Asas ao Vento Brasileira

Autor(a): Akarui K.


Volume 1

Capítulo 9: Olhares que não se encontram

O relógio-cuco iniciou sua cantoria ao meio-dia, recebendo-o para iniciar seu dia de trabalho.

Brincando com o tilintar dos copos, o jovem desfilava de um lado para outro distribuindo as taças emborcadas nas mesas diminutas do bar-restaurante, organizando-as com formosura para chamar a atenção de estrangeiros.

— Cada dia mais rápido, hein? — elogiou o patrão, impressionado com a proatividade do garoto.

— Heh, aprendi com o mestre!

Usando a força do hábito como combustível, escancarou o toldo externo para anunciar que estavam em funcionamento. Puxou algumas mesas para fora e sentou-se na calçada para desenhar o menu do dia enquanto os primeiros clientes não chegavam.

O senhor, dono do bar, logo se juntou a ele para ver se ele não fazia palhaçadas com a placa. Os últimos garotos que contratara sempre reservavam um dia da semana para tirar com a sua cara.

— De novo essa letrinha de princesa, Lukas? Assim você envergonha até minha quinta geração.

Apesar da zombaria, o menino fazia um bom trabalho. Fazia alguns meses que permitia sua estadia no andar superior do restaurante e até então nunca flagrou um delito sequer por parte do jovem. Pelo visto, o mundo ainda fazia bons homens.

— Sua letra que é feia, ô. — ele retrucou, mastigando risos enquanto rabiscava atenciosamente.

— Chegou uma carta para você. Eu ia abrir, mas parece importante demais para um garoto da sua idade, então deixei no balcão da cozinha.

Fazia tempo que Lukas não recebia notícias de sua irmã. Por um momento, pensava que ela havia sido descoberta e que a impediram de enviar-lhe cartas, mas aparentemente não havia nada de errado.

Na hora mais calma do dia, tirou um tempo para lê-la e relaxar um pouco do frenético movimento do restaurante em um de seus dias bons. Fernantha nunca escrevia seu nome verdadeiro no envelope, sendo seu apelido apenas Pheh d’Alken. A estratégia seguia consistente, já que na primeira vez que recebera a carta com esse destinatário, achou ter sido um engano e quase a devolveu.

Ansioso, desembalou o papel com voracidade, quase a ponto de rasgá-lo. Ela o parabenizava por ter conseguido um emprego antes de passar uma noite pedindo esmolas, além de perguntar se já tinha incendiado a escola ou algo do tipo. 

As especulações dela sobre como o irmão se portava eram cômicas, porque ele fazia algumas parecidas para tentar adivinhar sua aparência também.

O intrigava pensar que a irmã, a trocentos quilômetros de distância, desempenhava melhor o papel de mãe do que sua própria mãe, que o expulsou de casa sem direito à herança. 

Desde aquele surto, foi obrigado a sair da cidade e procurar algo que pudesse sustentá-lo, ainda que de forma temporária, até que a irmã pudesse lhe fornecer alguma ajuda mais consistente que conselhos. 

Pheh dizia que ainda não conseguiu confiança o suficiente para lhe enviar dinheiro ou convidá-lo ao castelo. Sua família tinha um legado sinistro que não podia ser mencionado aquém dos portões da realeza e ela ainda era jovem demais para assumir uma liderança forte no castelo.

Isso era, no mínimo, revoltante, apenas pelo fato de que sua irmã era limitada por moldes que ninguém tinha poder para romper, nem ela mesma. E não queria pensar muito mais nisso para não acabar escrevendo tolices na sua carta de resposta.

Ao finalizar, selou seu envelope com cera de vela. Isso o fazia se sentir pobre, porém criativo. Mesmo morando sob um teto mais modesto, a paz em seu coração o dava forças para se recuperar e seguir em frente. 

Até gostava do barzinho, era um serviço fácil que lhe rendia bons trocados para comprar suas besteiras e pagar as contas. Não precisava de muito para viver bem, afinal.

Guardou a carta para enviar depois e voltou ao ambiente de trabalho. O último cliente saía pela porta e o estabelecimento se encontrava quieto novamente. Decidiu que aproveitaria a calmaria para dar um trato no piso.

Foi ao quarto de mantimentos em busca de uma vassoura, mas no meio da procura escutou vozes vindas do salão. “Droga, só porque eu ia começar!”

As risadas do patrão indicavam que devia ser alguém mais conhecido. Resignado, Lukas pegou o que procurava e retornou mesmo assim para lá, onde o velho não se aguentava de rir do bate-papo.

— E ela tem a pachorra de pedir para você vir comprar? — Sustentava o assunto com um lobo bem vestido que sempre aparecia por lá atrás de uma mesma garrafa de licor barato. 

Só se lembrava dele porque o grandalhão tinha o mesmo nome que ele. E desta vez um jovem, também trajando elegância, o acompanhava, quieto e paciente esperando o assunto acabar para irem embora. 

— E essa garota aí, hein? — o dono do bar perguntou, indicando o suposto jovem e tirando Lukas de seus pensamentos. 

— É minha menina-prodígio, Bruna. — tocou o ombro da jovem. — Diga oi para ele.

— Prazer. Graças a você, eu limpo vômito todo fim de semana. — A menina incitou com um sorriso sarcástico no canto da boca.

— Simpática que nem um machado é para uma árvore. — o patrão zombou. — Gostei dela, mas é bom amaciá-la antes que acabe ficando com a cara de Vanessa.

Lukas piscou algumas vezes e analisou melhor o fulano revelado uma garota. Seus cabelos estavam presos num coque mais arrepiado que um carrapicho e era magra como uma tábua. Também usava calças, e a soma disso tudo justificava porque parecia um homem.

No entanto, seu rosto não era nada feio. Sustentava um semblante naturalmente sério, com belos e fatais olhos negros. Olhos de raposa. 

Devia ser a primeira raposa vermelha que via, sua pele parecia reluzir como o fogo, diferente demais do dourado claro que era sua própria pelagem.

Fascinado, Lukas não notou que a encarava boquiaberto, parado no meio do bar ainda segurando a vassoura enquanto os anfitriões conversavam. A garota não notou que ele a observava — ou apenas fingia que não notava para evitar o constrangimento.

Envergonhado e sem conseguir dividir o cômodo, fugiu de volta para a área de serviço antes que o pior acontecesse. Aguardou uma espera eterna para que eles fossem embora e ele enfim pudesse trabalhar normalmente.

Mesmo assim, apesar de não ter se envolvido no assunto, o patrão veio lhe procurar mais tarde para tirar satisfações.

— Como é que você seca a menina daquele jeito? Quer me matar de vergonha? O que um pé rapado como você teria com a protegida de um barão?

Aceitou o sermão calado, pensando numa resposta adequada para escapar das broncas. A única coisa que lhe veio à mente foi uma mentira descarada sobre a aparência dela para afastar a desconfiança do velho sobre aquilo.

Não gostaria de ter que mentir o tempo inteiro para evitar o caos, mas só assim ele o deixou em paz. Lukas ofegou, cansado pelo constrangimento e ansiedade que aquela estranha menina o causou.

Bruna. O nome saltitava em sua memória como os copos lhe saltavam de uma mão para outra enquanto lavava a louça. Quase podia visualizar seu rosto esbelto nos reflexos da água, encantado com sua aparência.

“Bruna, protegida de um barão. Ela não tem nada a ver com lobos. O que ela é, realmente?”

Diante de certas dúvidas, pensar nela o fazia sorrir vez ou outra. Deveria se lembrar de incluir o evento nas fofocas com sua irmã para ter certeza de que não foi um delírio, afinal.

De todo modo, todo o alarde público sobre o fato de Bruna ser um enerion revelou-se irrelevante quando notou que não fazia diferença nenhuma. 

Se vidrava nas páginas de seu livro e ignorava questões tão caóticas para seu coração, mesmo que estas não fossem parar de incomodá-la tão cedo. Nesse ritmo, terminaria uma estante inteira logo de tanto que optava por isso em vez de estudar. 

Aos poucos, ela voltava a viver sem se importar tanto com os alheios, sozinha e perfeitamente bem com isso. Ao menos parecia, já que seu rosto parou com o hábito nervoso de olhar aos arredores.

Olhá-la de longe o permitia suspirar sem que ninguém notasse que a olhava. Não que fosse alguém importante para isso, mas cochichos aconteciam e lhe tiravam do sério. 

Se lembrava do dia em que, por acidente, dividiram a sala por longos minutos. Nunca vira nenhuma crise de raiva como aquela, parecia que a qualquer momento ela iria atirar uma mesa em alguém. 

Ponderou muito tempo sobre o que poderia ter causado aquilo e, de acordo com fofocas, aparentemente era pela mesma razão que ele, ou algo similar. 

Não precisava falar muito com as pessoas para conseguir entender o caso. Diziam descaradamente que ela era sinistra enquanto aumentavam horrores o caso de uma suposta queima espontânea não natural. “Poderia ser cômico se não fosse algo tão chato para ela”, pensava, empático, considerando seus vários dias de solidão. 

Mas vai que ela era como ele e apreciava isso também.

Quando a vira de tão perto cerrando os punhos, achou que finalmente veria o que era que a tornava tão temida. Infelizmente, só notou sua cabeleira arrepiando mais um tanto.

Uma grande parte de si dizia para não subestimá-la. Do jeito que seu olhar encarava a própria mão, ela devia ser capaz de destruir a escola inteira. 

Era um zé-ninguém perto daquela caloria toda. Não poderia se aproximar sem se queimar, isso sabia. 

As poucas vezes que conseguira coragem para participar da aula em voz alta fora interrompido por ela. No começo foi a coisa mais irritante do mundo, mas ela prendia sua atenção e estava curioso para conhecê-la.

 

“— Se eu amo ela? Nunca! Tenho um pouco de admiração, só.

 — Não tente me enganar, espertalhão. Você se torna fraco perto dela, dá para ver isso.

 — Então me ensina a disfarçar, porque ela é bem bonita de olhar.”

 

— O que você tá lendo aí? — A criança jogou-se ao seu lado, tentando espiar o que tanto fazia Leonardo sorrir.

— N-não é nada que te interesse! — retrucou num ímpeto que só fez Veronicca sorrir, maliciosa.

— Aposto que é um daqueles romances que te fazem chorar.

— Não choro com romances.

— Você tá vermelho igual a um tomate, é óbvio que chora sim!

Não demorou muito para que a menininha espiasse a capa do livro e seu rosto se franzisse.

— Espera, você já leu esse livro. Até já disse que era o seu preferido porque era fofo. E aí, é paixão ou desilusão?

— C-cala essa boca! — gaguejou. — Só me vi na vontade de ler de novo. Ele me deixa feliz.

— Hm, ele ou ela

— Ah, não enche! — empurrou-a para fora da cama. — Vaza daqui!

— Qual é, o que custa me falar a verdade? — se jogou de volta. — Você vive no mundo da lua e se recusa a aceitar a realidade. 

Veronicca forjou um semblante irado, sabendo que era a única reação que o faria mudar de ideia... Enquanto tudo que ele pensava era que, se não fosse por aquela franja, haveria um mosaico de seis dobrinhas em sua testa felina. 

— Eu sei que alguma coisa fez você mudar de repente. — ela continuou. — Vai ficar se escondendo nas cobertas até quando?

Ela até tinha razão: muitas vezes não tinha ânimo nem para sair da cama. Preferia achar que era a tristeza, a solidão, não sua incapacidade. Já fazia muito tempo que Leonardo relia aquele romance, sem coragem de virar a página.

— Você nem sabe do que tá falando. — ele bufou, esperando que ela calasse a boca.

— Você vive achando que é incapaz quando nem percebe que o que te torna incapaz é pensar que vai falhar. E eu nem preciso te tocar para saber que você tem medo de puxar uma conversa.

Veronicca sempre o surpreendia. Suas frases impactavam, mesmo que Léo buscasse demonstrar o contrário. 

Ela entendia de coisas que não era possível se explicar o porquê — a única solução que encontrava era preferível descartar. 

Então, continuava refletindo que sua irmã falava como se vivesse todos os problemas e agia como se fosse todas as pessoas do mundo compactadas numa menina de míseros dez anos. 

Leonardo abaixou a cabeça, declarando rendição. Sabia que ela tentaria empurrá-lo para um mundo feliz e perfeito se apenas sorrisse e concordasse. 

Veronicca preferia viver radiante como o sol, mesmo que o destino não tenha sido piedoso com nenhum dos dois ao levar sua mãe.

A gatinha soltou um longo suspiro.

— Tá bom, é impossível te obrigar a fazer algo, zé-preguiça. — sorriu aquele sorrisinho que o fazia duvidar se eram mesmo do mesmo sangue. — Sou a sua irmã, confie em mim. Pode desabafar.

— Eu... Bom, eu não sei nem o nome dela. — Sorriu, tímido, seus olhos amarelos brilhando pela janela. — Mas sei que é incrível. E ela vive... Com a cara enterrada em um livro. Num sol de fritar ovo.

Veronicca riu como se fosse a coisa mais simples do mundo. Talvez fosse, já que ele estava acostumado a sempre distorcer tudo para parecer difícil.

— Então por que não decide virar essa página e a faz reparar que também ama livros?



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