Asas ao Vento Brasileira

Autor(a): Akarui K.


Volume 1

Capítulo 8: Familiar

Sentia-se extremamente cansada, sua cabeça latejava e seus olhos doíam só de se revirar para tentar ver os arredores de seu despertar. 

Desconhecia tamanho sofrimento e brevemente se perguntou se era esse o inferno que os adultos sentiam quando diziam estar com a cabeça doendo. De todo modo, com certeza era culpa do sol, tão forte como nunca vira antes.

Bruna sempre acordava muito depois daquele período, o que tornava o sentimento plausível. Era estranho despertar sem escutar berros de dezenas de crianças ou das próprias pessoas que cuidavam delas. O silêncio reinava com graciosidade.

O ambiente permanecia arejado, agradável, e ninguém viria buscá-la para lavar o rosto ou pentear o cabelo. Bruna, ainda deitada, encarava o teto, ainda em estado parcialmente sonolento, recordando certo dia que não tinha certeza se viveu.

A temperatura ambiente a fez recordar que em certa época, odiava o frio. O que era uma porcaria porque sempre fazia frio no Das Velas. 

“A única parte realmente bacana era o orvalho, que cobria a grama com o que parecia ser diamante, ainda mais naquele sol.” Foi o que a ocupou naquela manhã, distraindo-a da torturante dor de cabeça: observar o exterior ou apenas se lembrar dele, não sabia ao certo. 

A pequena memória lhe foi suficiente para desejar sair dali. Ergueu-se e foi, mesmo adoentada, sem saber ao certo o que havia feito ontem e recordando os arredores como se fosse a primeira vez.

— Bom dia, vulcão adormecido.

E lá vinha ela em sua magnânima cara de morta, com baba seca na lateral da boca, os olhos vermelhos e seu elmo em forma de juba, pronta para mais um dia de sua rotina monótona — que por caridade do destino não era entediante.

— Uma vez eu li que se começarmos o dia sorrindo ele vai ser bom até o fim. — disse a ele, costumeiramente usando frases em vez do simples par de palavras para desejar bom dia.

— Hm, interessante. Seus dias são bons?

— Não.

Estavam sendo bem normais, ou qualquer palavra menor que isso para mascarar a imensa satisfação. 

Acostumara-se rápido com o percurso para fora do condomínio, com a espera de dez minutos do ônibus que a levaria para escola. 

Adorava ver a grandiosa capital de mesmo nome de Vigdra: era sempre bagunçada e lotada de gente andando para lá e para cá, mesmo tão cedo. Seu pique na madrugada era dos mais agitados, porque tanto seu dever de aluna como Lucas não a deixavam sentir sono. 

Tinha de agradecer a Vanessa pela genialidade de tê-la colocado em período matutino. Voltava da escola se sentindo um gênio e ainda tinha o dia todo para fazer o que quisesse — ou seja, nada. Estava ótimo assim.

Ah, a escola. Gostava dela, as crianças eram bem mais tranquilas do que os cabritos diabretes do orfanato e era alguém comum na multidão de um modo confortável — exceto porque a olhavam demais. 

Às vezes um ou outro zombava seu cabelo, mas isso já perdera a intensidade e já não ligava muito para própria aparência — estava sempre com sono, afinal. Era uma boa aluna, aprendia rápido e por isso conhecera alguns colegas para compartilhar material e conteúdo.

Inclusive, ganhara uma estrelinha de papel de sua professora de Geografia porque tirara as maiores notas. Pelo menos disso podia se vangloriar, já que estava de mal a pior nas outras quatro matérias.

Passos leves. Essa era a entrada triunfal mais silenciosa conhecida: Vanessa jogando a bolsa no chão.

— E aí, faísca?

O que as aproximava era o que, para vida de Bruna, já nem tinha tanta importância: seus dons. 

Todos os dias exercitavam técnicas de controle e habilidades, combinando isso com um básico combate corpo a corpo. O quarto restante, então, se tornara um ringue incendiário. Por não ser muito espaçoso, também era parte do treino conter as chamas para não fazer tudo ir pelo ares e dar mais cicatrizes a Vanessa. 

Nos anos que passaram, sua mira estava mais precisa e já conseguia guiar um raio contínuo de chamas. Não se orgulhava disso, pois se orgulhar seria lembrar de Giovanna e lembrar dela era recordar todo o resto que a fizera tão feliz e completa. 

Ainda sentia falta de tudo aquilo, mas fazia arder e virar pó em seus treinos. E já se habituou a lembrar do orfanato como uma coisa boa, sem permitir que isso a deixasse triste. 

E, de novo, acordava. Um pouco sonolenta, não feliz, mas satisfeita. Seus dias eram sempre a mesma coisa e gostava que fosse assim. Não queria mais memórias para se sobrepor à sua vida anterior. 

Gostava de Lucas, mas ele estava mais para um grande amigo que cozinhava coisas divinas e tirava pó das coisas. E não seria mais que isso. 

Sua vida era o que se podia chamar de quieta, sem alarmes, confortável e suficiente. Era assim que o silêncio soava. E assim iria seguir.

Por onde andava, observava tudo. Sua escola era o lugar que mais gostava de olhar: o prédio parecia um museu, era grande e bem arborizado — parecia até que estava em outra cidade, mil vezes mais tranquila que o alvoroço lá fora. Às vezes se perdia olhando os entalhes do prédio, como se fosse a primeira vez que entrasse lá. 

Noutras, pedia licença só para andar pelos corredores vazios, já que não gostava muito de pessoas interferindo em sua grandiosa paisagem. Por conta disso, aprendeu a andar mais rápido para descobrir lugares de proibido acesso nos intervalos. Bruna explorava aos montes todos os dias, correndo no mais silencioso que seus pés podiam bater no chão. 

Fora do horário de aula, gostava de passar tempo na biblioteca. Preferia pegar a condução pública e chegar antes de todo mundo para poder aproveitar mais vinte minutos de seus livros favoritos; às vezes, adiantava conteúdos, uma coisa instintiva que sempre gostou de fazer. 

Hoje estava bem entretida num romance que havia roubado dali, tanto que nem notou o estranho barulho perto — só depois de raciocinar que deveria estar sozinha é que se levantou para verificar. 

O som lhe pareceu com algo pesado sendo amparado rapidamente, ainda ouviu algumas coisas a mais caindo aos poucos. Escondendo-se atrás de uma estante cheia, afastou uns livros e espiou o outro lado.

Uma coisa preta com mãos brancas recolhia materiais do chão, colocando-os de volta. O jovem suspirou aliviado, andou uns passos e voltou a fazer o que estava fazendo, num silêncio graciosamente encantador.

Deixando os sapatos bem apertados e as ataduras bem justas, ele golpeava o ar vez após vez, alternando os movimentos entre chutes e socos. Lutava como o melhor aprendiz do ringue, parecia treinar por bastante tempo, a julgar pela precisão em que trabalhava. 

Seus chutes eram uma dança majestosa que Bruna adoraria ver por mais tempo, mas não o conhecia nem se lembraria de seu rosto por muito tempo, já que não conseguia vê-lo com nitidez. Aliás, começava a fazer barulho lá fora.

Não esperara o moço sair lá de dentro, mas pensou nele o resto do dia. O jeito fluido que se movimentava era algo de se invejar e um pingo de curiosidade surgiu em Bruna. 

Recordava a infância, quando seu pai lhe ensinava coisinhas bestas sobre combate, e que aquilo não era nada perto do que o cara da biblioteca sabia fazer. Apesar disso, sorria ao se lembrar de quantos já nocauteara com suas aulinhas de dois minutos. 

— Vanessa, lutar é algo bom? — questionou, sem conseguir fugir de sua própria curiosidade sobre o assunto. Ela não parecia entender muito disso, mas com certeza apanhara bastante para ter alguma experiência com isso.

— Bem, há pessoas que escolhem lutar por lazer, para defender aqueles que amam ou para defender a si mesmos. Isso, para mim, é bom. Por que a pergunta?

— Nada não.

Sem assumir nada, começou a fazer porque era “hábito” espancar coisas, mas logo ficou bem perceptível que estava querendo atenção. Como Lucian fazia com ela quando era uma tampinha, Bruna chamava Vanessa para um combate brincalhão, isso até que virou rotina, depois treino, depois hábito de verdade.

Nos primeiros meses, a única coisa que Vanessa elogiava era seu esforço mesmo. A raposa a xingava de nomes que nem sabia que uma criança conhecia e ainda dizia que era injusto que uma mulher sem pernas lutasse tão bem. 

Leve demais, era mais fácil Bruna bater a cabeça no teto do que ser nocauteada — e Vanessa fazia isso sempre como vingança. A menina era tão fraca que dava para segurar sua investida com um braço, mas isso mudou logo graças à sua motivação. 

De tão cansada, acordava mais tarde e era obrigada a pegar a condução escolar junto daqueles infernais adolescentes barulhentos. Cobria as orelhas com o capuz e cochilava no caminho, sequer dispondo de energia para ficar circulando, curiosa, pelas áreas da escola. 

Passava a maior parte do tempo dormindo graças à dor muscular costumeira, então um lugar sob o sol era um bálsamo. Vigdra era um inferno de quente, apenas ela aguentava se sentar ali. E ninguém precisava saber o porquê.

Em seu único momento de bobeira — o intervalo —, aprendera a ler em meio ao caos, e isso fez parte de si por muito tempo. Era até bom ler ao ar livre, e um pouco mais respirável também...

“Poc”.

Infelizmente, não tinha paz. O banco que usava ficava imediatamente de frente para o pátio e era surpreendente a quantidade de jovens que gostavam de brincar ali. 

Gritaria para um lado, tiros de papel de outro, uma bolinha amassada a acertara bem na fuça e caíra sobre o livro, um pouco úmida de uma coisa nojenta que descobrira ser lama com mato. 

Os respingos nas páginas eram marrons e as da sua blusa escuras como café. Seu rosto também fora atingido: conseguia até ver o enlameado na própria fuça e isso a fez perder o juízo. 

Num golpe impensado, agarrara o maldito papel e o queimou até virar pó. Deixou o livro de lado para limpar toda aquela sujeira, sem imaginar que aquele gesto iniciaria seu infortúnio.

Aos poucos, o pátio foi ficando silencioso e incômodo, até restarem apenas os que não viram ou não se importavam. Angustiada, Bruna analisou um pouco mais, sem acreditar no que estava acontecendo. 

Baixando a cabeça, pegou sua bolsa e correu pro banheiro. Tentou se distrair limpando as gotículas de sujeira da roupa, mas a cena não saía da mente: dezenas de olhares enojados se afastando mais e mais sem pena de demonstrar sua repugnância. 

Jogou água no rosto, se arrependendo no mesmo momento, porque além de odiar a umidade, aquilo faria vapor e resultaria em mais vergonha até o fim do intervalo. Se trancou num compartimento, abraçando os joelhos na esperança de que a mistura de ódio e pavor crescentes desaparecessem por conta própria.

Não soube quanto tempo passou até esfriar, tomar coragem e sair. A sala naquele momento era o único lugar vazio. Quando entrou, sua paciência limitada a fez atirar a bolsa sem piedade em sua mesa.

Mesmo com tanto esforço para impedir, sentia suas mãos ferverem. Estava pronta para dar um soco em alguém e pôr o treinamento em dia. Começou a massagear a testa lentamente, afastando a vontade. Precisava esfriar a cabeça. Precisava apenas esfriar. Quase não sentiu a lágrima escorrendo, pois esta secou rápido.

Quando, sem muito ânimo, virou na direção da porta, acabou por reparar que no outro canto da sala, na última carteira, um rapaz a encarava. Assustou-se, dado que acabou de conter sua ira destrutiva e provavelmente não escutou alguns próprios grunhidos.

Não vergonhoso o bastante, não se lembrava de tê-lo ouvido entrar, nem averiguar se o local estava vazio antes de surtar nele. Focada apenas em manter a calma, ainda assim era capaz de sentir seus olhos fitando-a. 

Tomada de desgosto, sentiu que sair apenas serviria para deixar tudo pior. Ignorou o garoto feioso e dormiu na mesa até o fim do dia.

Pediu uma folga a Vanessa. Tomou um banho frio, o mais frio possível, em busca de afastar de si tudo que se relacionasse àqueles olhares. A água gelada arrepiava e dava vontade de chorar, mas engoliu. 

Assassinou os olhos malvados que a seguiam pondo algumas almofadas a nocaute antes de finalmente cair exausta na cama. “Exausta de não ter feito nada” e pensar nisso também incomodava. 

Os banhos gélidos e os socos em travesseiros permaneceriam muito presentes. Inclusive, a vontade de não ter estado naquele banco, nem ter de retornar àquele lugar. 

O fato de ser obrigada a se concentrar na aula quase a fazia se esquecer da angústia e, portanto, encarar o público dos intervalos era sempre um desafio. 

Ao sair, sem mais delongas, mirou o seu eterno banco ensolarado. Um banco de madeira com pés de ferro, o único que poderia representar o que Bruna era naquele lugar: esquecido, talvez por outro lugar ser o centro das atenções ou por sempre estar excessivamente quente. 

Algo agradável, que todos ainda assim preferiam fingir que não existia: ardente demais para aquele lugar, intenso demais para mentes ignorantes.

— Você disse que havia escolas para pessoas como eu. — lembrou-se de quando perguntara-lhe isso. — Por que eu não estudo em uma delas?

— Você precisaria terminar o sexto ano. — Vanessa respondera. O que mais queria era terminar a droga do sexto ano. Já nem fazia diferença se a olhavam torto ou não — aqueles que tivessem amor aos seus cabelos que nunca olhassem mesmo para ela. 

Já era bem solitária antes, não faria diferença se iria continuar a ser — mesmo que isso custasse boas pessoas para falar sobre matemática, alguém para lhe emprestar um lápis ou tudo que já achara prazeroso na própria companhia. 

E todo dia, se negava a agradecer o fim do inferno que se tornara a escola; aliás, se deus fosse bom, nunca a permitiria passar tanta raiva ou nunca teria inventado pessoas ruins e pessoas estranhas, que não seriam estranhas se pessoas ruins não existissem. 

Deus não fazia mesmo sentido para ela: queria aprender a ser plena sozinha, como seu pai, que nunca precisou gritar “ah meu deus!” para demonstrar suas exclamações ou apelar para rezas para conseguir forças. 

Contudo, ainda precisava falar com alguém que não fosse si mesma e se flagrava pedindo sempre para que amanhã fosse diferente.

No momento em que agira, não pensara que queimar aquela maldita bolinha em vez de atirá-la no lixo daria início a uma esmagadora vontade de explodir tudo e desaparecer.

Não merecia nada daquilo, nunca tratou ninguém tão friamente — por que o mundo fazia aquilo? Queria voltar pro seu lar, para sua doce honestidade, onde não seria perfurada por olhos tão maldosos, trespassada por sussurros tão violentos... 

E, parando para pensar, apenas havia mudado de endereço, já que não era muito diferente no Das Velas. De repente, sentia-se perdida, um peixe fora d'água. 

Dar uns chutes esvairia a raiva de uma vez por todas, arrancando suas energias e deixando-a exausta demais até para pensar. Só queria sua paz de volta. E repetia o ritual de fechar os olhos e esperar que ela viesse por conta própria, de novo e de novo.



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