Volume 1

Um adeus

A Morte podia ser considerada por muitos um rito de apenas uma ida. Um momento de tristeza na qual o espírito de outrem jamais retornará e que seu fim era este. Nós, do Sul, nunca pensamos de tal forma.

A Morte também é vista como uma amiga. Nos tempos antigos era venerada como a guardiã de toda vida decidindo quem merecia e não merecia sua próxima reencarnação, ela dá ao mesmo tempo que a retira. Nos tempos de hoje, Mistico[1], ela ainda é vista com bons olhos apenas para aqueles que eram honrados, os que eram vistos com malícia — como os Nômades — não eram postos da mesma forma, com as pessoas desejando seu esquecimento na pós vida.

Eu ainda via a morte como a guardiã da vida de todos os seres, até dois dias atrás quando meu pai, o rei de Homeworld, faleceu nas mãos do assassino frio Merovak. Minha concepção da morte mudou a partir do momento que ele tirou a vida dele com ambos sendo enterrados debaixo do nosso devastado castelo.

Naquela tarde nublada, o Ancião[2] estava presente na Cerimônia de Descanso — o momento que colocamos seu corpo ou algum pertence deste para servir de base para que seu espírito descanse nos braços da Morte; no centro um caixão de mármore fechado, abaixo na sua base ficam os galhos secos para se fazer a pira funerária que queimará o falecido e libertará seu espírito para outra vida —, ao lado dele estava Paracelso num púlpito de madeira prestes a começar a cerimônia.

Muitos estavam presentes, amigos elegantes, alguns cientistas e alguns dos clãs que ficaram em solidariedade ao enterro. A garoa parecia sem fim e o clima pensado e melancólico atinge a todos, alguns trovões ecoavam de fundo no cemitério que estava repleto de desconhecidos fora o coveiro, era bem incomum. Eu encarava o caixão de mármore como quem olhava para a própria culpa personificada e o peso nos meus ombros era bem pior quando o caixão mostra meu reflexo e deixa nítido tal coisa.

Paracelso se preparou, o Ancião terminou sua oração e veneração para que a Morte guiasse o rei. O mago abriu um livro, proferiu alguns ritos antes de começar o Canto de Despedida[3], as musas cantavam em língua antiga em roupas de seda e algodão com um véu cobrindo seus rostos. A cerimônia seguia contínua, as orações e cantos arcanos são ditos de forma harmoniosa com a melodia dos cânticos. Algo tão belo para um momento de pura tristeza, que irônico.

Paracelso logo terminou de falar, a rainha se colocou na frente e deu início à entrega das lembranças ao túmulo com três fortes batidas do seu cajado no chão.

Após, a rainha Hella retira um dos seus anéis de prata com um brasão e o coloca no meio do caixão.

— O último resquício do meu marido. Do rei. Ele me deu este anel quando nos casamos como uma promessa de que ele seria melhor, melhor que antes.

O anel no centro foi preenchido com uma flor que eu pus, de certa forma seria como uma despedida mesmo, uma dolorosa despedida antes da hora. A raiva estava instalada no meu coração, escondida, mas eu a sentia, crescente e ardente assim como a pira consumindo o caixão. A fuligem da madeira abaixo solta partículas no ar se misturando entre a garoa.

Após o resto da cerimônia, fui para perto do lago do cemitério contemplar a vista amargurada e musga. O vazio me consumia e a vontade de me afogar me assombrava. Marionete, o alquimista-chefe larga Karen, que segurava Lana, e vem me abordar em meu momento de solidão. Vestia um sobretudo preto e usava uma touca de algodão. Seu rosto, coberto por uma máscara dourada de expressão morta, me olhava com quietes, suas mãos que estavam guardadas no sobretudo pularam para fora para me cumprimentar.

— Seu pai foi um homem com grande visão. Com defeitos, mas ele visava vocês como a missão protetiva dele. No fim, ele deu a vida para que isso.

Quase não havia vento para farfalhar as folhas, vejo o lago, em sua quietude, refletir o tristonho céu fechado e cinza, Marionete conversa sobre os pais e seus importantes papéis em nosso molde, suas mãos moldadoras nos influenciam mais no que pensamos, seja diretamente ou não. Me mantenho sem expressões, meus olhos olham-no de canto por um instante e notam que um dos braços estava enfaixado por debaixo da manga, como se houvesse sofrido algum acidente. Ele ainda me encarava em seu manto escuro, supus que esperava por alguma resposta minha, mas após seu monólogo ele me deixou a sós com minhas reflexões.

A rainha se aproxima de Lilith que me encarava, próxima ao fogaréu amenizado. Seu olhar de ternura para comigo a fazia cobrar de si mesma um apoio amigável. A rainha encoraja uma abordagem entre amigas enquanto ela cuidava dos convidados e suas condolências.

Sinto sua mão aterrissar suavemente meu ombro.

— Oi — ela diz suavemente.

— Oi.

Ela para no meu lado.

Forço um sorriso para acalmá-la, mas minha tentativa não sai como o planejado. Meu sorriso de canto apenas reforçou minha melancolia. Lilith não precisava tentar ver através do véu escuro sob meu rosto para descobrir como eu estava. Ela me olha de cima a baixo. Trocamos algumas falas rápidas até ela chegar aonde queria em nossa conversa.

— Sei que criou rancor dele. Mas você sobreviveu. Está viva e ele morreu.

Mantenho o rosto fixo para a água, segurando as lágrimas.

— Não — respondo. — Ele ainda está por aí, sei disso…

— Não tem como ter certeza…

— Mas eu sei!… eu sinto.

O silêncio cobriu nossas bocas, não adiantaria o que eu dissesse a menos que eu tenha provas do que digo, e dizer que a minha própria sombra me confirmou sua sobrevivência apenas a faria questionar se minha cabeça saiu inteira daquela avalanche de pedra. Os momentos ainda permaneciam frescos na minha cabeça, mesmo que tenha ocorrido a três dias atrás. A turbulência mental é de fragmentar qualquer um, ver o pai ser perfurado na sua frente é traumatizante para qualquer um, de fato. Ainda sinto as frias mãos do Carniceiro ao redor do meu pescoço em alguns momentos, como se a qualquer momento ele aparecesse para terminar o serviço. Inconscientemente, encosto meus dedos na área de estrangulamento como se eu quisesse ter certeza de que não havia nada ali.

— Eu nunca fui próxima do meu pai, você sabe. Às vezes, após os sermões, eu me trancava no quarto pensando que provavelmente eu jamais sentiria tristeza na sua partida. Momentos de fúria e raiva sempre despertavam esse pensamento e eu os abraçava como algo certo de acontecer, mas…

Meu rosto vira instintivamente para Lilith. Segurar minhas lágrimas estava tão difícil quanto tentar socar uma parede. Eu continuei:

— Mas não é o que aconteceu… e…, dói demais…

Lilith pula com seus braços me envolvendo e antes que suas mãos se tocassem, diversas lágrimas já tocavam o tecido da sua roupa seguido de soluço e suspiros profundos. Sua doçura de pessoa é como o algodão absorvendo o sangue da ferida, um abraço seu foi de extrema necessidade e percebo isso neste momento.

O clima de funeral estava acabado para mim, queria apenas minha cama e meu quarto se eu pudesse, mas eles foram provavelmente consumidos pela Praga junto do castelo.

A rainha permanecia com os convidados, a garoa parecia ir embora, mas não seus convidados. Cada um vem e vai repetindo as mesmas coisas, mas com palavras diferentes, isso não a confortava nem um pouco. Ouvia palavras prontas na língua destes, vazias palavras, palavras sem total sentimento de verdade. Ela sentia o vazio consumir seu coração, manteve sua máscara social para eles, mas por trás dos panos escondia sua tristeza. Após interagir com sua maioria ela para em frente o caixão queimado, encara-o sem decidir se sente rancor ou ternura para com seu antigo marido. Saber que ele fez experimentos com pessoas para a dita “proteção” deles a colocava em uma linha tênue, suas ações eram nobres, mas de ações discordantes.

Suas mãos cerradas, e juntas, se mantinham na altura da cintura, se pressionavam quanto mais ela mantinha seu olhar. Estava se emocionando, ao mesmo tempo tinha raiva. Por que fazer tais coisas? Havia maneiras melhores para resolver problemas desse calibre, mas as respostas agora se foram junto a ele e seus mistérios, seus motivos. Sua casa desmoronada, sua vida arruinada. Nunca perdoaria o que Merovak fez na sua vida.

A dor dificilmente passará. — diz uma voz.

A rainha a reconheceu de imediato, uma voz tão única que pode ser reconhecida em qualquer canto do reino.

— Olá, Temporizador. Está aqui faz tempo?

Prefiro evitar as balbucias dos Senhores de Ö. Sinto muito por ele.

— Seus segredos e falácias se foram com ele para o outro lado. Ele nos traiu… ele me traiu. O desgraçado ainda morreu tentando nos proteger, e conseguiu.

Ela se vira para o companheiro do seu lado.

Temporizador, um robusto homem cujo caráter é bastante conhecido por seu foco, frieza e compaixão. Muitos o chamam de Cavaleiro Atemporal por ele ser tão antigo quanto vários magos e nunca aparentar envelhecer, um homem de estatura alta que carrega braços grossos e grandes mãos, seu traje épico cobre seu corpo por inteiro, por camadas de roupas e armadura negra cintilante. Um manto servia como cachecol cobrindo seu pescoço e caindo no seu ombro direito. A rainha vira seu rosto para ele, o capacete reflete seu o tristonho rosto da majestade — um capacete metálico dividido no meio por um vidro escuro moldado, uma pequena placa achatada percorre o capacete na área de um ouvido a outro.

Ele tinha seus motivos. Mesmo que por métodos duvidosos. Ele a amava, amava você e suas filhas. — Ele a conforta, olhando-a de cima.

Ambos encaravam e refletiam suas vidas enquanto algumas folhas farfalham nos seus pés sob a grama seca. A vida pode facilmente ter uma nova perspectiva de vida após algum trágico acontecimento, tirar esse tipo de visão de uma pessoa depois é bastante difícil, ainda mais quando envolve pessoas importantes na sua vida. O Cavaleiro via no olhar da rainha o arrependimento e a angústia, mas permaneceu quieto. Sua mão tentava se manter quieta, mas fisgava o ar querendo ir de encontro com a rainha para prestar seu apoio, mas a bajular não é uma verdadeira demonstração de respeito à perda.

A rainha se sentiu incomodada, e falou:

— Sei que quer dizer algo… Por que veio? Diga.

Ele cerrou a mão inquieta. Então respondeu.

Vim ver você. Pelo visto meu aviso não foi o suficiente, pode ser que tenham sido comprometidos de dentro para fora. Sinto muito.

Ele vira seu rosto para Lilith e a mim, próximas do lago.

Como ela está?

A rainha vira e acompanha seu olhar.

— Bastante abalada. Apesar de ela nunca ter tido muito contato com o pai, ela é quem mais está de luto entre as suas irmãs. Licença.

A rainha vem até mim, eu estava próxima a um salgueiro na margem do rio. Ela vê minha tristeza quase podendo a sentir apenas por chegar perto. Assim, ela cumprimenta. Dou um sutil sorriso, e volto a meu estado cabisbaixa. Minha testa sente o suave toque dos seus lábios seguido por um abraço caloroso e acolhedor em seu manto cujo toque do seu tecido lembra o céu. Ela ergue meu rosto e enxuga minhas lágrimas com seus dedos.

— Como você está?

Eu fungo o nariz.

— Sinceramente… sinto como se uma culpa fosse lançada sobre mim. Deveria ter sido eu. E ele sabia disso.

Ela limpa mais uma lágrima que escapa dos meus olhos. Fungo mais uma vez o nariz sem conseguir olhar para ela.

— Eu sei que dói. Também dói em mim. Mas por que não nos alertou sobre o que estava ocorrendo com você? Poderíamos ter ajudado você…

— Do mesmo jeito que ajudaram apagando minhas memórias?… — Corto-a com olhar indiferente e sobrancelha franzida.

A rainha se abala, suspirando. Não deixando o silêncio roubar suas palavras, rapidamente ela responde:

— Filha, entenda nós apenas…

— Esconderam de mim um pedaço do meu passado. Talvez essa parte poderia ter ajudado vocês a desvendar o que está acontecendo comigo.

— Filha…

— Mãe… só quero ficar sozinha por agora. Por favor.

Retiro-me do local, abatida e desamparada. A rainha se mantém debaixo do salgueiro enquanto observa eu me afastar. Temporizador se aproxima, então. Por detrás da rainha, ele comenta.

Não deveria ter escondido dela, eu avisei.

— Você me avisou de várias coisas. Sabemos que sou teimosa demais para ouvir certas coisas.

Ele solta um sutil e breve riso debaixo do capacete.

— De fato. — Ele diz.

Sua mão descansava junta à outra na altura de sua cintura, bem no cinto divisório. Um cutucava o outro, ansiosa. Ela suspira, ainda de costas para ele. Seu olhar se mantinha em mim, um olhar de preocupação, um olhar de mãe.

— Não sei o que fazer com ela. Primeiro o pai morre, depois ela perde sua confiança em mim, nem sua melhor amiga consegui a tirar neste estado. Estou preocupada até a alma.

Ela está chateada. Está angustiada.

— Talvez ela nunca me perdoe…

De fato.

Depois desse apoio, a rainha estala a língua e revira os olhos, logo se mantém em silêncio por um instante. Pois, ela questiona:

— O que eu faço?… Menti para minha própria filha, ela nunca irá me perdoar.

O Cavaleiro inclina sua cabeça para a rainha.

— Guie-a, ela está perdida. Está com raiva. Esteja ao lado dela antes que ela faça besteira. Não importa se ela está com raiva ou se prefere a solidão como companhia. Você ainda é a mãe dela. E como mãe, seja a melhor mãe que pode ser, minha rainha.

Tais palavras inspiraram a rainha que o fitou com brilho nos olhos. Seu coração acelerou, seu rosto enrubesceu, ela agradeceu o conselho se embolando com a própria língua e com o rosto cabisbaixo. O clima entre eles estava incomum.

Temporizador, o Cavaleiro Atemporal é um grande ser de puro respeito que se mostrou digno da amizade com a rainha, a anos eles se conhecem, mantém contato e conversam como empresários, sócios e amigos. Não sei explicar quando se conheceram, mamãe nunca comentou direito sobre eles, ainda mais quando meu pai estava por perto. Mas os dois são bastante próximos, ajudando um ao outro sempre. Há boatos que O Grande Temporizador e a Rainha Hella, de Homeworld já foram amantes por muito tempo até ela se casar, e se manteve assim até mesmo pouco depois do casamento dela, mesmo sem provas para afirmar tal boato muitos afirmam, e até comparam, que os dois são a essência do que “amor verdadeiro” significa de verdade. Eu nunca pude afirmar nada e até aquele momento em minha solidão não afirmava nada e nem acreditava naquela baboseira, provavelmente criada por um fanfarrão bêbado num bar qualquer.

O Temporizador enche o peito de ar e coragem, suspirando baixo.

Sabe que posso ajudar. Ajudá-las no que precisar… como já fiz no passado.

Ela o olha debaixo, sua cabeça inclinada solta um suave sorriso nos lábios. Ela o toca na lateral do capacete — onde seria equivalente à região da bochecha —, o acariciando e expressando seu agradecimento, pois ela, assim como ele, sabe dos boatos e não queria que eles voltassem a circular. Ao mesmo tempo que queria dizer não, seu coração implorava por um sim, por um momento de ajuda de quem ela podia confiar totalmente. Sua decisão é uma incógnita até mesmo para ela.

Ela o vê, como um homem visivelmente com saudades e preocupado com sua situação.

— Não precisa.

Você sabe que vou.

Ela solta um pequeno sorriso. Seus olhos o olham cima a abaixo.

— Mesmo estando longe, ainda fica disposto a nos ajudar…

Eles encostam suas testas, a rainha sente a mormaço vinda do capacete e fecha os olhos.

Sempre.

 


[1]  Período de época do livro: Princípio, Arcaico, Místico, Mundano.

[2]  A pessoa mais velha e quem rezava e liderava cantos nas Casas de Orações para os Deuses.

[3]  Oração de despedida com cânticos melancólicos de fundo

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