Crônicas Divinais Brasileira

Autor(a): Guilherme Lacerda


Volume 1 – Arco 3

Capítulo 20.2: Cão, Macaco, Porco e Rato - Parte 02

Já esperavam por ele no portão.

De braços cruzados, a vice-mestra acompanhou com os olhos enquanto a moto deixava o bosque e subia a colina onde a base se localizava. Ao estacionar, Akito desmontou com um movimento cuidadoso, o que não passou despercebido.

Ainda que estivesse um pouco melhor depois da viagem que o trouxera de volta, levaria dias para uma recuperação adequada. É claro, sem considerar as recompensas do Sistema.

— Você não me parece melhor do que na última vez em que nos vimos — Jenna comentou, olhando-o de cima a baixo. — Mas tem alguma coisa diferente. Não sei dizer o quê, mas tem.

— É bom ver você recuperada, Srta. Spencer — ele respondeu, sem saber muito bem como estaria o humor dela e do mestre de guilda com seu sumiço.

A vice-mestra estalou a língua.

— Não disse que era pra me chamar de Jenna?

Ele hesitou.

— Bom… eu pensei que…

— Isso sim é um problema — Jenna riu. — Você é burro, Urushibara. Deixe os pensamentos para o mestre e use os músculos ao invés do cérebro.

— Funciona para você? — indagou o jovem espadachim, erguendo uma sobrancelha.

— É como eu disse. Tá aí todo arrebentado e ainda tem coragem de me fazer essa pergunta cheia de ironia. Burro! Alguém mais esperto saberia que eu posso acabar com ele num golpe só.

Akito permitiu-se um sorriso.

— Por favor, não — pediu, erguendo as mãos. — Estou encrencado por sumir esses dias?

Ela bufou.

— Você não é prisioneiro, Akito. Pode ir aonde quiser. Nós só ficamos… preocupados — a palavra saiu meio estrangulada e o rapaz notou finalmente a aflição que tomara conta dela, nas palmas das mãos suadas que Jenna enxugava na roupa.

— Ficou preocupada comigo?

A resposta dela foi um soco no meio do peito, que o fez quase cair de costas, não fosse a própria mulher segurá-lo.

— Cala a boca! Não desperdicei um único pensamento com você. Só estou aqui porque Corrin pediu. Fiquei ocupada treinando após a batalha no shopping, para me colocar em forma novamente.

— Sei… e o mestre da guilda?

— Ficou surpreso com a sua súbita partida e perplexo quando Petr relatou ter encontrado você em perfeitas condições.

— Foi urgente… — Akito começou a explicar, mas se calou ao ver que Jenna balançava a cabeça em negativa.

— Poupe sua saliva para o relatório. Corrin o está aguardando na sala da administração.

Ele deu de ombros e começou a empurrar a motocicleta para dentro.

— Mas antes, Akito — ela o interrompeu, olhando curiosa para a Night Engine. — O que é isso?

— Eu a comprei de um engenheiro no andar dezessete.

— Cogsworth?

— Sim — ele acenou positivamente com a cabeça. — Como você sabe?

— O homem é uma lenda. Seu estilo é arcaico, porém, único. Dizem que ninguém faz veículos usando os materiais recolhidos na masmorra como ele. E como é difícil subir veículos de grande porte pela Babel Verdadeira, ouvi dizer que ele construiu uma oficina dentro da torre.

— Sim, eu estive lá.

— No andar dezessete?

— Isso aí.

Ela parou por um instante, quando já estavam quase chegando à garagem do forte.

— Não vai me dizer que você matou aquele rei vampiro?!

O comentário fez com que Akito deixasse escapar um risinho.

— Uma dezena de guildas nacionais estão lutando contra ele e você acha que eu, sozinho, resolvi o problema? Melhor usar os músculos do que cérebro, Jenna. Não foi esse o seu conselho?

Ela cerrou o punho e Akito trincou os dentes, já esperando um soco, mas a vice-mestra desistiu com um suspiro.

— Suponho que mereci essa.

— Não seja tão dura consigo mesma, eu só estava brincando. O que você quis dizer com “é muito difícil subir veículos de grande porte pela torre”? É impossível passar um carro por aquele elevador.

— Ninguém falou sobre as escadas para você?

— Escadas? — Akito balançou a cabeça confuso.

Jenna suspirou.

— Mais tarde eu te explico, tá bom? Agora vamos logo, pra você fazer esse relatório e a gente comer alguma coisa.

***

O sol de fim de tarde parecia imitar o carmesim em seus olhos.

Quando Akito e Jenna entraram no escritório da guilda, encontraram Corrin preenchendo uma papelada, por trás da robusta escrivaninha de madeira escura a dominar toda uma parede do cômodo. O rabiscar da caneta apenas se interrompia por cliques ritmados no mouse e o bater frugal do teclado, quando o mestre passava alguma informação para o arquivo digital, mas, ao vê-los adentrar a sala, ele ergueu os olhos da tarefa e deu um sorriso cheio de dentes pontiagudos.

— Akito! Fico feliz que esteja de volta.

Ele se ergueu e foi até os dois, dando tapinhas no braço do jovem espadachim.

— Você parece ocupado, não quer que eu volte outra hora?

— Besteira! — Corrin redarguiu. — É apenas a documentação mensal exigida pela administração da cidade para o registro da guilda. Ainda tenho tempo de sobra para entregá-la. Sentem-se, temos muito sobre o que falar.

Eles o fizeram, posicionando as duas cadeiras defronte para a mesa de trabalho do mestre.

— Pensei que você estaria mais… — disse o espadachim com um pigarro.

— Atônito? — emendou Corrin. — Eu confio na sua força, Akito. O que eu quero que você entenda é que me preocupo com os meus, só isso. Não te escolhi aleatoriamente para fazer parte da guilda, e tão pouco trato as vidas de nossos membros com temeridade, mas estamos em guerra contra Atlas. Uma guerra velada para a guilda, porém, aberta para você, especialmente após o discurso na cerimônia de boas-vindas. Por isso me preocupo e acredite quando eu digo que sei como Atlas pode ser cruel.

Suas palavras desarmaram o rapaz por completo.

— Desculpe — Akito suspirou, entrelaçando os dedos. — Eu deveria tê-lo avisado, mas era urgente!

— Eu sei — o mestre concordou num aceno. — Ou você não sairia nas condições em que estava. Mesmo que Petr tenha reportado que o viu sem nenhum arranhão.

Houve um momento de silêncio em que os dois se encararam, mas Corrin desistiu de ponderar mais sobre a estranheza.

— Ouça — ele continuou —, eu sei que está escondendo algo de nós e não vou forçá-lo a dizer.

— O que você quer dizer com isso? — Akito perguntou, apertando as mãos até que os nós dos dedos ficassem todos brancos.

— Recebi notícias de um velho amigo. Ele me disse que ouviu de Ienaga Senri que você estava no andar dezessete.

— E daí?

— Não se faça de idiota, Akito — desta vez havia um quê de irritação na voz de Corrin quando mostrou as presas num sorriso. — Nós dois sabemos bem o que ele é, ou melhor, o que não é.

O filho do deus da guerra arregalou os olhos, enquanto Jenna olhava de um para o outro, como se assistisse a uma partida de tênis de mesa.

— Já disse que não vou forçá-lo a nada — Corrin deu de ombros. — Embora eu suspeite que você já saiba mais do que está revelando, inclusive sobre mim. Chegará o dia em que falaremos disso.

Akito engoliu em seco.

— Eu…

— Tudo bem. Por enquanto vou pedir apenas que confie em mim e eu farei o mesmo.

— Mas do que diabos vocês estão falando? — Jenna quis saber.

Eles, porém, a ignoraram e o espadachim, por um momento, teve vontade de confrontar o mestre da guilda. Ele não fora proibido de falar sobre o Sistema, mas, pareceria um louco revelando sobre aquilo aos outros, exceto Corrin, que parecia ter algum discernimento fora do senso comum, ao ponto de saber que Ienaga Battousai não era um Caçador. 

Porém, ele também exigira-lhe respostas. Se o que Tânatos disse fosse verdade, Corrin era um vampiro. Essencialmente um monstro.

Mas, afinal, o que isso significa para a guilda e para todos nós? E se eu confrontá-lo agora? Como Jenna irá reagir? Como ela reagirá ao Sistema e ao fato de eu ter sido ressuscitado por um deus?

— Corrin… 

Ele ainda escolhia as palavras, quando uma voz grave de trovão o interrompeu.

— Que os céus se inflamem e as chamas celestiais desçam sobre meus inimigos! Eu convoco as energias do fogo ardente, do relâmpago furioso, e do vento selvagem. Que suas forças se unam em destruição! Pelo poder do fogo e da minha vontade, eu invoco a tempestade para purificar e consumir tudo em meu caminho! Que assim seja!

Um homem alto e imponente, cuja figura robusta irradiava uma determinação flamejante, voava logo acima da sede da guilda. Sua pele morena, a cabeça raspada, e as sobrancelhas oblíquas.

Ele vestia um colan negro, que destacava sua figura musculosa, e uma capa preta esvoaçante, ornamentada com um capuz que lhe adicionava um ar de misticismo. No peito, carregava a insígnia de um grande javali dourado.

Por uma janela, o trio notou quando o feiticeiro apontou para o forte seu cajado de madeira retorcida, com uma joia brilhando em luz ardente no topo. Sem aviso, o céu se encheu de nuvens escuras, que fulguravam em relâmpagos vermelhos, ao mesmo tempo em que uma chama etérea se manifestou na gema, fazendo com que o fogo convergisse para ele.

— Corrin… — Jenna tartamudeou.

— Não há mais tempo para uma contra mágica — decretou o mestre da guilda. — A barreira vai ter de aguentar.

De olhos arregalados, Akito observou palavras numa estranha estranha língua críptica desenharem-se nas chamas.

Labeallsus Asum Temaina Sulus

 

— Explosão! — ribombou a voz do mago.

Ventos furiosos alimentaram as chamas, espalhando-se para intensificar o caos, ao passo que o fogo crepitou num rugido, ao deixar um rastro de calor intenso e furioso, conforme um tornado ígneo descia sobre a sede da guilda. Em resposta à destruição iminente do castelo, Corrin abraçou a si, cortando a pele dos braços, ao abri-los deslizando as unhas pela carne.

Sangue jorrou dos ferimentos, mas, ao invés de verter pelo cômodo, a um comando do mestre de guilda, o líquido carmim flutuou, como se a gravidade de repente inexistisse, formando um círculo ao redor dele. Como que em resposta ao poder invocado por Corrin, um domo de energia branca, com linhas rubras, que mais lembravam veias sanguíneas, envolveu toda a extensão da fortaleza e suas dependências.

Heraylia Aeresto Cisiyatos!  — diferentemente do inimigo, que chamou pelas palavras arcanas no fogo, Corrin as pronunciou.

— Vamos ver como esse cara se sai contra magia de verdade — disse a vice-mestra, olhando dos companheiros de guilda para o feiticeiro, trincando os dentes.

A tempestade de fogo caiu sobre a cúpula de energia com a força imparável da natureza, as chamas envolvendo o domo num coro de vozes incandescentes, cantando uma ária de tormento, enquanto sombras dançavam pelo escudo ao ritmo da obliteração.

Os braços estendidos de Corrin tremeram, conforme ele fazia força para manter o encantamento, ao passo que a energia contida no domo o imitava, vibrando ao resistir à invasão ardente que os rodeava.

Implacável, o fogo avançou contra a barreira, como se a empurrasse ao limite do poder defensivo, tremendo e rangendo sob o calor intenso, enquanto rachaduras começavam a se formar por todos os lados. O mestre de guilda caiu sobre um joelho, seus músculos contraídos para manter o feitiço, porém, algumas gotas de sangue do círculo já começavam a cair.

— Vamos, Corrin! — Jenna o encorajou. — Aguente firme! O Prana dele está quase se dissipando.

Com um estampido ensurdecedor, a cúpula de energia se partiu feito vidro, e o círculo carmim derramou-se, sujando o piso do escritório. Fragmentos de energia brilhante se dissiparam ao serem consumidos pelo inferno.

— Nunca fui lá um grande mago de sangue — o mestre comentou, apoiando-se na mesa de trabalho para ficar de pé. — Mas foi o suficiente, por enquanto.

De fato, a magia se dissipara, pouco antes de tocar as torres do quartel-general da Brigada de Estrelas, diminuindo ao consumir o que restara da barreira. No entanto, o cenário ao redor do castelo era desolador, com a grama da colina enegrecida e o bosque próximo em chamas.

Em seguida, eles ouviram um estrondo de aço e o portão foi derrubado. Acompanhada por dois gigantes de pedra, uma mulher de longos cabelos loiro-acinzentados, postou-se na entrada do forte, enquanto um homem vestido num traje laranja de artes marciais invadiu a fortaleza, escalando as paredes para acessar o edifício principal por uma janela.

O mago pousou no jardim dos fundos, onde ficava a cabana de Barmon, e um último homem, alto e robusto, de chapéu fedora, passou por sua aliada no portão, apoiado numa bengala, com um passo ritmado, para acessar o forte, derrubando a porta da frente numa pancada.

— Então é isso? Quatro contra quatro — Corrin estalou o pescoço, recuperado num piscar de olhos do esforço anterior. — Jenna, você cuida daquela que está bloqueando a entrada. Eu fico com o artista marcial.

A vice-mestra assentiu e os dois olharam para Akito.

— Sabemos que está cansado… — ela começou, mas o jovem espadachim interrompeu seu raciocínio.

— Eu tenho o dever de proteger a base, tanto como qualquer outro membro da guilda. E, além disso, nunca lutei com um Caçador da ocupação Feiticeiro.

— Muito bem — decidiu o mestre —, mas não o subestime. Ainda que vários Caçadores da Classe B se reunissem para atacar a minha barreira, seria impossível conjurar um feitiço da magnitude necessária para derrubá-la. Esse homem é um feiticeiro da classe A.

— Certo. — Aglavros veio a uma batida de coração. — Sei que estamos nessa guerra juntos, mas eu sou o alvo principal deles. Não hesitem em salvar suas próprias vidas se a situação piorar.

— Já não tivemos essa conversa antes? — indagou Jenna a ele, erguendo uma sobrancelha. — Pensar não é o seu forte, Akito. Então cale a boca e lute. Nós cuidamos do resto.

Corrin gargalhou.

— Ela está certa, Akito. Concentre-se na sua batalha e deixe o resto conosco. Vou avisar os Lobos sobre a invasão.

— E você acha que aquela escória virá? — o filho do deus da guerra desdenhava, ao subir no parapeito de uma janela. — São servos de um rei celestial!

— Eles são o comitê de segurança — deu de ombros o mestre — e é proibido usar o gear no meio da cidade, fora de uma área própria para duelos. Eles precisam fazer alguma coisa.

— Que seja, mas quando eles chegarem, nós já teremos acabado com esses desgraçados! — Jenna saltou por uma janela e os dois ouviram quando ela caiu pesadamente no pátio mais abaixo.

— Não morra — Corrin aconselhou.

— Você também não.

Akito saltou da janela.



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