Volume 1
Capítulo 2: O poder da alma trazida para fora
O relógio de LED em cima do criado-mudo ao lado da cama marcava 03:03 AM quando Saketsu escutava qual era o plano do felino sobrenatural chamado Ukyi.
— Primeiro, tu terás de te adequar para a ocasião, e para facilitar o processo, vás para o meio do hexagrama.
— Fala desse desenho satânico? — apontou a estrela de seis pontas riscada no chão, não gostando muito da ideia.
— Isto não és um desenho satânico. E vás, não temos tempo.
— Pronto, e agora?
— Concentre-se, sinta tua alma e a divida de teu corpo.
— Como é que é!? — se espantou, confuso, ao ouvir a instrução dita de forma tão simples, pensando até ter ouvido errado.
— Apenas faças.
— Tá bom… — concordou, não muito seguro. Não sabia ao certo como fazer aquilo, então apenas tentaria da maneira dita. Fechou os olhos, respirou fundo e tomou foco durante alguns segundos, pensando nas palavras: “concentrar, sentir a alma e a dividir do corpo…”
Com a intenção em mente, sentiu de repente um calor reconfortante o envolvendo, emanando como se fossem chamas, que então se apagou um pouco antes de ouvir a voz de Ukyi:
— Está feito.
— Já? Só isso? — perguntou abrindo os olhos, saindo do breve momento que até se tornara agradável.
No fundo esperava mais… parecia que nada havia acontecido, até olhar para baixo e notar um corpo caído aos seus pés, completamente idêntico a si, até na roupa. Não demorou para cair na real:
— Não pode ser… não acredito… Isso quer dizer que eu…
Achava estar preparado antes, mas agora, se vendo fora do próprio corpo inconsciente no chão, ficava assustado. Tudo o que sempre quisera era viver uma vida normal, se formar na escola, se divertir com os amigos, ter uma namorada… e tudo acabaria assim?
— Cuidado, Saketsu — alertou Ukyi no instante em que a vidraça se quebrou, ao algo pular para dentro do quarto.
Saketsu e Ukyi se afastaram a tempo e olharam para a nova companhia hostil que havia se convidado. Era um homem, que se recompunha após cair agachado, mantendo-se em pé de forma contorcida, segurando um enorme facão, cabeça torta, olhar psicótico com brilho vermelho mirando diretamente o garoto.
Saketsu o encarava de volta, tentando manter uma expressão séria e cautelosa, mesmo sentindo um medo crescer — algo que não podia se deixar dominar, senão morreria facilmente no confronto que, pelo visto, estava prestes a começar.
A tensão energética que emanava entre os dois era tanta que começou a afetar a lâmpada do teto, fazendo-a piscar como se fosse queimar — até que queimou. A única claridade passou a ser a da rua entrando pela janela, mal o suficiente para enxergar.
— Espero que saibas usar uma espada — disse Ukyi.
— Hã? Como assi…
O felino se transmutou em uma forte e iluminada luz vermelha, e no instante seguinte uma espada surgiu no ar, caindo direto nas mãos de Saketsu, que quase a derrubou, segurando-a de forma desengonçada antes de firmá-la.
— Que foi isso do nada?! — gritou, nervoso e assustado pela ação surrealmente repentina.
Mas sua atenção logo foi tomada pela arma medieval, cuja lâmina de dois gumes media cerca de setenta centímetros, composta de um metal escuro e polido que lembrava pedra ônix ou cristal obsidiana.
O cabo para duas mãos era enfaixado com fita do mesmo tom dos olhos de Ukyi. A guarda preta, levemente inclinada, possuía um risco central da mesma cor, percorrendo de ponta a ponta e interceptado no centro por um pequeno crânio dourado — o mesmo que antes ficava na testa do felino.
Saketsu se fascinava: era mais leve do que aparentava, com particularidades que a faziam parecer coisa de outro mundo. Distraído, só voltou a si quando Ukyi avisou através da lâmina, percebendo o zumbi-sobrenatural prestes a acertar um golpe.
Por puro reflexo e agilidade inesperada, Saketsu desviou para o lado, vendo o facão cortar o ar verticalmente onde estava um segundo antes.
— Concentre-te na luta. Um deslize e será teu fim — repreendeu Ukyi quando o garoto se afastou e se reposicionou, espada firme em mãos.
— Foi mal… — sorriu nervoso.
— Aquilo pode parecer uma pessoa, mas ali já não existe humanidade. És apenas uma casca possuída por um espírito maligno, e ele não hesitará em matar-te. Então não te contenhas também.
Não se conter? Saketsu entendeu a instrução, mas o quarto era pequeno demais para dois oponentes lutar com lâminas — e ainda havia seu corpo verdadeiro caído no chão ocupando espaço entre eles.
Após alguns segundos sem movimentos, o zumbi firmou o facão e começou a se aproximar lenta e ameaçadoramente. Saketsu manteve a expressão segura de “pode vir”, apesar da gota nervosa de suor escorrendo no canto da testa.
Subitamente, o zumbi se adiantou em um movimento brusco, chocando sua lâmina contra a do garoto.
Iniciou-se uma disputa de forças. Saketsu se espantava… achava estar preparado, mas agora que percebia que estava lutando contra algo que queria o matar, que um deslize poderia ser seu fim, era apavorante.
“Droga… não é como se fosse a primeira vez. Vamos… quantos mais assustadores que esse você não matou nos jogos e nos… pesadelos?!”, tentava se encorajar enquanto continha a pressão que o zumbi impunha. Mas não importava o que dissesse, a situação atual era completamente diferente de tudo que já vivera.
Então outra voz se misturou aos seus pensamentos:
“Os limites só existem se você os deixar existir…”
“Faça do seu poder a capacidade de enfrentar qualquer coisa sem medo…”
Ele conhecia a voz do homem. As palavras vindas do fundo de seu consciente eram as mesmas que o motivaram uma vez, quando mais precisara, servindo para o mesmo propósito atual: encarar gente!
— Obrigado, Tio! — sorriu com valentia. Suas mãos estavam trêmulas ao conter a espada do zumbi, mas ao rugir com força, conseguiu ganhar força para empurrá-lo bruscamente para trás.
— Escute, Saketsu: apenas lute, entendestes? — orientou Ukyi. — Não deixai-te levar pelo medo. Tu consegues ganhar sem problema.
— Certo! — o garoto afiou o olhar, determinado.
Os oponentes se encaravam novamente, mas, diferente de antes, Saketsu não esperaria. Avançou. O zumbi também.
Da rua dava para ouvir as fortes batidas tilintantes das lâminas colidindo várias vezes, denunciando que a luta era equilibrada — o que não era bom. Depois de alguns golpes, Saketsu sentia o cansaço chegar, e não sabia quanto mais aguentaria.
Em certo momento, após um ataque falho, o zumbi se afastou. Saketsu fez o mesmo. Estava ofegante. Para um jovem que mal fazia exercícios, lutar contra um adulto possuído era longe de fácil.
— E aí, Ukyi, o que devemos fazer?!
A espada não respondeu. Mas sua voz fatigada chamou a atenção do zumbi, que se recompôs e avançou, desta vez com tanta força que empurrou Saketsu para trás. O garoto desequilibrou e bateu com as costas na parede. Precisou rolar para o lado para não ser atingido pelo corte que veio rapidamente.
Saketsu se reposicionou. Ambos avançaram um contra o outro de novo. Saketsu mirou o pescoço enquanto algo lhe dizia que ali era o ponto-chave, já que estava lutando com um "zumbi", assim podendo dar fim nele como nos filmes. Mas o zumbi conseguiu repelir o golpe, fazendo o garoto perder a postura e parar de guarda aberta. O zumbi veio com ainda mais ferocidade.
Sem meios de se defender, Saketsu viu a lâmina se aproximar… se aproximar…
“Espera!”
Algo estava errado. De repente, o movimento do zumbi parecia mais lento. Saketsu via tudo com clareza, sentia seu corpo até mais leve. O que estava acontecendo?
No fim, a lâmina cortou apenas o ar.
O zumbi paralisou — não por vontade própria, mas por dificuldade de mover o corpo. Olhava por cima do ombro e via o garoto parado de costas, espada empunhada na horizontal. A imagem se inclinou, deslizou e subiu… Metade do zumbi havia caído após receber um corte reto ao meio da cintura.
Saketsu se encontrava com uma expressão surpresa, entendendo que não havia sido o tempo que tinha ficado mais devagar antes, e sim que ele e sua percepção é que haviam ficado mais rápidos, conseguindo assim se desviar e contra-atacar.
Mais aliviado, suas pernas fraquejaram quando desfez a postura. Olhava incrédulo para a espada, pensando: como havia sido possível tal velocidade e força?
Seriam atributos de um “glasbhuk”?
Seu corpo que julgava ser "espiritual" não era muito diferente do "físico". As leis físicas permaneciam as mesmas, por outro lado seus movimentos e sentidos estavam mais apurados — e isso o empolgava.
— Uau! Você viu, Ukyi? Foi incrível! Eu me sinto mais leve! Mais forte! — cerrou o punho. Mas a alegria foi interrompida por um barulho atrás de si: algo como um ninho de insetos agitados.
Virou-se para checar e viu que o corpo do zumbi, provavelmente já morto, se corroía no chão. Com uma cara estranhamente confusa, Saketsu observou o rápido processo composto de apodrecimento, diluição e, por fim, desintegração, até não sobrar um resquício sequer, nem mesmo da roupa e facão do zumbi.
— Ainda não acabou — disse Ukyi pela lâmina. O barulho atrás de si dizia tudo.
Dois zumbis haviam saltado para dentro do quarto pela janela, recompondo-se e mirando-o com seus olhos avermelhados.
Tivera tanto trabalho para lidar com um que até esquecera dos outros lá fora. Mas agora, entendendo suas novas capacidades, estava animado para testar até onde podia ir.
Os zumbis avançaram. Saketsu sorriu. Quando estavam prestes a atacá-lo, ele passou por entre eles. Segundos depois, seus corpos despencaram com cortes.
— Isso é… incrível! — gritou animado. — Acho que darei o nome de “Corte Voraz”!
— Saketsu, és hora de ir para fora.
— Sim! — respondeu, pulando a janela do segundo andar.
Caiu agachado na rua, endireitou-se e apontou a lâmina para mais de uma dúzia de zumbis armados com facas e espadas.
— Podem vir!
Dois avançaram. Saketsu os cortou ao meio com facilidade. Assim continuou: avanços, desvios, retaliações.
Restavam nove. Recuados, frustrados. Saketsu ria da expressão deles.
Flexionou as pernas contra o asfalto, inclinou o corpo e impulsionou-se com um giro no ar como uma hélice cortante.
— “Corte Estraçalhador de Almas!” — gritou ao parar agachado, de costas para os zumbis que havia acabado de estraçalhar ao passar voando entre eles.
Quando olhou para trás, viu que só restava cinco de pé, enquanto os outros eram só pedaços que se desfazia no chão. Estavam nervosos, tanto que não conseguiram conter o ódio e avançaram para cima de Saketsu, que permaneceu parado até se aproximarem.
Tentaram a todo custo acertar qualquer golpe, mas o garoto se desviava confiante, chegando até a agir de maneira arrogante, afinal estava ocorrendo tudo bem, acreditava estar com a vitória garantida, só pretendia brincar mais um pouco, isso até que o inesperado aconteceu.
Em um dos movimentos, ele acabou pisando errado e escorregou o pé na beirada da calçada, onde se desequilibrou e pendeu de bunda no chão, dessa forma expressando uma certa aflição, visto que os zumbis já haviam se aproximado demais.
Um pulou. Saketsu conteve-o com a mão livre, a outra apoiada no chão junto à espada. Queria poder usá-la, mas se fizesse acabaria perdendo a posição e assim seria estraçalhado pelo zumbi ensandecido que botava pressão.
Viu os outros cercando. Estava ferrado.
— Droga, Ukyi... faça algo! — clamou enquanto ainda fazia o que podia para manter-se longe do zumbi, mas não obteve resposta alguma.
Fechou os olhos frustrado, notando que sua tremedeira já não era porque estava contendo a força sobre si, e sim porque sentia medo. Não queria morrer, mas também não conseguia pensar em nada que pudesse fazer para conseguir sobreviver. Tinha que haver algo, as coisas não poderiam terminar assim!
E então sentiu um calor interno forte, uma energia percorrendo seu pulso e sendo emitida pela mão estendida que o mantinha vivo.
Todo peso sobre si sumiu.
Ao abrir os olhos, viu que o mesmo zumbi se distanciava, queimando em meio às sinistras chamas negras, que possuíam um tom púrpuro semelhante à cor dos olhos do garoto.
Nisso, os companheiros vorazes saltaram para as chamas e acabaram envolvidos por elas, passando a serem consumidos a cada instante, envoltos em gritos agoniosos.
— Que diabos…
— Este és o poder da alma trazida para fora — falou finalmente Ukyi.
A dúvida tomou conta do garoto, que olhava para a própria mão que nem parecia ter acabado de atirar aquelas chamas obscuras, e voltou a olhar para os zumbis que ainda ardiam loucamente nelas. Logo começaram a encará-lo, como se quisessem mais.
— E como faço para usar de novo?
— Sinta a energia dentro de ti e libere-a.
Saketsu assentiu, compreendendo um pouco o que Ukyi quis dizer. De certo modo estava familiarizado com esses conceitos. Energia. Poderes. Parecia que a experiência de anos assistindo animes e jogando jogos de luta finalmente estava começando a servir para alguma coisa.
Fechou os olhos e começou a imaginar algo como uma força oculta dentro de si.
“É só sentir e liberar, certo?”
Os zumbis se aproximavam. Saketsu enfiou a espada no chão, abriu os olhos… e as mãos flamejaram de novo.
Disparou por um lado, incendiou o outro, trocou alguns golpes, e assim foi indo, aproveitando o máximo que podia para abusar das capacidades recém-descobertas em uma deslumbrante cena de ação.
Momentos depois, a rua estava cheia de restos de zumbis se decompondo nas chamas negras. Saketsu deitou no asfalto, braços abertos, arfando enquanto contemplava o céu estrelado.
— Devo admitir que tu te saíste melhor do que eu imaginara — dizia Ukyi já em sua forma de felino, parado de pé ao lado do garoto, que, de tão esgotado, conseguiu apenas soltar um sorriso satisfeito como resposta.
Havia dado tudo certo. Saketsu pôde inaugurar sucessivamente seus novos poderes e assim conseguira vencer sua primeira batalha sobrenatural para sobreviver. Mas os problemas não haviam acabado.
Era o começo, o início de uma grandiosa e sinistra jornada que transcenderia a realidade.
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