhos, boquiaberto.
— C-como… como você…!?
— Heinrich, Heinrich, Heinrich… Você não acreditou na minha palavra? Sou um Clérigo do Deus do Amor! Tava claro na carteirinha!
O capitão agora tinha certeza: Cálix não era uma farsa. Ele jamais poderia saber sobre o encontro com Jasmyne na noite anterior. Depois do abraço, ela realmente aceitou dormir em seu alojamento, e, embora nada de indecente tivesse ocorrido, o simples fato de lembrar disso fez Heinrich corar discretamente.
— Viram?! — gritou Cálix, triunfante — O que foi que eu falei? Esse cara aproveitou a noite "naquele esquema", e eu tinha certeza!
O ânimo de Cálix foi interrompido por um tapa certeiro de Lâmina Gélida na nuca, liberando um pequeno surto de Aura gelada não armazenada na espada. O impacto foi tão intenso que o cabelo de Cálix foi para frente como um topete — agora completamente congelado.
— G-Gelo?! Meu cabelo!! — disse ele, tentando modelar a franja com as mãos endurecidas.
— Enfim — disse Heinrich, aproveitando o silêncio momentâneo. — A viagem de volta levará duas semanas. E se essa bebê for mesmo o alvo de uma missão… vocês não passarão despercebidos por muito tempo...
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