Extras
Conto 1: A última visão
Naquela noite, depois de muito tempo em paz, Chitose sonhou.
Já estava crente de que não mais teria aquelas visões. Sua mãe contava-lhe de que todas as gerações perdiam os poderes lentamente, conforme a gestação de seus descendentes progredia. Então, quando seus pés deixaram o solo de Dracone e passou a pairar sobre as nuvens de Ouras, sentiu um misto de alívio e tensão.
“O que me torna diferente?”, refletiu, acariciando sua grande barriga. Pelo que a médica da realeza analisou, estava com 36 semanas — seu pequeno poderia vir a qualquer momento, inclusive durante seu sono. Teria de discutir com Junko, em algum momento, sobre esta curiosa exceção à regra.
— Não venha estourar a bolsa enquanto eu estou no meio de uma visão do futuro, Shuyu! — riu sozinha. — Mas é estranho. Estou aqui há cinco minutos e na…
Como se houvesse sido provocada, a estrutura invisível sob a sola dos seus pés descalços cedeu para que ela despencasse em queda livre. Tudo que pôde fazer foi aguardar, com as mãos protegendo instintivamente a prole em seu abdômen, enquanto mergulhava pelos céus em direção a algum lugar do qual não tinha certeza.
Quando o sol se foi, deixando o horizonte de sua visão em completa escuridão, sentiu um arrepio atrás de sua nuca. Aquilo nunca havia ocorrido, nem mesmo nos tempos mais sombrios ou quando a guerra entre Yggdrasil e Helias esteve a um passo de ser reacendida. Tal qual todos os humanos, o desconhecido despertava medo em seu coração. Crescente, repulsivo e visceral.
O contato com a próxima superfície foi um pouso suave, como pisar numa pilha de penas. Não importava para onde olhasse, apenas o preto piche do mais absoluto nada a envolvia em todas as direções, numa sensação de sufocamento constante. Deveria fazer algo? Andar por aí, mexer os braços, emitir sua aura para guiar o caminho por si mesma? Estar perdida era muito estranho depois de anos lidando com seus poderes de vidência.
Contudo, a mulher de longos cabelos ruivos não estava sozinha. O som de algo se movendo em meio às trevas era nítido, bem como o sentimento de estar sendo observada por algo além do véu. Numa tentativa desesperada de escapar do abismo eterno, emitiu sua mana vermelha para todos os cantos.
A criatura, que antes parecia se mover de forma errática, parou ao entrar em contato com a onda mágica. Chitose não mais sentia apenas um par de olhos sobre si: eram dezenas, talvez centenas de olhares fixos em sua figura indefesa.
— Calma, Chitose, isso é só um sonho, nenhum deles pode te ferir! — repetiu para si, tentando reduzir seu batimento acelerado. — Não importa o que acontecer, nada vai te afe…
— Chitose Mizuchiko.
A voz distorcida embrulhou o estômago dela, pela quantidade de estímulos distintos. Como se fosse um amálgama de pessoas distintas produzindo os mesmos sons, seu timbre era inconstante e estranho. Não era… humano, se tivesse que definir de alguma forma o que deduziu a partir daquela breve interação.
Uma a uma, pequenos focos de luz roxa apareceram ao seu redor, lentamente se multiplicando a cada segundo até estarem iluminando-a com seu brilho tênue. Isto não acalmou os nervos da jovem, pois a observação contínua deles a fez chegar numa conclusão nem um pouco reconfortante.
Olhos. Todas as coisas ao seu redor eram olhos, talvez de um mesmo ser, talvez de seres diferentes — independente da quantidade, a sensação etérea transmitida por eles fazia seu corpo tremer. Ela precisava fugir, de alguma forma, ou surtaria com a pressão imposta por eles.
Sua mente também deveria estar exposta aos seres desconhecidos, pois não teve sequer tempo de fugir. Mãos pálidas surgiram por entre os olhos e agarraram todos os seus membros enquanto ela gritava de terror, debatendo-se numa tentativa pífia de fugir de seu destino. Acima de tudo, queria proteger a criança em seu ventre.
— Não! Me soltem! Me soltem!
— Não tenha medo, minha criança. — A sugestão da criatura, claro, foi ignorada. — Diferente do meu semelhante, nenhum mal lhe causarei. Não àquela que carrega minha linhagem.
— Do que diabos você está falando! Quem é você?
— Acho que isto não posso lhe responder, Chitose — desculparam-se os olhos. — Assim como peço desculpas por não poder lhe mostrar uma forma mais convidativa. Mas, em breve, isto há de mudar.
“Por enquanto, peço apenas que permaneça firme ao que irei lhe mostrar.”
— Como as…
Tudo que a prendia se desfez em partículas brancas num piscar de olhos. Agora, uma bolha translúcida era tudo que a separava do ambiente diante dela, um quarto desarrumado que não lhe era estranho. Podia ouvir, abafadas, vozes e risadas de muitas pessoas distintas, pelo menos três. “Nunca vi esse lugar, mas por que ele me parece tão familiar?”, questionou para o nada.
Bem, sua pergunta não demorou a ser respondida. A porta de madeira do cômodo foi aberta por um jovem alto, cuja aparência a fez arregalar os olhos.
— O-O quê? C-C-Como assim?
— Ei, Shu, dá um pedaço de bolo pro Togami! Ele tá se contorcendo no chão aqui passando vontade!
— Eu juro que se eu tiver que dizer de novo que não vou dar nenhum pedaço eu pego ele pelo pescoço! — resmungou o jovem, batendo a porta atrás de si. — Tudo porque a Yoko me distraiu e eu esqueci de guardar…
Cabelos roxos, olhos esmeraldinos, o mesmo queixo quadrado… aquele rapaz era idêntico à versão jovem de seu amado marido, tão parecido que até a assustava. Não havia como confundir traços tão singulares da família Mizuchiko, da qual agora fazia parte em nome e sangue.
Observou, por mais alguns bons minutos, o garoto seguir com suas atividades, seu olhar alternando entre ele e sua barriga. Apesar da impressão inicial de estar admirando uma cópia do rei Shihan, havia pequenos detalhes no adolescente que contrapunham esta ideia.
Os olhos eram bem maiores do que os do seu marido, e a franja sobre o nariz não podia ser mais parecida com sua própria. O porte físico do rei mesclava-se à postura desleixada de Chitose. Mesmo o costume de coçar a nuca quando pensativo ele havia herdado, como podia ser uma mistura tão perfeita de ambos? A percepção deste fato trouxe lágrimas aos olhos da ruiva.
— Então esse é você, Shuyu… — gargalhou, alegre. — Me pergunto que tipo de pessoa você vai ser… Seu pai é tão teimoso e cheio de si, espero que não seja como ele!
— O destino de seu primogênito é um só, Chitose. — A voz cortou seus pensamentos. Desta vez, não lhe causava tanta estranheza. — Ou será o mais justo dos governantes…
A visão doce do menino cantarolando em sua cama enquanto admirava a fotografia de uma donzela com cabelos cor de fogo despedaçou-se sem aviso. Por trás dela, um enorme girassol surgiu, envolta em brasas púrpuras — o rugido distante de um dragão pesou o coração da jovem mãe.
— Ou o mais tirano dos ditadores.
Os olhos roxos substituíram tudo em seu campo de visão com o brilho fraco de antes. Cada íris apagada colocava-a mais fundo na escuridão de onde veio, contra o seu desejo.
Queria ver mais do seu filho. Queria saber como evitar que aquela criança, que nem havia nascido mas já amava com toda a sua alma, fosse transformada em uma ferramenta de destruição para a beleza daquele mundo. Shuyu Mizuchiko, o príncipe herdeiro, merecia o direito de amar e ser amado.
Infelizmente, nada daquilo cabia à Chitose. Cabia a ela apenas seguir o seu destino e orar para que fosse a vontade do Deus Supremo evitar aquela tragédia. O ser celestial escutou sua mente, esboçando o que poderia ser entendido como um sorriso aos mortais.
— É uma pena que esse destino não possa ser presenciado por você, minha filha.
As últimas palavras do responsável por enchê-la de medos e esperança não seriam lembradas ao acordar, como bem sabia. Foi assim que, abraçada ao próprio ventre, ela aceitou o que viesse dali em diante.
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