Dualidade Brasileira

Autor(a): Pedro Tibulo Carvalho

Revisão: Arisu


Volume 1 – Arco 1

Capítulo 1: Lewnard Hollick

Minhas mãos doíam, o rubro fluía livremente dali, maculando tanto o chão quanto meu alvo. Levantei o punho direito e gritei de dor ao acertar a madeira.

Mesmo cansado de lutar contra o mundo que nunca me deu sossego, cansado de trabalhar para sobreviver, cansado de estudar pela minha irmã, eu me recusava a cair.

Meus pés continuavam firmes no chão. Mesmo que meu corpo inteiro tremesse em cansaço e dor, minha base tinha que ser firme.

Essa era uma lição que não me ensinaram e que tive de aprender quando ainda era jovem.

Bem, ainda sou jovem. Alcançarei a maioridade em alguns meses, e, enfim, vão deixar que eu cuide da minha irmã.

Mais um soco impactou contra a madeira e rachou a superfície. “Estranho… comecei a socar essa há uns dois minutos e ela já rachou?” Parti para outra árvore e estava para recomeçar a rotina quando o som de sinos tocando foi ouvido.

“Já são 7 horas?” O tempo tem andado estranho ultimamente. Alguns dias passam mais rápido, enquanto outros são anormalmente lentos. O mais estranho é que só eu notei isso… bem, não importa muito.

Uma coisa que se aprende rápido em Juvicent é que sonhar acordado é uma perda de tempo, e perdas de tempo não te levam a lugar algum. Sim, eu aprendi cedo que o correto é traçar metas e trabalhar para alcançá-las.

— Pena que foi tarde demais. — Sempre que lembro dos meus erros, do meu passado, não posso deixar de sentir ansiedade e medo. Enquanto outros se preparavam, eu lutava contra problemas que não existiam. Enquanto outros trabalhavam, eu vadiava.

Era patético.

Tirei minhas vestes e mergulhei meu corpo cansado no rio gélido. Olhar para o fundo daquele abismo gélido e não ser encarado de volta sempre me trouxe um sentimento de fascínio.

Quanto mais eu trabalhava, mais aquele frio ardia e queimava minhas preocupações, deixava-me relaxado e feliz.

Comecei a nadar, a corrente limpava o sangue e suor do meu corpo enquanto meus músculos relaxavam. Aquela era uma rotina que não fazia sentido para ninguém, nem mesmo para mim.

Apenas sabia que socar as árvores até sentir os ossos trincarem me dava um sentimento de liberdade e calma que não conseguia achar em nenhum outro lugar.

A dor sempre foi uma companheira fiel na minha vida. Eu causei e sofri muito dela, desde a morte da minha mãe e do pedido que ela me fez, até as consequências desse pedido.

Eu tenho cuidado de minha irmãzinha, Grace, desde a morte do meu velho, 8 anos atrás. Mesmo que não tenha condições monetárias para isso, eu sempre a protegi.

Mergulhei mais fundo no lago, tanto pelo exercício quanto pela sensação de escape da realidade. A escuridão ficava mais e mais densa, e o ar mais e mais distante.

Não me importei.

Dentro de mim, eu sabia que devia voltar para cima por alguns segundos, que estava indo além do meu limite… mas… a sensação de tranquilidade falou mais alto.

Conforme nadava, algo brilhou lá no fundo. De repente, volto a realidade ao sentir algo se movendo ao meu lado. Tento nadar para cima mas algo me segura…

E me causa uma das piores dores que senti na minha carne.

Segurei um grito enquanto ouvi a cacofonia vibrar a água. O sentimento de tranquilidade foi substituído por um de medo e ódio… estava dividido entre fugir e matar seja lá o que estivesse ao meu redor.

Nadei para cima.

“Não posso lutar sem ar…” Estranho, de onde veio esse pensamento? Bati as pernas mais rápido e, enfim, escapei do abraço do lago e corri para a terra.

Olhei para o corpo de água, uma mistura de prazer e pavor se fez presente dentro de mim. Ouvi uma voz melodiosa me chamar para dentro da água.

Andei um passo para trás quando me choquei com uma parede.

“Estranho…” Virei-me para trás e imediatamente senti o ar ser tomado dos meus pulmões. Vi o pé levantado de um estranho antes de ser lançado de volta para a água. “O que raios…” Antes que sentisse o abraço frio da água me clamar, vi os olhos amarelos do estranho brilharem com orgulho.

“Esse desgraçado…” Virei o corpo e desviei de um enorme corpo de carne e escamas. Se as anotações do meu velho estiverem corretas, era uma sereia e algum outro Nor de classe bestial.

Caí na água e nadei em direção ao monstro. Sabia bem que se fugisse seria devorado… então jsó tinha uma chance… e essa era lutar.

Lewnard… lembre-se bem do que vou te dizer. A memória de meu pai veio à mente enquanto encarava os olhos vermelhos da serpente marinha à minha frente. — Esse mundo tem dois lados. Um é aquele em que os humanos normais vivem, ignorantes da própria ignorância… o outro… é aquele em que nós vivemos.

A criatura tentou me abocanhar, mas eu desviei no último segundo e dei um forte soco nas guelras dela. Como se fosse mágica, ela se transformou em uma mulher, que segurava o pescoço com uma expressão de ódio.

Antes que pudesse se transformar de novo, dei um forte golpe no peito dela e nadei para cima.

Esses treinos matinais tinham dois motivos. O primeiro era para acalmar a raiva imensa que sinto dentro de mim todos os dias… o segundo… era me preparar para matar essas coisas.

Assim que emergi, vi que estava sozinho. — Verme desgraçado! — Senti a canela queimar no mesmo lugar que a sereia tentou me tocar, mas não demonstrei fraqueza.

Passaram-se minutos, mas, depois de uma tensa espera, estava só. Com um suspiro, levei a mão até o peito, onde a marca que meu pai deixou em mim brilhava.

Aquela era a proteção que todos os herdeiros ganhavam antes de poderem herdar os Diários Astrais: uma salvaguarda que nos permitia viver um pouco a normalidade antes de nosso corpo estar pronto para as responsabilidades que “herdamos”.

De fato, estava prestes a completar 18 anos e meu relógio astral estava cada vez mais próximo de começar a tocar, e eu ser obrigado a lutar numa guerra que não é minha.

Quando enfim completar 18, vou me tornar um escravo.

 

Após o mergulho, voltei para a cidade. Eram 8 horas, e as ruas estavam lotadas com assalariados que iam para os seus empregos, assim como fregueses que visitavam as lojas.

Caminhei até enfim chegar no meu destino e olhei para o bar rústico e um pouco acabado com um sorriso no rosto.

Adentrei ali e cumprimentei meus colegas de serviço enquanto ouvia o rádio relatar o assassinato de mais um no décimo terceiro distrito.

— Falamos aqui com o Inspetor de Polícia, Nick Edgemoore. Nos diga, acharam algum padrão por trás dos assassinatos do Moedor? — Me atentei enquanto colocava o uniforme. Qualquer notícia de Nick para mim era algo bom.

— Bem, fora a brutalidade dos atos, nada relevante. Não há um padrão claro nas vítimas.

— Alguns acreditam que o Moedor escolhe as vítimas de acordo com a renda anual delas… eles também dizem que há uma mensagem por trás das mortes. Há alguma verdade nisso?

Um silêncio adentrou o bar, era claro para mim no que Nick pensava. Não precisava ser um gênio para perceber o debate interno e as consequências de um lado vencer.

— Não posso falar muito sobre isso… — começou, e eu pude sentir a decepção do repórter dali. — O que posso falar é que há uma mensagem nos assassinatos. Para quem essa mensagem é e o que ele espera conseguir com ela são duas coisas que ainda estamos trabalhando.

— Cambada de inúteis. Se fosse eu, já teria pegado esse maldito há tempos — suspirei ao ouvir a voz de um dos meus colegas reclamar. Ao mesmo tempo, terminei de me aprontar e saí do vestiário. — Hollick.

— Truman.

Se tinha alguém que eu não suportava, esse era Galliar Truman. O sentimento era mútuo, pois ele também não escondia o quanto não me suportava.

Ambos nos encaramos por alguns segundos, e eu pensei no quão fácil seria começar uma briga com ele e lhe ensinar uma lição… mas o pensamento de que aquele que começasse a briga seria o derrotado sempre me parou.

Eu era mais forte e mais ágil, mas Truman era esperto. Sabia bem que, se eu ganhasse a luta, eu seria demitido enquanto ele ganharia simpatia.

Aquele que começasse a luta seria o derrotado.

— Já bebeu demais, senhor. — Uma das minhas colegas arrancou o quarto copo de vinho da mão de um dos fregueses e passou reto.

Esse era outro motivo do porquê eu não podia perder esse emprego. Juvicent era uma cidade-estado na nação de Anjus e a nossa estimada pátria estava em uma guerra fria com Migrand e, recentemente, perdeu um dos principais comerciantes de vinho para o inimigo.

Por isso que uma lei entrou em vigor para evitar que percamos o comércio de álcool.

Em parte, não é de se estranhar que haja pessoas como o Moedor lá fora. Quer dizer, esse mundo não ajuda a sanidade de ninguém. Mesmo eu não posso me considerar 100% são.

Só quero criar uma boa carreira como policial e cuidar da minha irmã.

 

Conforme a hora de fechar se aproximava, vi mais e mais clientes deixando o bar. Fives, o dono, já havia saído, e só restava eu, Truman e uma colega nova. Estava separando as chaves quando o meu nariz coçou.

Um cheiro desagradável de cadáver em decomposição. Arregalei meus olhos e corri em direção à porta. Os berros dos meus colegas não eram importantes, nem a surpresa que eles exibiram quando, ao sair pela porta, eu apenas entrei ali de novo.

Era uma barreira.

— Aonde pensa que vai, herdeiro dos Hollick? — Desviei de um forte soco, que quebrou uma das mesas em pedaços. — Eu e minha colega temos muito o que conversar com você…

 



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