Aelum Brasileira

Autor(a): P. C. Marin


Volume 2

Capítulo 53: A Máscara do Lobo

CONOR

 

— Está preparado, Conor?! — indaga meu irmão, Faolan, ao se aproximar.

Ele é um garoto de quinze anos, de cabelos pretos e olhos castanhos. Sua pele é bronzeada, assim como todos de nosso clã. Ele também veste roupas feitas com couro de animais, como ditam nossos costumes.

— Acho que estou — respondo a ele.

Irmão tolo, você sabe que não estou pronto. Não há como se preparar para isso.

— Vamos, anime-se. Tenho certeza que será um lupino poderoso.

Minhas mãos tremem e estão todas suadas. Faolan percebe isso e finge que não viu. Por outro lado, ele não para de tentar me animar e motivar.

Há três anos, foi o teste dele, e Faolan conseguiu se transformar na mais poderosa das formas lupinas: A abominação. É o orgulho do clã e será um guerreiro poderoso, talvez o próximo Alfa.

Eu gostaria de voltar atrás e tê-lo motivado naquela época, como ele faz agora. Entretanto, eu estava com medo que ele falhasse, e eu perdesse meu irmão, por isso não tive qualquer força para ajudá-lo.

Porém, ele estava tão confiante naquela época, quanto está agora. Eu gostaria de ser parecido com ele, mesmo que apenas um pouco.

Respiro fundo, olho para o alto e vejo a imensidão da Floresta de Hulha. Os troncos de suas árvores são tão cinzas e negros que quase não refletem a luz do sol. Acima delas, há corvos embusteiros voando em círculos, são demônios voadores que enganam as pessoas com suas palavras.

Nila não se agrada de seres covardes, daqueles que enganam para sobreviver ou dos que usam artimanhas para ter vantagem. Por isso, ninguém gosta de corvos embusteiros.

— Hey! Dá azar olhar para corvos antes do teste — diz meu irmão, ao passo que me cutuca com seu cotovelo.

— Você tem razão, irmão.

É o que eu respondo, mas não acredito nessas superstições.

Caminhamos por toda a Aldeia de Canes, em frente às tendas feitas de madeira e folhas secas, as quais servem de moradia para as famílias do clã.

Enquanto passamos pelos aldeões, eles jogam folhas de árvores sobre mim. Faz parte do rito e serve para atrair os poderosos espíritos que habitaram os corpos de nossos ancestrais e se uniram à floresta, mas que agora podem me escolher como seu novo recipiente.

Ao chegar no centro da aldeia, o qual contém um altar com um livro roxo sobre ele, vejo duas garotas e um garoto da minha idade. Eles aguardam para fazer o teste também.

— Vai lá, boa sorte, Conor — diz meu irmão.

Balanço minha cabeça para ele. Tento respondê-lo, mas minhas palavras mal saem da minha boca. Minha garganta parece travada pela angústia.

— Dará tudo certo, irmão! Só fique calmo e toque o livro — argumenta Faolan, na medida em que caminho para fazer o teste.

Ao parar ao lado dos demais, eles me olham com desprezo. Parece que sou o único nervoso com a prova. Nila deve me achar feio e me odiar.

— Você, venha aqui! — diz o líder do clã.

Eu dou um passo para trás, quando escuto. Mal percebi que ele apontou para uma das garotas. O Alfa percebeu que estou com medo, e isso não é bom.

A garota vai até ele e para em frente ao altar.

— Toque o livro e receba o presente da deusa.

— Sim, Alfa — diz a garota, e obedece ao comando.

Uma fumaça negra sai do livro roxo em direção ao corpo da menina, o qual começa a crescer até uma figura de dois metros de altura, com pelagem preta, presas e garras gigantescas. A monstruosidade possui asas de morcego em suas costas: Um terror lupino, o único capaz de voar.

— Figura Revela — aduz o líder, ao tocar na monstruosidade.

Com a magia lançada pelo Alfa, o terror lupino toma a forma da garota novamente. Porém ela cai no chão, começa a ter convulsões e gritar de dor.

— Está tudo bem, é assim mesmo. Na primeira vez é doloroso, mas você se acostuma — diz o Alfa, enquanto segura a garota para não se debater e se machucar. — Hey! Podem levá-la, e tratem da garota.

Dois membros da matilha vêm e levam a menina para ser atendida.

— Agora você, covarde — ele aponta na minha direção.

Eu olho para trás para ter certeza se sou eu mesmo desta vez. Era para eu ser o último da fila.

— É você mesmo, não vejo outro covarde aqui.

Junto forças e caminho em direção ao líder, um homem de cabelos e barba pretos, com a pele bronzeada e sem camisa para ostentar seus músculos. Ele parece muito mais alto do que me lembro. O vejo tão pouco que, às vezes, me esqueço que ele é meu pai.

— Toque o livro. Vamos!

Levo minha mão ao grimório roxo. Uma fumaça negra sai dele e envolve meu corpo, na mesma medida em que o Alfa fica cada vez maior ao meu lado, assim como o altar e o restante da floresta.

— Aaaak! AaaaK?! — tento falar, mas somente um grunhido estranho sai da minha boca.

Olho para os lados e noto as expressões das pessoas. Alguns aldeões colocam a mão na frente da boca e seguram o riso, outros arregalam os olhos, incrédulos.

No que eu me transformei? O que pode ser tão repugnante assim?

— Hahahaha! — ri o lider, e todos os demais aldeões acompanham sua gargalhada, menos Faolan. — É a porra de um corvo embusteiro. Hahahaha!

— Parem de rir! — grita meu irmão, e todo se calam, salvo o Alfa.

— Quer dar ordens a mim, Faolan? Quer me desafiar?

 Faolan abaixa sua cabeça e responde: — Não, Alfa.

— Foi o que eu pensei. — Ele se abaixa ao meu lado, toca em mim e complementa: — Figura Revela.

Meu corpo aumenta de tamanho, e sinto meus ossos quebrarem e serem reconstruídos, assim como meus músculos que se rasgam e se restituem.

— Aaaaah! — eu grito.

Tsk! Puta merda, ele se mijou todo — diz o líder. — Eu deveria te matar, garoto, como nossos ancestrais faziam. Mas também não estou com saco para ver sua fuça mais um segundo. Eu contarei até dez e se, no final, você ainda estiver na aldeia, eu mandarei sua alma até Nila.

— Corre, Conor! — grita meu irmão e aponta para a floresta. — Sobreviva! — Dois guerreiros seguram seus braços e o rendem no chão.

Eu nunca o vi chorar, até agora.

Junto todas as minhas forças e corro. Sei que todos caçoam de mim, mas não ouço mais suas vozes. Não escuto também a contagem do líder, apenas meus passos e a batida do meu coração. Tampouco olho para trás para ver meu irmão uma última vez.

Meu corpo dói tanto...

Foda-se o Alfa e foda-se a aldeia. Se Faolan me pedisse para marchar rumo à Gihena, eu o faria. Mas ele me disse para fugir e sobreviver, portanto é o que eu faço.

Um corvo. De todas as formas que eu poderia assumir, fui agraciado com a de um corvo embusteiro. Faolan tinha razão, olhar para corvos dá azar.

Ao observar o céu, tudo o que posso ver é o sol escaldante do deserto. A Floresta de Hulha é cercada por areia por todos os lados. São centenas de quilômetros sem qualquer cidade, oásis ou outro ponto seguro. Portanto, o exílio não é diferente de uma sentença de morte.

O clã já não mata os fracos com suas próprias garras, mas agora os induzem a morrer de sede ao caminhar pelo deserto. É para que o espírito do corvo embusteiro saia do meu cadáver e fique longe da floresta, assim ele não voltará para o corpo de um membro do clã.

— Hahahahaha! — Lanço uma gargalhada destinada ao vazio.

A minha vontade era voltar e morrer naquela floresta, para amaldiçoar a porra daqueles aldeões para sempre.

Sem forças, meu corpo vacila, e caio na areia escaldante, meu rosto e mãos queimam ao tocá-la. Acho que não conseguirei atravessar o deserto, Faolan. Olho de novo para o céu e o sol infernal. Que vontade de desistir.

Entretanto, Faolan me disse para eu sobreviver. Não posso morrer, não morrerei. Eu me levanto e fixo meus olhos no horizonte, é quando vejo duas figuras estranhas.

Será que estou alucinando? Uma miragem?

Vislumbro dois homens com túnicas brancas que cobrem o corpo inteiro, eles levam um casal de camelos consigo. Porém o que mais me chama a atenção são suas máscaras, uma de lobo, outra de guaxinim.

Os olhos daquele com a máscara de lobo brilham em verde esmeralda ao me ver. Já seu companheiro revela uma adaga, a qual reluz com o reflexo da luz solar.

Porém, o máscara de lobo coloca sua mão na frente do colega e o impede de se aproximar, depois diz em alto som: — Hey! Chegue mais perto, garoto. Tenho água aqui.

Eu me aproximo devagar, na medida em que o outro mascarado guarda sua arma. Eu nunca me aproximaria de estranhos assim, mas não tenho opção. Não conseguirei sair do deserto sem água, e eles parecem bem preparados.

Ao chegar mais perto, o mascarado joga um cantil em minha direção. Eu quase o deixo cair, mas consigo pegar antes. Minhas mãos tremem enquanto abro o recipiente e cheiro o seu conteúdo.

— Rapaz, nas suas condições, não seria necessário veneno para te matar. É só água, então beba — aduz o da máscara de lobo.

Ele tem razão, se me quisessem morto, eu já estaria. Eu bebo do cantil. Não sabia que água possuía um sabor tão bom assim.

O máscara de lobo coloca sua mão no chão e pronuncia: — Frutise Mas. — Em resposta, um tronco de uma árvore brota da areia do deserto, então galhos, folhas e frutos. A sombra projetada por ela é grande e reconfortante.

Uma brisa fresca toca minha pele, ao passo que uma fruta vermelha cai aos meus pés, e eu a coleto. Tento mordê-la, estou com fome, mas o mascarado me interrompe antes:

— Não coma isso. — Ele faz um sinal de negação com a mão. — Nunca coma algo feito por magia, ou você ficará doente. — Ele se senta no chão e faz um sinal para seu companheiro se juntar. — Venha, sente-se aqui perto também, pois meu mestre tem uma proposta para você.

O homem com máscara de guaxinim vira seu rosto para o companheiro, quando escuta tais palavras. Não é possível ver sua face, mas estou certo que ele não esperava por isso.

Assim, eu me sento a alguns metros de distância dos dois homens estranhos. O máscara de lobo coleta uma fruta esquisita de cor laranja de uma mochila, então a joga para mim.

— Pode comer essa, é da minha terra.

Dou uma mordida na fruta que ele me arremessou, ela tem um gosto peculiar, é azeda, mas também doce. Faz sentido, frutas azedas duram mais.

— Pois bem, pode me chamar de Lobo, e este é o Guaxinim. Como você se chama?

— Conor.

— Parece-me que você está com problemas, Conor, mas meu mestre gostou de você e deseja te fazer uma proposta.

— Que proposta?

— Nós dois somos lumens, vivemos em uma floresta em outro continente. Meu mestre oferta que você venha conosco e aceite ser um de seus alunos.

— O quê?! — exclama o Guaxinim, mas seu companheiro apenas faz um sinal para ele ficar em silêncio.

O homem com a máscara de lobo fala de forma amigável e gesticula bastante, o que me dá uma sensação confortável em sua presença. Entretanto, em meu clã isso não é visto com bons olhos.

— E o que seu alfa quer de mim? — pergunto.

— Você é inteligente, Conor, gostei disso. Em contrapartida, você trabalhará para meu mestre e nunca mais deixará a Floresta de Prata, o lugar de onde viemos. Lá, uma sombra, comida e água jamais te faltarão. — Ele aponta para árvore e para o fruto em minhas mãos ao falar.

Isso significa que se eu aceitar, nunca mais verei meu irmão. Mas se eu recusar, morrerei aqui. Faolan disse para eu sobreviver.

— Tenho um irmão. Não sei se posso aceitar.

O homem com máscara de guaxinim fica tenso ao ouvir minhas palavras, então seu companheiro diz: — Guaxinim, espere do outro lado da sombra, por gentileza. Preciso conversar com o Conor a sós por um instante.

O mascarado o obedece e nos deixa para trás. Acho que o Guaxinim não gostou muito de mim. Que sorte que o Lobo é o comandante deles.

— Meu mestre, o Grande Khan, é o mais poderoso mago de criação que existe em Aelum, e pode te ajudar a melhorar sua magia.

— Ele ajudaria a me transformar em um lupino?

— No seu caso, com o Lorde Khan como seu mentor, você poderia se tornar praticamente qualquer um que quisesse, inclusive um demônio lupino. Claro que dependerá também do seu comprometimento e esforço.

— Eu teria uma máscara de lobo igual a sua?

Hahahaha! — Ele solta uma longa gargalhada e dá um soco na própria perna. — Sinto muito, Conor, mas cada um usa uma máscara diferente por lá. A de lobo não está disponível agora, e espero que fique assim por um bom tempo. Hahahaha!

— Entendo...

O Máscara de Lobo encerra sua gargalhada e pensa por um momento, enquanto observa o balançar das folhas da árvore criada por magia, então diz em um tom mais sério:

 — Lobos são animais muito interessantes, é verdade. Eles são fortes, andam em alcateias e caçam seres maiores que eles. Porém quando estamos em uma floresta e nos deparamos com um, a impressão que nos passa é amedrontadora. Ninguém gosta de cruzar o caminho de um lobo.

— É verdade, eu me sentia assim também em meu clã — respondo.

— Mas há outra máscara disponível, de um animal parecido com um lobo, ele tem presas e unhas afiadas, e pode fazer um estrago também, quando necessário. Porém, diferente do lobo, ele tem uma aparência amigável e carismática. Todo mundo gosta dele.

— Que animal é?

— O coiote.

Porra de anão! Finalmente desmaiou. Nunca vi alguém aguentar tanta pancada e ficar de pé.

Odeio usar esta forma. As pessoas nunca mais me tratam da mesma maneira e se afastam depois de me ver assim.

Você estava certo, ninguém gosta de cruzar o caminho de um lobo. Eles são amedrontadores.

Apesar que ninguém viu minha verdadeira face ainda, então é só mudar, até não lembrarem mais quem sou. Hehehe.

Por falar nisso, depois usarei a forma do Lin Kari para pegar umas gatinhas. Estou no paraíso, Faolan. Você consegue me ouvir daí?

Awuuuuuuuuuu! — Lanço o uivo aterrorizante, magia inata da...

— Puta merda! é uma Abominação Lupina! — grita a ruiva.

Acho que lancei fora todas minhas chances com a ruivinha, mas ninguém é perfeito. Hehehe.

Olho para a segunda opção do cardápio, a loira de cabelos encaracolados, caída de joelhos e com os olhos azuis cheios de lágrimas. Será que depois disso, ela aceitaria sair em um encontro comigo? Ela pareceu bem interessada no Lin Kari.

— Grrrrrrrrrrrr! — Tento rir, mas só um rosnado grotesco sai pela minha boca.

Acho que já era, está tudo perdido com a loira também. Mas está tranquilo, foi por uma boa causa, não é mesmo, Gris?

 

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