Aelum Brasileira

Autor(a): P. C. Marin


Volume 2

Capítulo 58: O Mundo das Maldições

GRIS

 

Quando aquele treinamento acabou, e finalmente partimos para Lumínia, eu pensava que viajaria ao lado de Valefar de cidade em cidade a procura de santos, ao passo que conheceria o mundo. Que idiota sou.

Mal sabia que, em verdade, eles eram pessoas que nasciam com uma condição especial, e não o que ele havia me ensinado. Porém a definição pouco importava para mim, o meu desejo real era conhecer toda Aelum ao lado dele.

Agora, percebo que enquanto eu esperava em Lumínia, Valefar assassinava meu próprio pai, o qual sequer conheço. Depois, me presenteou com seu espólio, como uma piada sádica.

— Hey! Aquele ali não é o Canhoto?

— Parece que é... Puta merda! Eu fui ver a luta, mas ele não apareceu.

— Deve ter ficado com medo.

— Quem não ficaria? — comentam dois bêbados no bar, enquanto passo por eles.

Eu gostaria de afirmar que me sinto mal por saber da morte de meu pai, porém a realidade é que eu mal o conheço; ou, no mínimo, não tenho lembranças dele. Não sinto nada em relação a Lin Kari. Será que é normal me sentir assim?

Por outro lado, sou atormentado por outra coisa. Eu confiei nele, segui todos os seus ensinamentos, sem questionar. Eu gostaria de ser igual a ele.

Entretanto, como eu poderia ser igual, se eu mal sei quem ele é? Não sei o que ele faz, por que faz, eu mal sei o seu nome. Não confio mais nele.

— E para você, meu jovem, quer um quarto, janta ou quem sabe uma bebida?! — diz um anão de cabelos e barba ruivos do outro lado do balcão.

Estou na Quimera Saltitante, a única estalagem da Alameda Cerúlio. É um estabelecimento feito todo de madeira, desde as paredes até os balcões e mesas. As pessoas aqui conversam alto, jogam cartas e bebem sem parar.

Atrás do balcão do bar, há um corredor com diversas portas, são os aposentos. A estalagem é suja e cheira a suor e álcool, muito diferente da Alazão Selvagem.

— Eu procuro uma pessoa.

— Acho que você veio ao lugar errado, a Vivenda é ali na frente. Hahaha — caçoa o anão.

— Eu procuro por um homem bem alto de cabelos e barba pretos, ele espera por mim.

O anão para de rir na hora, então olha para meus cabelos, arregala os olhos e quase cai da cadeira. Ele limpa o pigarro da garganta e, depois, me diz: — Ah! Sim, sim, ele me avisou. Pode passar por aqui, é o quarto número sete. É só bater.

Enquanto caminho pelo corredor, uma mulher de cabelos pretos me olha nos olhos, então se assusta e entra em seu quarto, depois o tranca com diversos trincos.

Ao chegar na frente da porta com um número sete, eu bato três vezes. Depois de um silêncio que não dura mais que um par de segundos, escuto alguém dizer: — Pode entrar. — É a voz de Valefar.

Ao abrir a porta, vislumbro um quarto pouco ventilado com uma única cama e uma mesa. O Ambiente é iluminado por um cristal branco no teto.

Valefar está sentado sobre a cama, a qual é evidentemente pequena para ele. Suas roupas são as mesmas que usava ontem, ainda rasgadas e com sangue coagulado sobre elas. Ele está de cabeça baixa e não olhou para minha face ainda.

Eu puxo uma cadeira da mesa, me sento de frente para ele, então digo: — Você deveria tomar um banho e trocar de roupas. As pessoas devem estar assustadas lá fora.

— Eu... — Ele endireita a coluna e analisa suas próprias vestes — acho que não vi o tempo passar.

— Você comeu algo? Ficou seis dias na floresta, então deve estar com fome. Acho que eu tenho alguma coisa aqui. — Começo a vasculhar minha mochila à procura de comida, mas Valefar me interrompe.

— Não, não precisa, eu... — Ele finalmente olha para mim e diz com uma voz serena: — Suas roupas, elas estão diferentes.

— Sim, acho que não voltarei para a Floresta de Prata tão cedo depois daqui, então não precisam ser verdes.

— Suas conclusões são sempre lógicas e precisas — diz Valefar.

— Raciocinar antes de agir poupa energia, então faz toda a diferença para a sobrevivência.

— Porém nem sempre dá tempo para...

— Qual é o seu nome? o seu nome real? — eu pergunto.

Ele abaixa a cabeça e responde: — Eu não sei.

— Você disse que responderia minhas perguntas.

— Não me lembro. Eu tinha um nome, sei disso, mas deixei de usá-lo por tanto tempo que um dia eu acordei e não me lembrava mais dele.

Não é mentira, eu saberia se fosse.

— Mas você se lembra de Liliam e Gabriel.

— Eu havia me esquecido deles também, mas tive um vislumbre no dia que Cintia te ensinou a cavalgar às margens do Rio Reluzente, então sonhei com os dois alguns dias depois e me lembrei, foi quando você e Alienor estavam na cabana. Esqueci também de Roan, meu tio e mentor, mas me recordei dele quando eu matei aquele urso na sua frente.

— Por que você se deixou ferir pelo urso naquele dia? Um simples animal não deveria te ferir com o impetus, hoje eu sei.

— Não faz diferença, os machucados nunca ficam por muito tempo. Eu achei que aquilo te assustaria, que te faria desistir, mas eu estava errado. — Ele olha para o chão e se perde em pensamentos.

— Como você se curou?

— Eu não posso dizer.

— Por quê?

— Há um contrato que me impede.

— Você está brincando comigo?! Não me dirá por conta de um contrato?

— Não é um contrato comum, suas cláusulas são escritas no próprio fluxo. Eu não posso dizer o seu conteúdo, seus termos ou seus aditivos.

Não adiantará perguntar sobre esse contrato, então creio que não há nada mais a se saber sobre Valefar.

— Quem eu sou?

— Tudo que eu sei sobre você e posso contar é que foi trazido até mim, sei que você é um imune, assim como seu pai era, porém qualquer informação além disso não me foi revelada. Eu tentei encontrar mais dados, porém nada surgiu. Creio que todos aqueles que saibam algo a mais sobre você estejam mortos. Há um lugar que eu posso conseguir a informação, mas o custo ainda é muito alto para eu pagar.

— Trinta mil peças de ouro imperiais.

Valefar levanta a cabeça, arregala os olhos e inclina seu corpo para trás, depois diz: — Você esteve na Vivenda?

— Sim.

— Que formidável, nem precisei ensinar sobre isso...

— Mas este não é o ponto. Quem removeu minhas memórias?

— Não posso dizer, faz parte do contrato.

— O que significa eu ser um imune?

Valefar olha para a luminária do teto e pensa por um instante, então responde: — Há muito tempo, os quatro dragões primordiais ensinaram os homens a influenciar o fluxo, cada um fez por um motivo diferente. Entretanto, muitos perderam o controle sobre sua própria magia e mataram uns aos outros.

— Isso não explica minha pergunta.

— Escute-me. Os quatro dragões chegaram a um consenso de que aquilo não deveria continuar; então, juntos, decidiram lançar uma maldição sobre toda humanidade. Essa maldição obrigou os humanos e seus descendentes a conjurar magia somente com as palavras e gestos de conjuro. Além disso, a magia somente passou a se manifestar depois dos doze anos de idade, e o uso daquelas de fluxos opostos foram dificultadas. Tais medidas, dentre outras, equilibraram Aelum de novo.

— Eu não vim aqui para saber de fábulas sobre dragões.

Valefar me olha nos olhos, me ignora, e continua: — Imunidade é uma condição mais rara e poderosa do que a santidade, você é imune a toda e qualquer maldição, o que inclui a que acabei de citar.

— O que é uma maldição?

Ele esfrega suas mãos, depois arruma sua barba e pega uma moeda de ouro de seu bolso. — Veja esta moeda — ele diz e a mostra na altura de sua cabeça. — Caso eu a solte, o que ocorrerá?

— Cairá no chão.

Valefar a solta, e a moeda cai no piso de madeira como previsto. Enquanto escuto o som dela rodar, ele explica:

— Há uma regra que define isso, uma regra que vem desde o início de tudo, desde a criação. Por outro lado, uma maldição é uma transgressão às regras da criação, uma alteração da vontade do criador. Uma maldição poderia fazer essa moeda nunca cair, nunca parar de girar ou ser arrastada na direção oposta. — Ele aponta para o teto.

— Se algo assim existe, como que o mundo ainda não entrou em colapso?

— Não é qualquer ser que tem autoridade ou poder para isso e, mesmo os que conseguem, pagam um preço muito alto.

— Isso quer dizer que esses seres que conseguem usar maldições não podem me afetar, correto?

Valefar aponta com seu indicador para mim e exclama: — Exato! Eu te conheço, então você já deve saber o que isso significa.

— Eles me verão como uma ameaça.

— Sim, você é uma ameaça para si, para quem está a sua volta e também para alguns dos seres mais poderosos de Aelum. Porém, se você continuar perto de mim, eles não ousarão te tocar...

— Não vamos confundir as coisas, Valefar. Assim que terminarmos esta conversa, eu me separarei de você.

— Eu entendo. — Ele olha para a moeda no chão, junta suas mãos e entrelaça os dedos. — Não poderia ser de outro modo. Não te culpo.

— Por que você matou Lin Kari?

— O motivo faz parte do contrato, portanto não posso dizer. Porém afirmo que as outras alternativas seriam piores, inclusive para você.

— Você conhece um garoto com o corpo e rosto repleto de cicatrizes, chamado Malak de Thar?

— Não.

— Ele parece saber algo do meu passado e me chamou de Dezesseis, sabe o motivo?

— Também não.

— Bom, acho que não há mais nada para eu perguntar. Buscarei as outras respostas sozinho. Peço que não se aproxime da casa diplomática, por enquanto. Verônica está conosco e ela tem muito medo de você.

Ele não levanta sua cabeça, tampouco responde, mas só continua a encarar o piso, perdido em sua própria mente.

Caminho até a porta de entrada e coloco a mão na maçaneta. Porém algo gelado toca meu peito, é o bracelete de promítia transformado em amuleto.

Eu me viro para Valefar e pergunto: — Qual a sua relação com o Banco de Estátera?

Ele se vira para mim e arregala os olhos, se levanta, vem em minha direção e me segura nos ombros. Valefar nem está a usar a vontade do guerreiro, mas o aperto de suas mãos faz meus músculos doerem.

— Você fez um contrato?!

— Abri uma conta.

— Mas foi só isso, ou aceitou alguma outra proposta deles?

— Não, só uma conta.

— Gris, nunca aceite trabalhar para eles, está me ouvindo? Se algum dos representantes deles oferecer isso, negue. Não importa qual seja o pagamento, recuse a oferta. Por favor, me prometa.

— Eu não posso prometer algo sem entender suas implicações. Você mesmo me disse isso.

— Gris, isso está muito além de meras lições para sobreviver na cidade ou na floresta. Aceitar trabalhar para eles é um erro que você não pode cometer.

Não vejo motivos para trabalhar em um banco de qualquer forma. Então não fará diferença.

— Eu prometerei, mas quero algo de você em troca.

Valefar inclina sua cabeça para o lado ao ouvir minha proposta e responde: — É só dizer...

— Eu quero que você pare de se machucar de propósito. Tome banho com frequência e comece a usar roupas limpas de agora em diante.

Ele sorri e relaxa o corpo, depois responde: — Eu pensei que você me pediria algo absurdo... Eu prometo.

— Eu também prometo que não aceitarei trabalhar para o Banco de Estátera.

— Obrigado. — Valefar finalmente solta meu ombro.

— Eu também agradeço pelo que você me ensinou até aqui. Porém, preciso ir agora.

Eu me viro e abro a porta. De costas para Valefar e sem ver sua reação, apenas digo: — Está três para você e um para mim. Eu te vencerei no seu jogo.

Valefar não me responde, e eu fecho a porta do quarto atrás de mim.

A minha vontade era de gritar com ele, xingá-lo, insultá-lo, porém eu não consegui.

Ainda tinha esperanças que ele me dissesse que foi um mal-entendido, que me repreendesse por acreditar nessas bobagens.

Eu o desobedeci de todas as formas, saí da casa diplomática, lutei na arena, fui até a Alameda Cerúlio e entrei na Orla Interior sem ele. Ainda estou aqui e espero minha punição, mas ela não virá.

Na medida em que me aproximo da saída da estalagem, vejo dois garotos um pouco mais altos, velhos e robustos que eu, um moreno e outro loiro. Eles estão de braços cruzados e obstruem a passagem.

— Aí! Seu covarde. Você me deve uma luta — diz o loiro.

— Eu não tenho tempo para isso — respondo, ao passo que tento seguir meu caminho e passar por eles.

O moreno coloca sua mão em meu peito, me empurra de volta, e diz: — O Ifan não perguntou se você tem tempo. Ele te disse que você nos deve uma luta.

— Vocês já venceram o festival, então não há motivos para lutarmos.

— Não é assim que fazemos as coisas em Anak, Canhoto — diz o garoto loiro. — Não existe derrota ou vitória por desistência para nós.

— Ainda assim, eu não tenho o que ganhar com isso — digo a eles.

— Se é por causa daquela merda de recompensa, então você pode ficar com o prêmio, caso vença. Não que você consiga nos derrotar, de qualquer forma. — O garoto moreno pressiona seu indicador contra meu peito algumas vezes ao falar de forma provocativa.

— Então me acompanhem. Minha dupla adorará saber disso.

 

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