Vol. 1 – Arco 2

Capítulo 18: 100% Humano

Woodnation - 1:30 da tarde, quinze de Julho.

Animados e descansados, os três — Leonard, Einstein e Elin — saíram do estacionamento e partiram sem atrasos até a mansão de Amadeus Stevens. Durante o trajeto, quando caminhavam pelas calçadas mortas da cidade-deserto, Elin levantou o dedo:

— Ei! — exclamou, sorridente, após ter passado toda a caminhada completamente quieta. — Eu estava me esforçando para me lembrar de algo e agora sei o que era.

— O quê? — indagou o investigador.

— Você disse que os agentes tinham te chamado de “crypto” ou coisa do tipo, e que aqueles dois sequestradores com poderes citaram os termos “esper” e “mitofera”. Esses termos meio que ficaram latejando na minha mente por todo esse tempo. Agora, acho que me lembrei de seus significados.

— Explica aí — pediu, curioso.

— É! — Einstein falou, meio perdido.

Desnecessariamente animada, ela rodopiou pela calçada e parou na frente deles. Andando de costas para não ser atropelada, afirmou:

— Se não me engano, os cryptos somos nós.

— Ahn? — os dois indagaram.

— É. Tenho certeza disso. Pessoas como nós e aqueles sequestradores; que possuem habilidades especiais, habilidades que simplesmente podem ignorar as mais básicas leis da física e do universo, foram nomeadas como cryptos.

— Sério? Tem certeza? — perguntou o detetive, atônito com a informação. — Então os homens de preto sabem da existência desse tipo de pessoa?

— Se eles citaram esse termo, sim… Os outros dois termos, espers e mitoferas, são formas de catalogar os cryptos.

— Catapimbas, mas como assim? — Einstein perguntou.

— Os espers são pessoas, como eu e meu irmão, que são humanos e nasceram com poderes especiais. Ou pelo menos, possuem poderes que não são ligados à sua espécie. Já as mitoferas são o completo oposto, eles estão longes de serem humanos. São criaturas sobrenaturais, com poderes que vieram diretamente do sangue.

— Interessante… interessante pra cacete! — exclamou Leonard. — O hippie safado extremamente forte e ágil, junto do seu amigo com poderes gelo, com certeza são espers. Já os seus animais de estimação, o chihuahua e o rato, são mitoferas! Espera…

— Verdade — disse o hamster. — Nossa, que interessante!

— Calma aí, agora que me lembrei. O Laertes não disse ser uma mitofera?

— As coisas não são tão simples — falou Elin. — As mitoferas são bestas sobrenaturais, mas dependendo de sua espécie, nada as impede de possuírem aparências humanas. Se aquele “Laertes” disse que é uma mitofera, ele provavelmente é. Não tem motivo para mentir sobre isso.

— Entendo…

— Quanto aos animais deles… é, eles podem ou não serem mitoferas. Podem ser animais monstruosos. Assim como podem ser espers, desde que os seus poderes não venham diretamente de seus sangues. É difícil catalogar só de ouvir sobre.

— Nossa, peculiar — comentou o hamster. — Então quer dizer que os meus poderes não foram fruto de treinamento intenso em artes místicas? Que decepção…

— É, acho que nós dois nascemos assim. Mas não tem como dizer. Leonard, me explique você, que não tem amnésia, como funciona isso.

— Ahn? Sei de nada disso não — respondeu, sem entender. — Por que eu saberia?

— Você é obviamente um esper.

— Nada haver. Não tenho poderes.

— Tem sim. Seria impossível matar o meu samurai sem nenhum poder, lembro de ter dado muito de mim ao fazer aquele desenho. E quanto mais da alma de um artista tem em sua arte, mais poderosa ela fica! — exclamou, sorridente.

— Então tu não se esforçou. Foi mal aê.

— Mesmo quando foi desarmado, ele conseguiu trocar alguns golpes contra o meu samurai lá no bar. — Elin dirigiu-se ao seu irmão. — Ele com certeza possui alguma espécie de super-força.

— Concordo. Já falei isso, mas ele não me escuta — admitiu o irmão. — Nessa idade, eles ficam tão teimosos…

“Por que eles me excluíram da conversa e estão falando sobre mim como se eu fosse um aluno do fundamental?!”

— Ele é muito forte, rápido e ágil, mas não é mais forte do que o seu samurai, não é mais rápido do que o chihuahua encapetado e não é mais ágil do que aquele hippie nudista — explicou Einstein, como se estivesse falando do seu filho para a vizinha. — Ele também se cura mais rápido que um humano normal, mas demora dias. A minha magia de cura é muito superior. 

— Ou seja, ele é competente em tudo, mas não é o melhor em nada.

“Eu diria que sou equilibrado.”

— Sim. Totalmente medíocre. — O hamster bufou.

“Nossa…”

— Deu para entender — afirmou Elin, se virando para o detetive. — O meu veredito é que você é um esper, só que os seus poderes são tão fracos se comparado aos outros cryptos, que você apenas pensou ser muito atlético. Isso deve acontecer muito entre as pessoas que fazem sucesso. Aposto que muitos atletas profissionais ou pessoas super-inteligentes são que nem ele. 

— A diferença é que a maioria deles fazem sucesso e ele é um fracasso total.

— Ei, ei, ei! Chega disso! — berrou o investigador, desferindo um chutão na canela de seu cliente, que desabou como uma bosta.

— Ai, ai, ai! — gritou o hamster, já prestes a chorar. — Tô dodói, socorro!

Elin saltou até o seu irmão, desesperada, colocando o corpo enorme dele em seu colo:

— Como ousa fazer isso, detetive? Se continuar assim, iremos te demitir e não te daremos dinheiro algum!

— Eu nem tô sendo pago, até porque cês são pobres — respondeu com uma frieza perturbadora.

— Ah…

Depois de ter a canela assoprada por sua irmã e segurar o choro, Einstein conseguiu se levantar e eles voltaram a andar.

— Ok… do que estávamos falando mesmo? — Elin perguntou, se lembrando logo em seguida. — Ah, sim. Leonard, você é um crypto. Provavelmente um esper. Seu poder é, obviamente, o condicionamento físico sobre-humano.

— Não sei se concordo, mas achei descolado.   

— Agora que já decidimos isso… — afirmou, como se aquilo pudesse ser decidido. — Qual o nome de seu poder?

— Nome? Pra que um nome?

— Para ser MAIS descolado! — prontificou Einstein. — O meu poder se chama Strange Magic. O da Elin se chama Secret Bohemian. E o seu?

— Precisa disso…?

— Precisa. — Os dois afirmaram com uma certeza absoluta.

“Bem, sinto que serei morto se não disser um nome, então…”

— Acho que Condicionamento Físico Sobre-Humano é um baita nome.

— O quê? Não! Não! — berrou Einstein, desesperado.

— Qual foi?

— Nome em português? — Elin balançou a cabeça. — Que decepção, cara…

— O que cês tão querendo dizer?

O feiticeiro agarrou o ombro de Leonard, com força:

— O nome tem que ser em inglês!

— Como assim, caralho? — Uma expressão horrorizada e confusa surgiu no rosto do detetive. — Estamos nos Estados Unidos. Nós três estamos falando em inglês!

— Estamos? — Elin perguntou.

— Ora bolas, mas aqui tá tudo escrito em PT-BR… — comentou Einstein.

Totalmente confuso com tal cena, que provavelmente será apagada da versão em inglês dessa web-novel por perder completamente o sentido, Leonard mudou de assunto quando os três pararam na frente da mansão de Amadeus Stevens.

Enfim, chegaram no destino da caminhada.

— Bora. — O investigador se aproximou do portão e saltou por cima dele com uma facilidade tremenda, como se estivesse apenas pulando amarelinha. Após cair no outro lado, abriu o portão por dentro para os irmãos entrarem.

Juntos, os três atravessaram o jardim pacientemente.

— Esse lugar não traz nenhuma lembrança? — perguntou para Elin.

— Não — respondeu a pergunta do detetive. Seus olhos rodeavam as janelas, como se procurassem por algo.

— Engraçado. Aqueles termos que você disse realmente me pareceram estar certos — cochichou Einstein para a sua irmã. — Senti pontadas em minha mente quando você deu aquela explicação, mas não foi o suficiente para me lembrar verdadeiramente sobre isso. 

— É?

— Por que você se lembrou só de ouvir os nomes e eu não? Isso é bem injusto!

— Vai saber. Sinto que tem um ou dois outros termos relacionados aos cryptos, mas não consigo me lembrar…

Estalando os dedos, Leonard começou:

— Existem duas opções. Acidente, genética ou poder.

— Isso não são três opções, senhor detetive? — indagou o hamster.

— Tanto faz, cara, não fique procurando por detalhes. O que importa é que existem essas possibilidades; cês dois sofreram um acidente, possuem alguma doença genética ou foram alvos do poder de algum crypto ou tecnologia estranha. Esses são os motivos prováveis para a amnésia.

— E qual você acha que é o motivo mais provável? — perguntou Elin, neutra.

— Vamos por partes. Mesmo se vocês dois tivessem sofrido um acidente, as chances dos dois perderem as memórias desse jeito é bizarra de baixa. Agora, se são irmãos mesmos, compartilham dos mesmos bagulhinhos do corpo lá. De biologia… qual o nome mesmo?

— Genes? — deduziu a garota.

— Isso. Genes. Se os dois são irmãos, compartilham os mesmos genes. Isso significa que podem ter herdado de seus pais alguma doença envolvendo perca de memória. Só que aí cês estariam lascados, porque não teria como tratar isso comigo e iriam ter que ver com um médico ou algo do tipo. Mas isso é um bom motivo para os dois terem perdido a memória de forma tão conveniente.

— Só que não é a opção mais provável, no nosso contexto.

— É isso aí, Elin! Qual a lógica disso ser um acidente ou problema genético, quando todo esse mistério parece ser acerca de pessoas com poderes paranormais? É irônico falar isso, mas o mais provável é que suas memórias tenham sido roubadas por um crypto ou através de alguma arma hiper-tecnológica.

Com o fim das hipóteses, Leonard e Einstein pararam de andar em slow motion em direção à porta — ainda não aceitando o fato do tempo não desacelerar automaticamente durante suas conversas fundamentais — e avançaram até a entrada da mansão em velocidade humana.

Já Elin, que só começou a andar como uma tartaruga para não se sentir excluída do grupo, demorou alguns segundos para se tocar que a conversa já havia acabado. Saiu correndo atrás dos dois.

— Nossa, detetive, é verdade — exclamou o hamster. — Você está ganhando QI com o passar do tempo, que legal!

— Ha. Valeu.

— Aposto que agora, o senhor tem três pontos de QI!

— Só?!

— Isso não é muito?

— Pra tu, é. — Agarrou a maçaneta e finalmente abriu a porta.

A sala rústica, porém bagunçada, novamente deu as caras. Leonard entrou animadamente, ansioso para voltar ao estranho laboratório subterrâneo. Não escapava da sua mente a ideia de encontrar algo importante que sequer notou na primeira vez.

— Bora lá, gente, sem enrolação! — gritou. — Venham com a gente também, carinhas! — Apontou para os três homens de terno que tomavam um cafezinho no meio da sala.

— Claro, mas permita-nos terminar o café. Quer um pouco? Posso fazer para ti.

— Boa. Adorei a ideia.

Einstein e Elin não souberam o que expressar ao assistirem o detetive simplesmente ir embora junto dos homens engravatados. A artista se preparou para correr atrás dele.

— Calma — disse Einstein, colocando a mão sobre o peito de sua irmã. — Relaxa, logo eles vão se tocar. Três, dois, um, e…

Um grito ecoou por toda a mansão.

MAS O QUÊ?!?!?!! — berrou Leonard. O grito foi seguido por uma série de disparos, algumas explosões, três berros de bezerros e uma música gospel.

O detetive voltou correndo até a sala, passando pelos irmãos como uma onda de vento. Agarrou os dois pela cintura e, em questão de segundos, já havia saltado o portão e sumido da rua.

Depois disso, sequer foi perseguido. Ainda assim, como um trem totalmente descontrolado, não parou de correr até atropelar o hospital — mas não causou nenhuma morte, senão claro, a morte cerebral que vai desenvolver após anos com seu cérebro latejando depois de ter dado uma cabeçada tão forte contra uma parede de concreto.

— Só para deixar claro, isso foi 100% humano — disse o maratonista, ofegante. — Por que aqueles malucos estavam na mansão?

— Eram os mesmos agentes que estavam aqui? — indagou Elin. Os irmãos, seguindo Leonard, entraram dentro do hospital. — Espera, o que estamos fazendo nesse lugar?

— Como a mansão está impossível de entrar, o melhor é falar com o dono dela.

— Por que fugimos? — perguntou Einstein. — Deveríamos ter enchido eles de porrada!

— É. Porrada! — A irmã concordou. 

Leonard parou na frente deles, atônito:

— Eles estavam com as armas hiper-ultra-mega-seiláoque tecnológicas! Um deles tinha um sabre de energia e tentou me decepar. O outro estava com uma arma laser que transformou em pó uma lasca da parede! O terceiro literalmente tentou me explodir! Não morri por pouco.

— Cruzes, me desculpa! — gritou o hamster. — Pensei que você conseguiria lidar com eles, então nem fui atrás do senhor. Isso não vai se repetir!

O investigador virou-se, apressado. Foi até a recepcionista, mas não antes de falar em tom baixo:

— Relaxa. Aposto que eles foram até a mansão por causa daqueles agentes que foram mortos pelo Hamlet e Laertes. Preciso ver isso com o Amadeus. Os que estavam na mansão devem ter pego aquelas armas do laboratório subterrâneo, então se o velho estiver sendo protegido por guardas, eles não estarão armados desse jeito e iremos poder enchê-los de porrada com facilidade.

Sussurrar não adiantou muito, já que os gritos anteriores já haviam sido o suficiente para assustar os médicos e pacientes em volta, além de fazer alguns pacientes idosos lembrarem de memórias nostálgicas envolvendo gritos parecidos entre os anos de 1941 a 1945.

— Opa — falou ao se aproximar da recepcionista. — Belê? Gostaria de ver um parente meu. O nome dele é Amadeus Stevens. É um idoso.

Quase que imediatamente, a mulher teve um espasmo, como se acabasse de lembrar-se de algo:

— O seu nome é “Pietrão”?

— Sim — respondeu prontamente, captando a referência.

Ela levou as mãos até debaixo da mesa e tirou uma carta de lá, entregando nas mãos do detetive: — É para o senhor.

Confuso, ele apenas sorriu e assentiu com a cabeça, voltando até os irmãos e abrindo o papel:

 

Parece que não vamos conseguir dançar juntos. Eu até iria ajudá-lo a encontrar a sanfona, mas não vai dar. Boa sorte! 

 

As letras estavam tortas, com alguns rabiscos e pontos em uma das bordas, como se tivesse sido escrito muito às pressas. Não era difícil perceber isso, nem para o detetive.

— Muito educado esse velho — comentou Einstein. — Nem parece a mesma pessoa que sequestrou a Elin.

— Me parece um código. — A artista falou. 

— É melhor sairmos daqui — sussurrou o detetive para seus clientes. — Aqueles agentes podem estar atrás de nós, então é melhor irmos para algum lugar diferente. Um lugar calmo e onde ninguém vai…

— Catapimbas, por que estamos perdendo tempo? — Einstein perguntou, animado. — Acho que isso tem uma resposta simples.



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