Fios do Destino Brasileira

Autor(a): PMB


Volume 2

Capítulo 43: O segredo de uma donzela

11 Março de 4818 - Continente de Ignasia, Reino de Leoni, Distrito Comercial de Fenelope

 

— Será que o senhor Sakuya está bem?

— Fechamento de balanço é sempre um saco… 

— Mesmo assim, ele nunca pede ajuda. Me pergunto como ele lê tudo aquilo tão rápido.

O grupo de trabalhadores, cansados em levar pilhas de processos administrativos, parou diante da porta envernizada. Seus sussurros não podiam jamais ser ouvidos pelo chefe no outro cômodo, ou estariam em sérios apuros. 

Ainda assim, conjecturavam sobre o que levava o dono de uma das maiores redes comerciais do país a trabalhar como financeiro ao invés de contratar outros para fazê-lo. Alguns veteranos diziam que era por praticidade, enquanto outros acusavam-no de não confiar seu dinheiro a terceiros. Independente do motivo, o tempo “perdido” por Miko Sakuya dentro de seus aposentos era indiscutível.

— Peço que se retirem.

Os três homens saltaram de susto em razão da voz feminina logo atrás deles. Ao se virarem, uma mulher de longos cabelos ruivos encarava-os com indiferença, tal qual um humano olha para uma formiga minúscula. Pela objetividade da ordem e a maneira que abriu a porta do escritório com naturalidade, só puderam deduzir se tratar de uma convidada pessoal de seu superior. A delicadeza do tecido vestido por ela e as joias que o adornavam comunicavam mais do que status.

Mitsuko ouviu os passos apressados dos trabalhadores e suspirou. Diante dela, havia uma sala oval com dezenas de pilhas de papel, com as mais diversas informações — de relatórios operacionais a propostas de negócios, não havia um espaço sequer para alocar móveis comuns no espaço particular. A única decoração em destaque era o brasão de uma fênix, posicionado logo acima da escrivaninha. 

— Entrando sem bater como sempre, minha querida? E onde está sua usual companhia?

— Você compreende minha pressa, Sakuya — rememorou a mulher, caminhando na direção dele. — Vejo que ainda não escolheu um sucessor.

— Trabalhar é o que mantém minha mente em atividade, embora Naoko concorde com você.

Miko Sakuya aparentava ser muito mais velho do que realmente era: de cabelos castanhos com muitos pontos grisalhos, poderia ser confundido com o patriarca de uma grande família. Os óculos de lente quadrada sobre seus olhos azul-índigo também não colaboravam para lhe devolver os anos perdidos pelo estresse nos negócios. 

Porém, como Mitsuko bem sabia, poucos tinham o ânimo do homem para trabalhar, todos os dias, em um ciclo interminável de demandas. Seus subordinados admiravam-no por isso.

— Talvez devesse ouvir sua companheira — cutucou a ruiva — mas não irei me aprofundar nisto. Fui enviada para algo importante.

— Pois prossiga.

De seu armazém espiritual, uma pasta negra estufada surgiu nas mãos da moça. Uma das sobrancelhas dele ergueu-se em curiosidade e dúvida. Mitsuko folheou o documento até parar em uma página específica e retirá-la do pacote.

— Disso que venho falar hoje.

Sem cerimônia, ela depositou sobre a mesa o documento escrito à mão. Seu conhecimento em ler contratos o fez correr rapidamente pelas intermináveis linhas em um piscar de olhos. Ao final, sua expressão de espanto era visível nas rugas notórias de sua testa.

— Isto é…

— O primeiro relatório de infiltração — completou, em concordância com a ideia inicial dele. — O chefe requisitou que eu discutisse essa questão com o senhor antes de passar ao nosso informante. Você entende algo a mais além do que foi escrito?

— Shikiba… este nome é conhecido dentro de minha família. — Miko apontou ao símbolo da fênix. — Os livros da mansão guardam os segredos e a esperança da retomada do trono pela Casa do Leão. Não que eu seja tolo de me apegar a histórias ancestrais sem nexo. São os mesmos livros que dizem que a Fênix um dia se apresentou aos homens prometendo a graça da ressurreição.

— Ela diz ter o Leão de Nemeia, não Shish…

— Não pronuncie este nome!

A mera menção ao Grande Leão trouxe calafrios ao corpo do nobre. Sua convidada mostrou-se confusa, o que havia de errado em nomear a deidade em questão? Pelo pavor nas íris de seu anfitrião, era algo bem mais sério do que imaginava dentro daquele país. Em respeito a ele, se curvou.

— Peço perdão pela minha indelicadeza.

— Não há problema, senhorita Mitsuko — assentiu Miko, agora mais calmo. — Apenas não repita este nome no meio da cidade, em especial dentro do meu escritório.

— Tudo bem. De volta ao assunto, você acha esta informação infundada?

— Sim… se apresentar como Shikiba é colocar um alvo enorme da Casa do Lobo em suas costas — o homem ponderou enquanto reclinava sua cadeira. — Ela deve ter feito isto confiando na proteção da Longinus. Alguém deve tê-la notado primeiro do que nós.

— Isso não consigo garantir para você, mas ela possui uma relação direta com o herdeiro de Bellato e com um dos novos Arcanjos.

— Então, acessá-la será muito mais difícil do que pensei… — divagou com a mão à testa. — Os Ryoujin não são ignorantes. Não demorará para perceberem algo de errado com a garota.

— Por que não…

Perceber o que estava prestes a dizer fez Mitsuko interromper a sua fala. O que diabos estava pensando para sequer cogitar assassinarem uma jovem inocente? Calafrios desceram até sua espinha. Não foi ela quem havia pensado naquilo — algo sussurrou aquelas palavras em sua cabeça, induzindo-a para uma violência incomum.

Não era a primeira vez que tinha aquele tipo de pensamento pairava na superfície de seu subconsciente. Nos últimos tempos, ferir pessoas parecia tão agradável… Mal conseguia conter sua vontade de estraçalhar os criminosos recrutados, a contragosto, por ela. A frequência desse pensamento divergente lhe era assustadora.

— Senhorita Mitsuko? — O silêncio repentino preocupou o homem. — Está tudo bem?

— Sim, me desculpe. Distrai-me — esclareceu, ainda incomodada.

— De toda forma, teremos de mantê-la sob observação. Prepararei um relatório com o que sei sobre a Casa do Leão para facilitar suas pesquisas.

— Virei recolhê-lo ao seu alerta, muito obrigada, Sakuya.

O vestido negro de Mitsuko tremulou quando girou em seus calcanhares para partir. Olhar a silhueta esguia da mulher, em conjunto com os longos fios ruivos, trouxeram a ele memórias que há muito não tinha. Muita delas.

— C-Com licença.

— Quem é você? E por que entrou sem bater? — A voz masculina não a poupou da repreensão. — É filha de alguém do administrativo?

Naquela mesma sala, mas muito menos bagunçada, a desconhecida engoliu em seco. Nitidamente, estava desconfortável de ser encarada com tanta intensidade por um homem desconhecido — abraçava o próprio corpo em busca de proteção, as vestes negras largas demais ao corpo adolescente, enquanto mantinha os olhos presos às suas sapatilhas. Não deveria ter mais de 15 anos, a julgar por sua aparência juvenil.

A mudez dela, em algum ponto, irritou Miko. Tinha mais o que fazer do que lidar com as inseguranças de uma criança sem modos.

— Olha, vou pedir que vo…

— M-Mitsuko! Só… Mitsuko — cortou ela, subindo o tom. — Vim à mando do C-Chefe, senhor… hã… Sakuta?

O “ínfimo” detalhe de ser a nova mensageira o fez erguer uma de suas grossas sobrancelhas em descrença. Quem era aquela menina para ser digna da confiança quase irrestrita dele? Seja lá quem fosse, não deveria a destratar por picuinha. Estava ali representando o seu mais importante cliente.

— Sakuya. Miko Sakuya — apresentou-se ao estender a mão para ela. — Como posso ajudar um velho parceiro de negócios?

A gentileza inesperada dele a deixou sem jeito, mas ela prosseguiu com suas ordens do dia. Empolgada pelo sucesso, a saída dela foi muito mais feliz do que sua chegada.

Dali em diante, aquela cena se repetiu muitas e muitas vezes. A menininha acuada tornava-se mais a mulher implacável de hoje a casa visita: em algum ponto, passou a ser acompanhada por uma figura de capuz, sempre silenciosa como um fantasma. Porém, não era a expressiva mudança de comportamento que o incomodava, de forma alguma.

Os olhos dela perderam, no mesmo ritmo de seu crescimento, o pouco brilho infantil que viu neles na primeira vez. Nunca havia perguntado sobre o passado da jovem, nem tinha pretensões de fazê-lo. Em sua cabeça, ela era só mais uma das escolhidas a dedo para cumprir um papel superior de liderança entre os Arautos. 

A cada joia mágica adicionada ao seu vestuário, sua concepção inicial mostrava-se mais e mais errônea. Não tinha como ser coincidência que apenas ela se mostrasse mais prestigiada do que qualquer capanga.

Seu vocabulário era extenso. Seu raciocínio, rápido. Uma das poucas informações que tinha sobre ela era seu amor ao piano e à poesia, atividades que afirmou um dia ter praticado. Céus, até sua caligrafia era impecável para alguém sem contato com uma escola há anos. Mitsuko era perfeita demais para ser um mero peão.

Os outros emissários, que a cobriam por vezes, mencionavam a dedicação da ruiva em fugir de um assunto em especial. Todos concordavam ser o maior mistério rondando a mais confiável dos Arautos e a Mensageira do Caos. Seu mais importante segredo, guardado a sete chaves no fundo de seu peito.

Vai visitar aquele túmulo mais uma vez?

Miko fora o único que a convenceu a contar algo em todos aqueles anos. Ser capaz de citar o próximo destino da menina era um símbolo particular de confiança nele — seja lá por qual motivo ela decidiu que assim seria.

Diante da pergunta, Mitsuko parou. Seu corpo se curvou de leve para frente, erguendo os ombros e baixando a cabeça. Ele esperava não ter qualquer resposta além do silêncio, então apenas se conformou em pegar a caneta e voltar às suas anotações.

“Ela sempre foi assim”, afirmou para si. Razão alguma justificaria ela dizer a verdade para um mero colega de trabalho, ainda que o conhecesse há tanto tempo.

— Vou.

Logo, foi um choque erguer a cabeça e dar de cara com o rosto de Mitsuko virado para si. Era a primeira resposta positiva que teve em quase uma década conhecendo-a. Não só isso, mas a primeira com uma carga sentimental daquela intensidade.

Pintado em seus lábios arroxeados pelo batom, um esboço de sorriso preencheu sua face. Não um feliz, longe disto; era melancólico, nostálgico. Notou o curioso gesto dela de apertar a joia alaranjada em seu peito, como se buscasse ter certeza dela continuar ali.

Havia lágrimas nos cantos de seus olhos esmeraldinos. Genuínas e doloridas, elas ameaçavam cair a qualquer instante — antes que pudessem fazê-lo, a manga negra as enxugou da existência para nunca mais serem vistas. A expressão de Mitsuko voltou à sua frieza natural.

— Desculpe. Com sua licença — despediu-se a jovem, sem mais delongas.

— Volte sempre, querida.

Abandonado sob as pilhas de trabalho pendente, Miko Sakuya não pôde deixar de sentir pena daquela pobre dama.

 

 

11 de Março de 4818 - Continente de Origoras, Cidade-Estado de Palas, Setor Leste da Academia de Palas

 

Um largo bocejo escapou da boca do garoto moreno. Depois de um dia longo, sentir qualquer coisa que não cansaço era impossível, ainda mais quando o verão aproximava-se de seu fim e o ar outonal dava seus primeiros sinais. Desejava, mais do que qualquer coisa, apenas sua cama naquele início de noite. 

Para seu inacreditável azar, as aulas de recuperação para os desafortunados foram alocadas no extremo leste da Academia. Ou seja, mais de cinco quilômetros de distância até o prédio 190, forçando o miserável rapaz a percorrer toda aquela distância por, no mínimo, um mês. A considerar suas notas nas primeiras provas, aquilo se tornaria sua rotina. 

Exausto como estava, usar seus poderes para encurtar o caminho era algo fora de cogitação, restando-lhe apenas a opção de caminhar, vagarosamente, pelo trajeto sem fim. “Nessas horas que o Festo tem razão, eu deveria treinar mais o corpo…”, amaldiçoou em sua cabeça.

O desânimo não significava estar com sua percepção desligada. Uma explosão de mana próxima chamou sua atenção, e logo seguiu na direção dela, prédio adentro. Aproximando-se de seu epicentro, um estranho sentimento de familiaridade amaciou a preocupação de estarem sob ataque.

Quer dizer, se estivessem sob ataque dentro da Sede dos Guardiões, então era certeza de que uma guerra havia começado.

— Eu sinto que reconheço essa aura…

— Só de você ter sentido, eu já estou admirado — brincou a voz grossa em sua mente. — Sua percepção está melhor, garoto.

— Valeu!

A cada escadaria, a detecção de magia era mais nítida. Foi no terceiro andar que o brilho vívido dos raios laranja quase o cegou, vindos de uma das salas do piso. Por precaução, desacelerou seus passos e ocultou sua mana como pôde antes de espiar pela porta entreaberta.

No centro da sala de treino, uma garota de longos cabelos pôr-do-sol rodopiava de um lado para o outro com passos delicados, mas decididos. Mesmo de olhos fechados, cada movimento era meticuloso, pensado — o uniforme feminino da Longinus em nada atrapalhava a elegância das piruetas e acrobacias da jovem dançarina. A aura dela dançava junto de si, irradiando o ambiente com sua paixão ardente.

Aos olhos de Tatsuyu, a parte mais inacreditável era ver Yoko ter uma expressão tão tranquila em seu rosto. Não havia um resquício sequer da indiferença usual ou da rígida disciplina de uma princesa. Se tivesse que definir em uma só palavra, só uma caberia ao sentimento transmitido pela cena.

Liberdade. Era esse o título que daria àquela visão, tão bela quanto um pintado a óleo.

Até o final da apresentação privada, o moreno manteve-se em silêncio absoluto. Quando Kan’uchi enfim encerrou seu espetáculo, sua mana voltou para o fluxo usual e ela abriu os olhos dourados com um longo suspiro. Murmurava palavras como “Ainda não” e “Acho que errei”, até que, pela lateral de seu campo de visão, notou o rapaz parado à porta, cauteloso quanto à próxima etapa. Reconheceu-o de bate pronto.

Yoko sentiu o sangue bombear pelo seu corpo com tamanha força que poderia explodir. Há quanto tempo ele estaria ali? O que teria visto? Eram tantas as perguntas que sua visão ficou turva. A ansiedade a faria vomitar ali mesmo — agarrava-se ao seu colar de girassol, seu amuleto pessoal, como se sua vida dependesse disso.

— A-Alteza! Está bem? — gritou Tatsuyu, se aproximando. — Desculpe a indelicadeza, não tinha a intenção de interrompê-la.

— Como fracassei em detectar sua presença? — A vergonha não atrapalhava sua voz. — E como esqueci de trancar essa porta?

— Você parecia bem feliz, qual o problema?

— Eu sou a princesa herdeira de Helias — reiterou Yoko. — A única dança que eu deveria praticar é a da guerra.

Sonora foi a risada de Tatsuyu diante da afirmação inabalável da princesa do sol, que a olhou em profunda confusão. Sentiu algo similar à raiva preencher seu interior, borbulhando em seu peito e fazendo seu olhar faiscar contra o garoto.

— Do que está rindo, Fukushu? — vociferou com os olhos afiados.

— De como você é séria o tempo inteiro, Alteza! — O garoto tentava controlar a risada, em vão. — Pode ser o que você deveria fazer, mas não é o que você quer, né?

— O que está insinuando?

— Não é óbvio? Se você gosta de dançar, deveria continuar dançando!

— Não compreendo sua lógica, Fukushu.

Sem emitir mais palavras, Tatsuyu sentou-se contra a parede e convidou-a gentilmente com dois tapinhas ao seu lado. Sua solicitação foi aceita com enorme relutância pela nobre solana, cuja mudez denunciava sua dificuldade em encontrar um contra-argumento coerente. Toda e qualquer linha de raciocínio parecia muito falsa para ser considerada.

Como explicar a um plebeu os inúmeros papéis e o peso destes sobre os ombros de um governante? Pelo pouco que escutara de Ayame sobre os parceiros de treino de Shuyu, todos eram plebeus vindos de famílias de classe média-baixa. Nem mesmo a mera noção de etiqueta, tão incrustada nas ações de Yoko, existia na concepção daqueles jovens.

— Eu… você não entenderia — suspirou por fim a menina, indiferente. — Há certas coisas das quais devemos abrir mão. Esta é apenas mais uma delas que nada me servirá enquanto rainha.

— Incrível como você e o Shu se parecem… a diferença é que ele sempre parece decidido em não desistir de nada! Sério, chega a ser engraçado…

A menção ao nome de seu amado eriçou os pelos do corpo de Yoko. Não sabia se era parte da ignorância monumental do colega ou um sinal de confiança, mas a maneira desleixada a qual tratava um membro da realeza e colega de quarto a deixou intrigada. Shuyu partilhara com ela, por cartas, meros detalhes acerca da personalidade com os quatro alunos de Shihan, então não tinha no que se basear. 

O que foi dito por Tatsuyu acendeu uma curiosidade repentina em seu peito. A ideia de conhecer um novo lado de seu amado trouxe à tona sua personalidade obsessiva — seu rosto se aproximou do dele por instinto, transbordando com o sentimento e refletindo o interesse para o garoto, que se assustou.

— O que ele disse? As exatas palavras — requisitou a princesa.

— A-Agora sou eu que não tô entendendo!

— Ora, não me fiz entender? Quero saber de tudo que ele fala.

“Essa aí é doidinha de pedra!”, era o que diria se estivesse falando com uma pessoa normal. Diante da princesa do sol? Nunca, aquilo morreria no peito dele. A pressão dos olhos dourados era demais para pensar com clareza.

— B-Bem… ele não costuma falar muito de si mesmo. Acho que tá sempre muito focado tentando ser uma pessoa melhor enquanto faz o possível e o impossível pelos outros.

“Também nunca vi ele se gabar de ser príncipe ou da boa vida que leva. Tá, ele foi um pouquinho mandão algumas vezes, mesmo que tenha sido com o Heishi e por ter sido um imbecil. Acho que…”

— Que o Shu é uma pessoa boa até demais, certo? — Yoko o cortou, seu olhar distante. — Cheio de ideais, sempre sonhando com algo impossível. É o verbete de dicionário para “idealista”.

— Por isso que você namora com ele, porque não tem nada mais impossível — brincou Tatsu. A ruiva quase apagou ali mesmo. — Se ele não fosse comprometido, era um baita partido. 

— S-Sem vulgaridades!

Pela primeira vez em mais de um mês convivendo com a herdeira, sua expressão quebrou diante do garoto. Era estranho, não negava, ver Kan’uchi mostrar algum traço genuíno de humanidade: fosse pelo rubor em suas bochechas de cor porcelana ou nos lábios rosados comprimidos de vergonha, ela finalmente parecia ter um comportamento adequado à idade.

Yoko esquecera daquela pequena informação. Tatsuyu era uma das pessoas às quais foi entregue o segredo da relação proibida, junto de Reiko, Hanako e Ayame. Não havia razão para ela manter a fachada de rival mortal de Shuyu na frente dele.

— Mas… sim, foi por ele ser desse jeito que me apaixonei por ele. — Suas mãos buscaram o pingente com o girassol, elevando-o à altura dos olhos dourados estranhamente doces. — Eu não sabia quem ele era, nem ele. Vejo que sigo cometendo os mesmos erros, ele também me viu dançar porque deixei a porta aberta naquele dia.

Um suspiro suave fugiu de si enquanto ela adentrava nas saudosas memórias de dois anos atrás. 

Seu primeiro amor, seu primeiro admirador, seu primeiro beijo. Tudo estava entrelaçado à figura do príncipe de Yggdrasil e sua personalidade sem igual. Shuyu não precisou de dinheiro, títulos ou bens para conquistá-la num piscar de olhos — era, na época, apenas um garoto de 13 anos que se dispôs a ouvir as mágoas e receios de seu coração. 

Porém, como todos os envolvidos sabiam, o final deles não poderia ser um conto de fadas. Acima de suas vontades pessoais, estava o dever com as coroas de suas nações, inimigas há tantos milênios que a concepção de amistosidade entre elas jamais permeou as salas de negociação de Dracone ou Solane. O armistício entre Yggdrasil e Helias não passava de um período efêmero de paz antes de uma nova guerra.

Ela sabia disto. E seu papel, se aquilo de fato se concretizasse, seria o de enfrentar o seu igual draconiano.

— Ei, Alteza…

Tatsuyu tirou-a da súbita onda de tristeza com um aceno. Pelo tempo em silêncio e a maneira que a encarava, ele pareceu compreender, nem que fosse um pouco, o pesar de seu coração. De compreensivo, o rosto de seu colega distorceu-se em algo similar a um soldado pronto para o combate.

— Você ama o Shu?

Não era uma provocação; as íris rubi atentas de seu colega lhe garantiram esta informação. Yoko era esperta o suficiente para compreender a lógica por trás daquela pergunta jogada a ela sem aviso prévio e da faceta sombria.

As cartas trocadas com o amado faziam sempre menção àquela garota. Além de uma aposta certa, o risco de estar com Ayame para a posição social de Shuyu era zero. Filha de um General com relações próximas ao atual governante, amiga de infância dele e uma prodígio, como destacado por todos os professores da Longinus. E, além de tudo isso, alguém que conviveu com o príncipe e seus colegas.

O que o Guardião de Hefesto fazia não era um julgamento torpe contra a princesa do sol. Era um atestado do forte zelo que tinha para com Shuyu, seu amigo e salvador, pelo qual faria até o trabalho de ser o nêmesis da relação com Yoko. Tudo para evitar a ruína dos Mizuchiko. 

Era capaz de visualizar que o seu menor deslize naquela relação a tornaria inimiga da guarda pessoal do príncipe de Yggdrasil. E, por isso, não podia mostrar fragilidade. Não deveria ter medo. “Ele não teve medo”, pensou, sem desviar do contato visual com aquele que se colocaria sempre ao lado de Shuyu, independente do lado escolhido pelo herdeiro.

Angariou toda a sinceridade em seu ser antes de pronunciar suas próximas palavras.

— Sim, eu o amo. Mais do que qualquer coisa.

Diante da afirmação convicta, Fukushu permitiu-se afrouxar a tensão nos ombros. Toda rigidez abrupta foi cortada pela raiz, cedendo espaço ao seu tímido bom-humor cotidiano. Espreguiçou-se antes de rir um pouco por alguma razão desconhecida a ela.

— Cara… como é difícil manter essa pose séria! — admitiu com um sorriso no rosto. — Mas dessa vez foi necessário. 

— Estava brincando comigo?

— Claro que não! Estava super sério! — Ergueu as mãos em defesa da fúria mágica dela. — Sua resposta é suficiente pra mim. 

A face de Tatsuyu assumiu seu semblante usual de simpatia. Alguma coisa deve ter clicado dentro da cabeça não tão inteligente dele, pois um grito desesperado fugiu de sua boca.

— Esqueci que tinha combinado de jantar com os meninos no refeitório! Desse jeito, não vai sobrar nada pra mim! — choramingou, pondo-se de pé. — Vou indo, mas pode contar comigo daqui pra frente, Yoko! Até outra hora!

A ruiva não soube como responder à explosão de energia. Quando ele abriu um amplo sorriso, já pronto para atravessar o batente, e acenou para ela, foi como se ela não mais sentisse a necessidade de manter mais nada de sua postura. 

Contrariando todas as lições e sua etiqueta pessoal, Yoko sorriu. Não um sorriso tímido, mas um completo sorriso aberto e radiante. Aquele que, até então, só tinha exposto diante de seu amado Shuyu. 

Mais do que qualquer coisa, foi seu jeito de agradecer a ajuda do moreno. Era o primeiro de muitos que ela ainda tinha a oferecer para o mundo, tão caloroso e tão curioso, que Tatsuyu e os demais novatos tinham a lhe mostrar.

 

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