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Conto 2: In memoriam
Eu nunca tive um lugar para chamar de meu.
Poder. Isso é tudo que importa, sempre importou e sempre importará nesse reino — seja rico, pobre, plebeu ou nobre, tudo o que poderá fazer sem força é agonizar enquanto outros pisam em você para escalarem mais alto. Se você é um fodido como eu, que nasceu sem a capacidade de lutar, pode dar adeus a tudo que poderia ser seu.
Um quarto, uma cama, uma casa. Nada pertencia a mim de fato. Eu lutei a minha vida inteira para que eu pudesse ter um motivo para, talvez, ao menos dizer que meu destino não tinha dono. Que eu respirava por algo que foi definido apenas pela minha vontade, e não porque escolheram para mim. Ser chutado como um cachorro morto pela própria família só poderia acontecer num reino perturbado assim.
Lembro do primeiro dia em que estive sozinha nas montanhas. Eu andei e andei, atrás de um animal sequer que eu pudesse caçar, a única coisa nas minhas mãos sendo aquela adaga velha que recebi do meu instrutor e a mochila com os livros de teoria da mana. Ele disse para mim que não poderia mais voltar para casa, que essa era a ordem dos meus pais e que, se eu fizesse isso, seria considerado uma invasão e eu poderia ser morta. Você espera que um adulto olhe para uma criança fraca e indefesa e faça alguma coisa, qualquer coisa para impedir a morte certa dela.
O olhar dele não foi o primeiro a me desprezar, mas eu consigo ver nos meus sonhos até hoje. No rosto dele, não havia pena ou compaixão — se eu tivesse que usar uma palavra só, eu diria que era vergonha. Vergonha não de suas ações, mas sim de ter sido escolhido para treinar uma menina tão fraca que nem os próprios pais a queriam, enquanto seus colegas de profissão receberam guerreiros cheios de talentos e poderes que eu nunca teria.
Depois de um dia inteiro sem alimento, eu quase morri de inanição. Nem água aquele arrombado teve a decência de deixar, tem noção disso? Me perguntava o que eu fiz de errado, se era um teste e, a qualquer momento, meus pais apareceriam para dizer que eu fui forte o suficiente para sobreviver aquele dia e estavam orgulhosos por isso.
Não preciso dizer, claro, que nada disso aconteceu.
Eu era uma criança de muita fé. Ingênua ao ponto de acreditar que, fazendo orações todos os dias, o Deus Supremo iria me dar uma nova chance, um novo poder. Enquanto eu tinha uma casa para morar e comida na mesa, eu acreditava fielmente em todas essas mentiras. Diante da fome e com a morte espreitando seu corpo desnutrido, você começa a duvidar de que algum desses seres divinos irá intervir por você.
Abandonada. Esse foi o único sentimento que eu tive quando ninguém veio por mim, e eu percebi que estava à mercê da minha força. A arma que me entregaram podia dar um fim ao meu sofrimento — quem sabe, em outra vida, eu poderia ser mais forte? Se é que reencarnação existia, né, isso eu também não tinha certeza. Olhando para aquela lâmina suja e cega, eu considerei essa ideia muitas vezes.
De alguma forma, aquela tristeza se transformou em raiva, a raiva em determinação e a determinação me fazia queimar por dentro. Eu não iria aceitar o que o universo escolheu para mim, e estava disposta a provar qualquer deidade que meu desejo era maior do que suas vontades. Se ninguém estava disposto a nada por mim, eu usaria os livros que carreguei de casa e aquela adaga para salvar meu próprio pescoço.
Caçar, estudar, treinar, dormir. Pela próxima década, a minha rotina resumiu-se a repetir ciclicamente cada um destes 4 passos, sem falha, todos os dias. Cada gota de suor, cada calo e cada suspiro de dor era dedicado ao objetivo de não aceitar aquilo que a natureza me entregou. Reconhecer a melhora me fazia sentir viva, como nunca algo na casa dos meus pais havia feito.
Partir uma rocha? Erguer toneladas com uma única mão? Ser rápida o suficiente para nem o mais atento dos pássaros ser capaz de reagir ao meu ataque? Aos poucos, tudo que seria considerado o “ápice humano” tornava-se um mero degrau extra na longa e exaustiva escalada ao que eu poderia ser. O meu objetivo não era mais a vingança, longe disto.
Eu queria o auge. Quando o atingisse, construiria acima dele, para que até as estrelas mais vívidas estivessem ao alcance do meu poder. Até que os deuses que me recusaram em sua mesa estivessem dispostos a me tornar um dos seus, como os membros da Távola Redonda ou Diarmid fizeram no passado. Mesmo que meu corpo não conseguisse mais responder, eu iria até o fim pelo meu ideal.
Não lembro o motivo que me levou a visitar a cidade depois de tanto tempo isolada. Acho que foi uma coincidência infeliz — eu estava por perto e decidi ver a evolução daquele lugar dez anos depois da minha partida. Eu não tinha como saber o quanto eu me arrependeria dessa decisão mais tarde.
Veja, eu sou a “Rainha Maldita”. Não é porque sou uma Amaldiçoada, nem porque sou uma bruxa capaz de fazer feitiços complexos para torturar meus oponentes. É algo muito mais… estranho, vamos dizer assim.
Eu trago morte comigo. Não no sentido metafórico (é assim que se usa essa palavra?), eu realmente sou um presságio à morte. E tudo começou naquele dia, quando encontrei Gin vagando pelas ruas de Ofionna, minha cidade natal. Não sei como ele me reconheceu, para ser sincera: eu não tinha o corpo de antes, sequer deveria estar viva pelas condições que fui jogada aos lobos. Para o meu irmão caçula, contudo, nada disso importou para se jogar nos braços e dizer o quanto sentiu minha falta.
Um encontro com sua família perdida deveria me causar alguma emoção. No meu caso, só consegui sentir alguma coisa quando, depois de contar vagamente sobre minha experiência, ele me pediu algo simples. Um duelo amistoso, “para reviver a infância” e testarmos o que o treinamento fez com cada um de nós.
Não tive motivos para negar. Queria testar a espada nova que ganhei depois de derrotar um ferreiro numa luta mais cedo, que mal tinha? Pelo desarme rápido, tive a certeza de que o peso do esforço não era necessário para aqueles com talento, e Gin admitiu sua derrota. Sei que já disse isso outras vezes, mas o brilho nos olhos dele quando mostrei o movimento da espada e as palavras dele são outras coisas que nunca deixaram a minha mente.
“Você é um gênio, Amaka!”, eu discordava dele. Não era nada demais, para quem passou dez anos apenas neste ciclo não deveria ser tão fraco assim. Ainda assim, foi a primeira vez que alguém falou isso pra mim e eu não podia estar mais feliz. De repente, meus esforços tiveram sentido.
À contragosto, fui levada à casa dos meus pais. Eu era a quarta filha deles, e a única sem um dom natural para o uso de mana. Deve ter sido por isso que, quando me viram ali, viva e acompanhada do caçula que dizia ter sido derrotado por mim, a incredulidade nos olhos deles era genuína. Ainda que pensassem ter sido um golpe de sorte, eu recebi o direito de ficar.
Eu tive a esperança de tudo entrar nos eixos, sentada com todos os meus irmãos e irmãs e comendo comida fresca dos serviçais da casa. A possibilidade de minha família talvez não me rejeitar se eu fosse forte o suficiente me cegou — eu não podia desacelerar, cada dia de treino perdido era uma semana mais distante dos demais.
Gin partiu para uma viagem de estudos. Prometeu voltar o mais rápido possível para casa, para que pudesse aprender um pouco mais das minhas técnicas exclusivas. A próxima carta que recebi não foi dele, mas de seu amigo.
“Gin morreu”. Minha reação a essa mensagem fria e direta, padrão a uma família tradicional de bellanos puros, foi apenas perguntar do velório. Uma resposta de merda, indigna à bondade que ele me ofereceu, tão cruel que mesmo meus pais ficaram perturbados. Eu sabia de tudo isso, mas não consegui expressar outra coisa, isso que chamam de mecanismo de defesa?
Bem, este ciclo se repetiu. Eu treinava, um dos meus irmãos reconhecia sua derrota em duelos amistosos e alguma desgraça ocorria com eles. Narumi, Akira, Touji, Kei… suas mortes, embora acidentes, foram causadas por mim. Pela minha maldição. Eu fui em todos os funerais ao longo dos anos e nunca senti nada além de pena e uma pitada de decepção por todos me deixarem antes da hora. Como eu não tinha tempo a perder, partia para meu treino logo após cada velório, pois havia uma última muralha para derrubar.
Shizuku. A primogênita da família, a mais forte dos sete irmãos e a única cuja dedicação poderia ser equiparada à minha. Quando o esforço era idêntico, a luta era decidida pelo talento. Isso, para minha frustração, minha irmã mais velha tinha muito mais do que eu.
A incapacidade de sentir apreço pela minha vida e a raiva de ser avaliada mais uma vez por algo que não podia controlar me levaram aos caminhos obscuros da magia. Mana não poderia ser absoluta, não o suficiente para impedir o meu triunfo, ou os deuses ririam da minha cara por ousar desafiá-los. Foi assim que encontrei aquele livro, oculto dentre os muitos do assunto, que carregava consigo a última cartada para derrotar Shizuku.
Mana vital. Eu conhecia aquela energia como a palma da minha mão, bem como todas as funções desempenhadas por ela num corpo vivo. Um segundo de sua emissão era equivalente a um minuto de mana normal (ou “ambiente”, se for usar o termo técnico), mas utilizar uma gota sequer era um caminho sem volta direto para a morte.
Nas páginas amareladas, era descrito o maior do tabus da magia. Cem por cento dos que tentaram foram mortos pela força destrutiva liberada no processo. As imagens dos cadáveres irreconhecíveis, pintadas no papel em tinta vermelha, serviam como um aviso àqueles ousados o suficiente para ler as instruções.
Para quem não tinha nada a perder, eu decidi tentar. Me preparei para o pior e, numa manhã fria de inverno, quebrei a última barreira possível a um ser humano.
Os escritos diziam que o corpo borbulharia. Os ossos sentiriam tamanha pressão que as rachaduras poderiam ser escutadas pelos ouvidos mais sensíveis. A onda de mana inflaria seu corpo e, ao invés de empoderá-lo, iria causar uma explosão física por diversos pontos do corpo. Eram as consequências que a teoria (e eu também) esperava.
O que veio para mim não estava descrito em nenhuma das muitas versões relatadas. Foi uma sensação de preenchimento, inebriante e satisfatória, como se aquele fluxo intenso de energia ocupasse cada canto vazio dentro dos meus canais de mana. O primeiro soco que dei numa rocha com meus punhos fortalecidos pelo meu novo poder rachou-a como se fosse de papelão.
Testei muita coisa, até o cansaço me desmaiar por três dias antes de eu me recuperar do desgaste. Seja lá por qual motivo, eu não tinha morrido. Em vinte anos de vida, me sentir especial era um sentimento inédito pra mim, mas não podia me dar como satisfeita. Pelo próximo ano, todos os dias, eu me levava ao limite para descobrir como manusear a mais poderosa ferramenta de combate em meu arsenal.
Durante todo o tempo do meu treinamento, não frequentei a casa dos meus pais. Meu contato com a civilização era quase nulo — se não fossem pelas muitas vezes em que precisei de mantimentos para tratar do meu corpo, poderia contar nos dedos as conversas que tive com outros seres humanos. O meu corpo já tinha cicatrizes demais dos embates anteriores com meus irmãos e crescendo na natureza, e eu ainda me lembrava de todas as ocasiões.
Meu sumiço deve ter levantado as suspeitas de Shizuku. Ela temia ter o mesmo destino de nossos irmãos, não podia esperar eu estar pronta para derrotá-la. Quando ela pronunciou as palavras “duelo até a morte”, eu entendi o porquê ela era a favorita de meus pais. Ela sabia o que deveria ser feito para sua própria sobrevivência.
Neste ponto, acho que eu e ela éramos mais parecidas do que eu imaginava.
A nossa luta me fez perder esse dente aqui. Foi feia, suja, repleta de gritos de determinação e palavras jogadas ao vento em busca de mostrar uma a outra que não lutávamos por ódio entre nós e sim por algo que muito além do nosso controle. No instante em que minha espada desgastada ficou rente ao seu pescoço, alguma coisa me impediu de dar um fim nela.
Minha piedade não foi o suficiente. A paranóia foi mais forte do que a lógica, e Shizuku enfiou a própria lâmina em seu estômago. Ela não me disse suas últimas palavras, para que eu as passasse aos meus pais — ou será que esqueci? Eu sinceramente não sei, talvez não tenha me aproximado o suficientepara ouvir.
Diante de seu cadáver, só pude rir.
Eu era a mais forte. Eu era a única digna de viver. Todos caíram pelas minhas mãos, direta ou indiretamente. Ali, com a chuva lavando meu rosto coberto de sangue e com o corpo inteiro ferido, eu só conseguia gargalhar da ironia em ter rejeitado meu destino.
O que ocorreu depois não passa de um borrão na minha memória. Da morte de Shizuku ao nascimento de Yoru, os acontecimentos entre esses dois pontos são bem nebulosos. Não me lembro da morte dos meus pais — dizem os obituários ter sido suicídio — ou do Torneio da Coroa, quando me tornei rainha consorte.
Se fosse num país normal, uma rainha caolha, com os dentes quebrados e cheia de cicatrizes seria vista como um problema. Mas aqui não é um desses reinos cheios de frufru tipo Eromi, onde a líder tem que ter um rostinho de boneca e falar manso: o respeito se conquista com uma espada em mãos e sangue no rosto. Neste castelo, não havia espaço para duvidarem de mim.
Koichi não era um mau homem. Um marido de respeito, um rei justo e um pai dedicado, tudo que poderiam pedir a um homem. Não fui forçada a consumar nosso casamento até estar pronta para isso; ainda que não me lembre de muita coisa, eu tenho essa certeza. Yoru e Zuko me davam razões para sorrir com o coração em pedaços. Eu tinha uma vida que valia a pena ser vivida.
Porém, lembra-se da primeira frase que eu te disse? Nada disso pertencia a mim. A vida me lembrou que eu não teria direito a nada que eu não lutasse para conquistar. Foi minha vez de sentir o que meus pais sentiram.
A lei do mais forte prevaleceu. Yoru morreu nos meus braços. Koichi partiu em batalha, sem que eu pudesse interferir. Com duas peças a menos em meu coração, acabei por afastar Zuko quando ele mais precisava de mim. Os sons vívidos de toda manhã no Palácio de Warrea, este que também não me pertencia, novamente tornaram-se um pesaroso e brutal silêncio.
Me tornei rainha para evitar que Zuko pagasse pela minha impotência. Eu sou a exceção na história de Bellato, a primeira mulher a comandar o país da guerra desde a sua fundação. Todos ajoelham-se aos meus pés quando passo.
Contudo, repito mais uma vez. Este trono não me pertence. Esta coroa não me pertence. O poder que desenvolvi não me pertence. E, um dia, seus verdadeiros donos cobrarão que sejam a eles devolvidos.
Por bem, ou por mal.
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