Fios do Destino Brasileira

Autor(a): PMB


Volume 2

Capítulo 45: Ego e cautela

17 de Março de 4818 - Continente de Origoras, Cidade-Estado de Palas, Setor Oeste da Academia de Palas

 

Suspiros pesados ecoaram pela sala silenciosa, bem como grunhidos de frustração e sons de papel riscado. Na concepção de muitos, ser um Guardião era algo puramente prático, então nunca sequer cogitaram que teriam aulas de matemática tão puxadas. O que, para alguns, estava sendo uma longa e insuportável tortura não podia ser uma situação mais prazerosa para Kyorai.

Sem barulhos ou conversas paralelas, a garota realizava a rodada da vez de exercícios com enorme velocidade e relativo bom humor. Mesmo com anos de defasagem de uma sala de aula, tinha facilidade em acompanhar o raciocínio da professora, que agora divagava sobre algum teorema de trigonometria diante dos alunos visivelmente cansados daquilo. Seu caderno estava preenchido por anotações minúsculas e descrições rápidas que apenas ela era capaz de entender.

Como a maior parte da 1-1 era formada por descendentes de famílias abastadas, os plebeus foram designados logo no início das aulas para sessões de reforço para nivelar o conhecimento de ambas as partes. Enquanto alguns — como Heishi, Akashi e a própria Kyorai — se livraram em menos de uma semana, o mesmo não podia ser dito para todos. Pelo olhar desesperado de Tatsuyu, Togami e Koyo, as próximas provas seriam tão desesperadoras quanto as primeiras.

— Deveria oferecer ajuda a eles, Kyo. Ainda mais aos seus dois conterrâneos — sugeriu Ártemis, empática como sempre. — Nunca se sabe quando precisará da ajuda deles.

— De preferência, nunca. — A grosseria na voz dela fez a deusa da caça irritar-se. — Nem outros filhos do deserto são confiáveis.

— Ter o mínimo de relação com os outros é essencial, sabia? — A deidade, mais uma vez, mostrou sua indignação. — Bendito seja meu pai. Eu entendo sua situação, garota, mas seja um pouco mais sociável!

— Depender dos outros é um sinal de fraqueza. E pessoas fracas são sempre descartáveis — contestou a humana, irredutível.

— Pois saiba que eu avisei.

— Muito bem, tempo esgotado! 

O anúncio da professora causou uma avalanche de reclamações por parte dos discentes, que suplicavam por um período mais longo para resolverem as questões complicadas. Aos olhos de Shikage, tiveram tempo até demais para fazê-lo, mas manteria aquela opinião para si. Sentiu alguém atrás de si encostar em seu ombro, assustando-a no processo. 

— Kyo, confere esses aqui pra mim antes de eu entregar? — implorou Haruhi, choramingando. — Por favorzinho! Sei que não sou um gênio mas não sou burra também!

— Certo… — Ainda relutante, pegou a prova. Seus olhos esquadrinharam a folha em segundos. — Questões dois e oito incorretas. Você errou o cálculo do seno e no outro considerou a lateral errada na paralela. Refaça antes que a professora chegue aqui.

— Valeu, Kyo! Te dou um chocolate depois!

— Um suco de tangerina está melhor.

— Cê que sabe!

Haruhi voltou ao seu foco intenso de apagar e reestruturar sua resposta, enquanto a Guardiã de Ártemis permitiu-se relaxar. “Bem, pra Haru e para a Aya eu até abro uma exceção…”, pensou. Teve a breve sensação de ter escutado uma risada baixa em algum canto de sua mente, esta que preferiu ignorar antes de levantar da cadeira.

Como regra, aqueles que terminassem as tarefas da aula estavam dispensados antes da hora, e Kyorai sempre se aproveitava disso para ter seu momento de descanso usual nas manhãs de quarta. Em silêncio, arrumou seus materiais e partiu para entregar sua folha à professora, pronta para ser liberada.

Quando chegou diante da mulher, viu os olhos dela encararem-na com deboche sob os óculos redondos, o que logo lhe acendeu um alerta. Um pigarro alto atraiu a atenção de todos os restantes na sala diretamente para a professora e sua aluna ao lado da mesa. A onda de olhares deixava-a bem mais nervosa do que gostaria, embora mantivesse neutralidade em sua expressão.

— Senhorita Shikage, acha que a liberarei colando mais uma vez? 

— O quê?

Pela contração involuntária de sua face, Kyorai não tinha certeza se estava conseguindo se conter tão bem assim. Os sentimentos repulsivos em seu peito misturavam-se em um amontoado incoerente de desejos violentos. Seus punhos estavam perdendo a cor pela força com que os apertava.

Aquela deveria ser a exata reação que sua provocadora buscava, pois o sorriso desta apenas aumentou. Deliciava-se com o pequeno poder concentrado em suas mãos, e estava disposta a usá-lo para seu prazer pessoal sem remorso.

— Uma harenariana plebeia entre as melhores alunas de uma matéria puramente técnica? — Muitos alunos baixaram suas cabeças. — Me foi revelado por um de seus colegas que a senhorita tem se aproveitado de cola para manter notas altas em minha matéria. É verdade?

Kyorai estava descrente por ser acusada de maneira tão baixa. Algo nela quebrou — orgulho, confiança, seja lá qual o nome usado, isto partiu em milhares de pedaços, que a cortavam por dentro e faziam jorrar uma nova emoção. Sua aura azul-cobalto tremulou, preenchendo o ar ao seu redor com assustadora pressão.

— Com todo o respeito, senhora professora… — pronunciou silabicamente, tentando ser o mais neutra possível. — mas poderia dizer quem teve coragem de dizer algo assim de mim?

— Ora, para usar violência com ele, como tem usado com a senhorita Seishin?

— Eu não estou ameaçando ninguém! Eu estava ajudando ela!

A mudez da sala, de pouco em pouco, se tornou um mar de sussurros incompreensíveis e mãos apontadas à confusão entre docente e discente. A ausência de Reiko, Togami, Shuyu e Yoko, as quatro figuras de maior autoridade social, era sentida no ambiente, que espiralava em direção a um cenário cada vez mais caótico. E, para a infelicidade de Kyorai, o centro das atenções era ela.

Sentia-se violada por toda aquela humilhação. Nem esconder sua cabeça sob o capuz estava diminuindo a sensação nauseante dos dedos estarem direcionados a ela, vítima indefesa de toda a situação. As memórias de seus dias mais sombrios permearam os cantos de sua mente, forçando-a a tapar os ouvidos na infeliz tentativa de impedi-las.

O palco, os sorrisos maliciosos, o tilintar das correntes, a alegria daqueles homens crescidos a cada batida do martelo de leilão… todas aquelas cenas começaram a roer sua sanidade. O nojo pelo seu corpo a faria vomitar naquele ritmo; precisava de uma solução que não envolvesse nada demasiado suspeito. Em nada conseguia pensar de fato — via-se diante de um dilema que só seria resolvido pela violência.

Ao menos, era isso que sua mana sussurrava ao seu corpo.

Embora não tivesse percebido, todos os seus amigos estavam a um fio de serem suspensos por agredir a professora. Antes que pudessem concretizar a vingança por sua amiga, uma figura de cabelos loiros levantou-se de sua cadeira para dirigir-se ao pequeno palanque. Seu uniforme preto e branco balançou aos olhares dos demais, calando todos os sons da sala em um piscar de olhos com sua presença.

— Com sua licença, senhora professora, mas não tolerarei uma acusação sem nexo sob minha supervisão.

Para a surpresa de todos, quem partiu em defesa de Kyorai foi ninguém mais, ninguém menos do que Zuko, cuja voz firme e poderosa estremeceu a professora. Os olhos azuis, tão gélidos quanto suas palavras, perfuravam a mulher com sua intensidade.

— A-Alteza Ryoujin! Não pense que estamos em seu reino para tentar dar ordens! — desviou a senhora. — Minha fonte de informações foi um rapaz íntegro e de boa vida. Em nada se beneficiaria de denunciar uma trapaceira.

— Se a capacidade técnica da senhorita Shikage não lhe é convincente, que fizesse esta interferência de maneira mais discreta — repreendeu o príncipe. — O que a senhora está fazendo não passa de um julgamento público mesquinho e barato. Poupe-me de suas desculpas.

— Se confia tanto nela, aplicarei a mais difícil de minhas provas, valendo nota para ambos, agora mesmo!

— Aceito seu desafio.

— Todos, exceto vocês dois, estão dispensados!

A docente, após terminar o anúncio, partiu para alguma ala administrativa para pegar suas avaliações, deixando todos livres para seguirem como quisessem. Apesar de alguns compreenderem e concordarem com as acusações da professora, nenhum teve coragem para dizer algo à Kyorai quando seu protetor, o mais prodigioso dos estudantes do primeiro ano, estava logo ao seu lado. “São todos covardes”, afirmou o príncipe, diante da hesitação em se exporem.

— Cara, eu ia quebrar essa professora! Você tá bem, Kyorai? — Tatsuyu questionou, subindo no palanque com um pulinho cômico.

— Relativamente, sim. — Seus olhos âmbar dirigiram-se a Zuko. — Obrigada, Vossa Alteza Ryoujin.

— Não há de que. Injustiça não me apetece — constatou o loiro. — Estarei confiando na senhorita para resolver esse trabalho.

 

 

— O tempo está correndo!

Sentados lado a lado, Kyorai e Zuko debruçaram-se sobre a nova prova para analisar as questões em conjunto. A garota buscava concentração para estar cem por cento entregue à tarefa, mas o braço do príncipe insistia em tocá-lá desconfortavelmente. Não que ele  parecesse, claro, perceber ou se importar com o ocorrido.

“São mais simples do que eu esperava, mas ainda complicadas”, concluiu a garota, após uma observação mais profunda dos enunciados. Tinha nível suficiente para coisas mais difíceis — seus olhos buscaram os do herdeiro para comunicar a situação.

— Conseguimos… — O contato visual sério do herdeiro estava a desconcentrando de novo. — ah, fazer rapidinho. Consegue fazer da seis… não, sete até a dez?

Ryoujin nada respondeu. Sua mente estava em outro lugar, pensando em algo fora da tarefa atual. Sua companheira temporária aguardou o que lhe pareceu uma eternidade indesejada antes do silêncio dele se tornar insuportável. Claro, havia um pouco de seu viés contra o sexo masculino incluso, ainda que não fosse admitir isso em voz alta.

— Escuta, eu agradeço por ter me defendido, mas eu preci…

— Eu não entendo nada de matemática. — A confissão inesperada interrompeu o fluxo odioso de Kyorai. — Estava tentando não soar rude, desculpe. Como posso ajudar?

Para quem era frequentemente pintado como “insensível”, até que ele estava sendo bem cavalheiro. Uma pitada de arrependimento pela sua raiva anterior amargou a língua da jovem, que ponderou como seguir por alguns segundos.

— N-Não tem problema. Vamos fazer assim, então: eu faço as questões e você apenas revisa os resultados. Pode ser? Qualquer coisa, eu explico.

— Eu não tenho muito a adicionar. Vamos assim mesmo — concordou o loiro. Ele puxou sua própria cadeira um pouco mais para longe. — Prefere essa distância, certo? Estava franzindo a sobrancelha. Quanto mais confortável estiver, mais rápido será para terminar e mais cedo estarei livre para treinar.

Mais uma vez, a sensibilidade do Guardião de Diarmid a surpreendeu. Ainda que por motivos distantes de nobreza ou empatia, o príncipe tinha uma percepção assustadora para se atentar a detalhes tão ínfimos e tomar decisões com base neles. Sua posição de superioridade quanto aos demais era comprovada por cada uma de suas ações.

“Por que será que ele não gosta de matemática?”, parou para refletir a garota, no meio da terceira questão. Como parte de uma família de mercadores, o contato com números foi muito presente em sua infância — entre notas fiscais e maços de dinheiro, seus irmãos a ensinaram a profissão do falecido pai com afinco. Um membro da realeza não teria uma educação inferior à de uma plebeia harenariana.

Kyorai parou de rabiscar sua resolução trigonométrica, o que chamou a atenção de seu parceiro.

— O que foi?

— Nada. Apenas estou presa nessa resolução — admitiu, um pouco frustrada. — Menosprezei a complexidade, mas vou me resolver.

— Não irei te atrapalhar. Como disse, há uma enorme incompetência com números da minha parte.

— Do que não gosta neles?

Tanto Zuko quanto a própria questionadora não entenderam o porquê da pergunta. Escapou tão naturalmente por entre seus lábios, quase como um instinto além de sua compreensão. Para sua sorte, o rosto do príncipe manteve-se inerte enquanto ele processava a pergunta.

Com o pouco que sabia de Ryoujin, tinha certeza de que não seria uma resposta rápida. A avaliação não podia esperar a boa vontade dele, então focou-se na avaliação no meio tempo. “Não que ele seja do tipo que responde, como já pude perceber”, divagou, determinada mais uma vez em desvendar seu erro anterior na questão trigonométrica.

— Não é desgosto. Eu diria… dificuldade em transcrever para o papel. — Alguém como Zuko admitir seus defeitos era raro. — Compreendo as linhas de raciocínio e como desenvolvê-las, mas me perco quando é tempo de colocar tudo na ponta do lápis. Gostaria de aprender, contudo. Suas resoluções são bem mais claras do que as da professora.

O elogio repentino a pegou sem o devido preparo. Um nobre, notório por sua objetividade irrestrita e sinceridade devastadora, enaltecendo sua capacidade lógica? Aquilo, sem dúvidas, não fazia parte de seu bingo do dia. Ryoujin era um homem de poucas e duras palavras, então estas só poderiam ser verdade.

Não sabia se por empatia ou por estar um tanto abalada da acusação anterior, mas algo em seu coração lhe implorava para quebrar a faceta sem vida pelo menos uma vez. Uma voz, pequena e fraca, a requisitar ser ouvida por alguém além da Guardiã de Ártemis. Em um ato inesperado, ela aproximou-se e colocou seu próprio caderno em frente ao garoto, que a encarou com confusão.

— Acho que conseguirei pensar melhor se explicar passo a passo — mentiu, tanto para ele quanto para si mesma. — Vamos do começo. Preparado?

— Tem certeza? — Ela meneou a cabeça positivamente. — Muito bem, se insiste… 

Pela hora seguinte, a estranha dupla alternou entre os monólogos explicativos de Kyorai e os questionamentos duvidosos de Zuko — embora a comunicação tenha sido um tanto truncada no início, ambos não demoraram a se adaptar ao ritmo um do outro. A harenariana sentia sua mente mais limpa para traçar o caminho correto entre os números e fórmulas.

— E então, você…

— Que expressão estranha vinda da senhorita.

— Oi?

— Não sei dizer se está sorrindo ou irritada — comentou Zuko, apontando para a face dela. — É algo bem curioso. Gosta mesmo de falar de números, não?

A temperatura de seu rosto deveria ter subido cinco graus naquele único instante. Dividida entre admitir sua paixão pela matéria e firmar a postura, seu parceiro não deu a mínima para a reação dela. Duvidava se este tinha uma capacidade natural de ler emoções ou se conscientemente o fazia para conquistar sua confiança.

Pelo canto de seus olhos âmbar, Kyorai estudou os movimentos silenciosos do príncipe. As linhas de expressão dele eram muito mais nítidas do que deveriam para a idade — se perguntassem para ela, não daria menos de vinte anos àquele rapaz. A cicatriz reta em seu pescoço gerava curiosidade e receio ao olhar.

Não era bom se envolver com ele, eram o que diziam seus instintos.  Risco demais para pouca informação a ser extraída de um único alvo, cuja capacidade de percepção era absurda. Racionalmente, não via sentido lógico em buscar aquela conexão.

— E-Eu apenas gosto de matemática. Minha mãe me ensinou. 

— Nem meu melhor professor seria capaz de fazer algo como você fez — constatou o loiro. — Ela deve ser incrivelmente inteligente.

— É. Ela era mesmo.

O coração de Kyorai pesou e seu rosto assumiu de volta sua máscara comum de indiferença. Não havia jeito algum dele saber o que houve, tratá-lo de modo indevido era admitir sua imaturidade. Esperava que Zuko ignorasse a melancolia súbita.

Uma lágrima, solitária e amarga, molhou o papel sob a cabeça do príncipe. Como Shikage podia ver, suas íris azuis não tinham um ponto focal claro, perdidas em alguma coisa. Tamanha demonstração de sentimentos a deixou desnorteada acerca do que deveria pensar sobre ele, que limpou quaisquer vestígios de seu deslize num piscar de olhos.

Contudo, a garota não foi capaz de emitir seus questionamentos em voz alta. Este direito estava reservado apenas àqueles dispostos a se aventurar num mar de dores há muito ocultas. A chance de falhar, mesmo aos mais preparados, era gigantesca.

Kyorai Shikage, com sua própria embarcação furada, não tinha condições desta aventura. Como a boa covarde que sempre foi, escolheu de boa vontade dar às costas ao precioso tesouro que lhe foi ofertado e voltar à segurança de sua pequena ilha.

 

 

22 de Março de 4818 - Continente de Origoras, Cidade-Estado de Palas, Setor Central da Academia de Palas

 

Livres das aulas da tarde em virtude de uma reunião emergencial dos esquadrões, os alunos da 1-1 debandaram em alta velocidade, cada qual com seu destino. Fosse para treinar, fazer compras para a semana ou apenas passear, apenas um trio de adolescentes restou na sala espaçosa. Coincidência ou não, estes três, há algum tempo, pensavam um no outro. 

Sem precisarem de uma palavra sequer, Tatsuyu, Haruhi e Heishi uniram-se diante da porta. Sorrindo um para o outro, sincronizaram suas passadas, sem destino predeterminado, por um dos muitos caminhos da região central da Academia de Palas. A conversa fluía de uma forma que só amigos de infância teriam, entre risadas, discussões bobas e comentários sobre a nova vida.

Dentre eles, a menina era a mais satisfeita em ter apenas para si seus dois melhores amigos. Não que Kyorai, Akane e Keiko fossem más companhias para seu dia a dia, pelo contrário — gostava muito de cozinhar com a ruiva, falar de moda com a loira e arrastar a de cabelos brancos para a biblioteca, mas nenhuma daquelas presenças era a como dos meninos que há anos conhecia.  Com eles, sentia-se livre para falar a besteira que fosse e ser apoiada para continuar.

Seus olhos esmeraldinos buscaram o mais especial deles com assustadora pressa. Tatsuyu estava focado em convencer seu parceiro de confusão sobre algo relacionado ao professor Kaito, cujos desaparecimentos frequentes após o período letivo eram motivo de especulação nos dormitórios dos novatos. Heishi, seu opositor, estava convicto de outra coisa.

— Eu tô falando, não é caso nenhum! O professor só é ocupado — acobertou a situação, embora os outros não soubessem. — Cara, parei pra pensar agora. Quanto tempo faz que não ficamos só nós três? Parece que faz tanto tempo…

— Não faz nem um mês e meio, picolé humano.

— Mas precisa dessa agressividade num dia tão bonito?

Um chute preciso na perna direita de Heishi o colocou de joelhos, arrancando uma risada genuína do garoto de olhos rubi. Sua melhor amiga, posicionada à esquerda do trio, bufou de raiva antes de levar as mãos à cintura e franzir o cenho.

— Outono é muito mais agradável do que verão!

— E eu precisava apanhar só por você discordar? — replicou o moreno, em descrença. — Andar com aquele selvagem está mesmo afetando seus neurôn… Ai!

Foi a vez de um forte tapa surpresa na nuca o calar. Uma vez que este veio da esquerda, só uma pessoa poderia ter sido responsável por ele. E esta pessoa tinha os olhos vermelhos queimando com uma raiva nítida, comunicando a ele que não gostou nem um pouco da reclamação.

O período em Palas não estava sendo o passeio no parque que o Guardião de Búri imaginara. A grata aproximação de Ayame era insuficiente para cobrir o déficit emocional criado pelo afastamento lento e incômodo de seus dois parceiros de vida. A culpa disso, em sua concepção só poderia ser atribuída a um elemento que esteve fora de sua equação inicial.

— Qualé, até tu de novo, cara? O que eu falei de errado?

— O que você viu de selvageria no Togami em quase dois meses, Heishi? — questionou Tatsuyu, impassível. — Ele não invade nossos espaços, deixa tudo sempre arrumado e sempre, sempre mesmo, está de boa vontade nos ajudando com as tarefas domésticas. O que ele fez pra ti?

— Você sabe muito bem o porquê de eu achar ele um selvagem, Tatsuyu! — rosnou de volta. Evitava contato visual com seu melhor amigo. — Eu não preciso te lembrar do que aconteceu. Nem pra você, Haru.

— Se for assim, temos que ser os três executados por sermos criminosos! E isso pela lei do reino que a gente nem nasceu!

— Essa tua vontade de mediar todo conflito que aparece me estressa. — O mais alto deles massageou a testa. — Olha, eu não confio no Togami, e não vou confiar até ele tirar uma corda do meu pescoço! 

— Você merece cada segundo da Aya te desprezando. 

— Não testa minha paciência hoje não, Haru. Não por um harenariano!

Apesar de estar especialmente combativo naquele dia, Heishi preparou-se para desmaiar ali mesmo. O que veio, contudo, foi somente o olhar de decepção mais genuíno que Haruhi Seishin já havia direcionado a ele. O silêncio amargo foi mais dolorido do que qualquer agressão física disponível no arsenal da loira.

Heishi estalou a língua em resposta. O que viam demais naquele baixinho estrangeiro para tratarem-no com tanto apreço? A ideia de preferirem se afastar a lidarem com seu preconceito não tão velado o deixava amedrontado. Não queria voltar para aqueles dias desoladores.

Sua rota de fuga veio na forma de uma mão delicada a ele estendida. Estudou o contorno dos braços não tão finos antes de subir para o rosto da menina que ali chegara, então fazendo contato visual com as íris azuis um pouco mais escuras do que as dele.

— Caiu? — perguntou Shino, os cabelos negros com pontas na mesma cor dos olhos escorrendo pela lateral do rosto.

— Cai de amores pela sua beleza, senhorita, isso sim! — Como num passe de mágica, o lado podre de Heishi assumiu suas ações. — Agradeço sua ajuda para erguer esta infeliz vítima de traição emocional.

— O jeito que você é melodramático me faz duvidar de muita coisa.  Ah, e a Shinonon já tem namorado, esqueceu?

A terceira voz trouxe calafrios para Tatsuyu, que imediatamente se escondeu atrás de sua amiga. Seu medo tinha motivo: aquele que se aproximava, junto de um garoto baixinho de olhos laranja-escuro, exibia uma cabeleira loira e íris violeta muito características. Pelo uniforme magenta, não poderia ser confundido com mais ninguém.

Haruhi e Heishi também o reconheceram sem grande esforço, colocando-se entre o rapaz e o terceiro membro do trio de Yggdrasil.

— Ora, por que tão escondendo o querido de mim? Eu não mordo — riu Naochi, direcionando o olhar para eles. — Só corto. Às vezes.

— Isso aqui… — Tatsu ergueu o uniforme para revelar a cicatriz vertical em seu abdômen. — É o motivo!

— Achei que tivéssemos superado isso! Eu só estava fazendo meu trabalho — justificou-se o bellano. — A vez que estudamos junto com a princesa de Sophis foi tão divertida! 

— Sim, foi! Mas eu não confio em você!

— Pelo menos sua cicatriz não ficou feia igual da Aya…

A intimidade com a qual o Segunda Cadeira de Palas se referiu à Guardiã de Eolo causou uma perturbação na cabeça de Heishi. “Ele é tão previsível… que fofo”, divertiu-se o loiro, satisfeito com a expressão de ciúmes inconsciente de seu calouro. Seu instinto de fofoqueiro seguia afiado feito gilete.

O que os demais enxergavam como uma rivalidade mortal entre gelo e ventania não passava de uma tensão sentimental não resolvida entre as duas partes. Isso, ao menos, aos olhos de Naochi, cujo desejo com esta informação era nada mais, nada menos do que incendiar ainda mais o conflito. Sem a anuência de quaisquer partes ou Keishi, claro.

— Me pergunto se o Kei vai deixar ela beber hoje comigo e com o Koushi. 

— Ela acabou de fazer quinze, Naochin! E o senhor Houseki é super rígido com ela — o garoto baixinho, até então calado, argumentou. — Não me apresentei. Katsuoka Morimoto, do quinto ano, é um prazer.

— Do que diabos vocês tão falando?

“Pescado com sucesso”, pensou Shogi. Com a mão sob no queixo, como se pensasse nas palavras mais apropriadas, demorou-se a falar com o objetivo de incendiar as emoções inflamáveis daquele menino de gelo. Pelo bater do pé repetido no chão, estava tendo êxito.

— Não te convidaram, geladinho? — O apelido fez a têmpora de Heishi ficar visível. — Hoje é aniversário do Kei, ele vai sair conosco e com a Aya pra beber alguma coisa. Quem sabe uma cerveja gelada da boa?

— Duvido. A Ay… Tengoku não faria isso, muito menos o professor Houseki — contestou Reiketsu. — É mais fácil ele mandar ela pra casa e depois sair, do jeito que ele é.

— Relaxa que eu, Shinonon e Kou já falamos pra ela vir com a gente! — A mão de Naochi fez um gesto bem debochado para ele. — E ele topou, sabia? O papai coruja gosta de tudo rolar embaixo do nariz dele.

Haruhi não era boba e percebeu que seu amigo estava começando a congelar o chão sob seus pés. Um sorriso maroto surgiu em seus lábios — o galã do coração de gelo, o maior cafajeste que conhecia, incomodado com uma provocação tão ínfima? Tinha algo por baixo disso. “Melhor deixar pra mais tarde”.

As serpentes em seu cabelo começaram a sibilar para algo fora de seu campo de visão e, por estar conectada a elas, a garota foi informada do que viam. Não só ela, dentre os presentes na roda de conversa, havia tido a mesma capacidade observativa, uma vez que Katsuoka apontou para o mesmo lugar.

Naochi foi mais rápido. Um de seus punhais, conjurados sem demora, voou na direção da quina da parede, cravando-se na lateral desta. Um gritinho nem um pouco másculo confirmou as suspeitas dos três veteranos e da Guardiã da Medusa.

— Ei, ei, calma! Não sou bandido não! — afirmou o menino alvejado, cujos olhos dourados refletiam seu pânico. — Viu? Sou só eu!

— Hokuto? — Haruhi afrouxou seus punhos cobertos de mana esverdeada. — Por que tu tá escondido, caralho? Que susto!

— É que não sabia como abordar vocês… — respondeu, mão à nuca. — A aura do Reiketsu me atraiu até aqui. Quando eu vi, já tava escondido e procurando a chance perfeita pra entrar na conversa.

— Olha, agradeço por me achar tão bonito e incrível, mas eu só gosto de mulher, viu? — brincou Heishi. Sua melhor amiga segurava a vontade de quebrar seu nariz empinado. — Esse aqui, não.

— Heishi, eu já te f-falei pra não sair por aí falando b-besteira!

— Então ele é, Naochin? — Shino sussurrou, indiscretamente, ao amigo.

— Pelo jeito, sim. Não esperava isso, mas é uma ótima surpresa.

— P-P-Parem vocês d-dois também!

O pobre Tatsuyu estava com as bochechas tão vermelhas quanto seus olhos, o que ocasionou uma explosão de gargalhadas por parte dos demais. Com a “ameaça” neutralizada, o grupo voltou, parcialmente, à leveza de antes, enquanto traçavam caminho rumo a um dos campos gramados. Sem aulas naquele dia, aproveitariam o tempo limpo ao seu bel prazer.

Apesar do bom humor geral, Katsuoka não estava convencido. O que Yuma queria dizer com “ter sido atraído” para a aura de Heishi? Com um olhar na mana do garoto de cabelos azul-marinho, sentiu o inconfundível Símbolo do Pecado oculto sob suas roupas. Ser um Amaldiçoado corroborava à sua hipótese de que as coincidências talvez não fossem coincidências.

— Vai atrás disso, garoto? — a voz da Serpente Incandescente, grossa como suas escamas negras, questionou. — Pode estar se metendo onde não deve.

— Precaução nunca é demais, Tatá — rebateu Katsuoka. Seus olhos verdes estreitaram-se na direção do garoto. — Nunca.

 

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