Aelum Brasileira

Autor(a): P. C. Marin


Volume 2

Capítulo 33: Ticandar

GRIS

 

Eu deveria mesmo seguir com o planejado até o fim? Seria assim que um caçador agiria, pois não há tempo para reflexão dentro da Floresta de Prata. Hesitar aqui é o mesmo que escolher a morte. Foi assim que ele me ensinou.

Cintia, por outro lado, disse que a depender das informações que eu tenha, a melhor decisão pode ser outra.

Eu deveria mesmo me tornar um caçador? Quando tomei essa decisão, eu pouco sabia sobre o professor.

Tampouco sei se o que a dríade disse é verdade, porém muito do que ela falou parece se encaixar. Eu sei que o professor era mau, mas ele faria coisas daquele tipo?

Sim, provavelmente faria. A verdade é que eu enganei a mim mesmo de novo. Eu sei do que professor seria capaz, pois ele foi assim comigo também. A questão é que naquele tempo eu mal entendia que a forma dele agir era errada.

Eu apenas o obedecia, sem questionar. Mas por que o obedecia? Por mais que eu tente, não consigo compreender minhas próprias ações. Eu apenas fazia. Era tão natural quanto comer ao sentir fome.

— Por que os lumens te chamam de monstro, Caçador? — Pergunta a garota de cabelos brancos que ainda tem seu pulso preso pelas mãos do professor.

Os três lumens passaram a conversar em nossa língua, pois Alienor ameaçou não parar de tagarelar. Entretanto, por algum motivo, eu também entendo quando eles falam na linguagem deles. É uma sensação parecida com aquela de quando falei com Acácia. Só pode ser algum tipo de magia.

— É uma história antiga, até para você — contesta Valefar.

— Qual seu nome, Lobita? — diz Alienor.

— Cali... Calíope, mas todos me chamam de Kali. E não me chame de Lobita, sua boca-suja — responde a lumen ao franzir sua sobrancelha e virar o rosto.

Meus olhos deslizam até o braço de Kali, local que o professor a mantém presa. A lembrança das palavras da dríade martela minha cabeça: Sequestrar.

O professor parece notar meu nervosismo e, então, ele diz: — Em Ticandar conversaremos, Gris.

— Sim, profess... — respondo, quase sem forças, ao passo que abaixo minha cabeça.

— Hey! Não sei se perceberam algo. Creio que nós chegamos.

Ao olhar para o horizonte, vejo algo que não caberia na minha imaginação. É uma cidade, um palácio gigantesco, que se ergue até o céu, feito de árvores gigantes e reluzentes, as quais brilham por conta de uma infinidade de vaga-lumes prateados que repousam em seus troncos.

— O Palácio Fúlgido: Ticandar — diz o professor com uma voz serena ao passo que analisa a cidadela. Ele não parece surpreso com a vista.

Vejo de longe, os galhos das árvores se entrelaçam e formam ruas suspensas em espirais que sobem até o topo. Essas ruas têm a espessura suficiente para caberem três carroças uma ao lado da outra, as quais são puxadas por bestas grandes e de aspecto bovino e pelo marrom.

Os limites de Ticandar são cercados pela água do rio. À minha frente, está uma das quatro pontes que ligam a cidade de Ticandar à Floresta de Prata, ponte a qual possui aproximadamente duzentos metros de comprimento e trinta de largura.

Ticandar é uma ilha formada no meio de um gigantesco rio, o qual parece ser uma das vertentes do Rio Reluzente.

Enquanto caminhamos e atravessamos a ponte, percebo algumas pequenas embarcações feitas de madeira escura atravessarem por debaixo da estrutura, as quais são guiadas por lumens, idênticos aos dois soldados, porém não usam máscaras. Já seus cabelos são todos longos e brancos, e suas vestes com cores predominantes entre o verde e o branco.

— Brilha, brilha. Ele brilha~ — cantarola Alienor, enquanto saltita e tenta morder os vaga-lumes prateados que pairam pelo ar. — Hey! Gostei daqui.

— A cidade é muito bonita mesmo. Pena que a Srta. Cintia não pôde vir. Ela disse que gostaria.

— Um dia nós a traremos aqui. Quando tudo estiver mais tranquilo, nós poderemos voltar. O que vocês acham, quem sabe no próximo festival? — pergunta Alienor.

— Este não é um local ideal para alguém visitar. Ticandar é perigosa para qualquer um que não seja um lumen — aduz o professor.

— Concordo. Então por que não saímos daqui? Eu posso guiá-los para fora — diz Kali, mas o professor só a ignora.

— Devemos nos dirigir à Alta Câmara, por ordens do Grande Khan — aduz um dos soldados lumens que nos escolta. — Sigam-me.

Eu me pergunto quando foi que esse Khan deu tal ordem. Talvez os soldados devessem levá-la até ele, mesmo antes de nos encontrarmos.

Ao atravessarmos o rio por meio da ponte, os dois lumens nos escoltam até um aparato semelhante a uma gaiola gigante, feito de grossos galhos contorcidos. Não é como se a estrutura das grades de madeira fosse amarrada ou colada; mas, sim, que os galhos que as compõem cresceram já nesse formato, da própria árvore que o sustenta.

A gaiola cabe aproximadamente dez pessoas e acima dela estão vários cipós conectados às árvores.

Um ruído capta minha atenção, e noto que no centro de Ticandar, no térreo, há uma construção gigantesca. Vindo dela, escuto o som de diversas pessoas conversando. Enquanto aponto para a direção, eu pergunto: — O que tem lá?

O professor olha para mim e depois para Alienor, então responde: — É o museu da cidade, e tem várias antiguidades lá. Talvez passemos por ali antes de irmos embora.

Hoje em dia, eu conheço melhor o professor e sei quando ele está mentindo. Sim, ele acaba de mentir. Kali o olha perplexa, porém não o corrige.

— Museu, que chatice! — diz Alienor.

Um dos mascarados olha para o outro e dá de ombros, mas apenas decidem ignorar também. O lumen que nos guia entra primeiro na gaiola, seguido pelo professor e Kali.

Tenho uma sensação ruim sobre entrar. É como se algo péssimo fosse acontecer. Como se, ao entrar, eu nunca mais tivesse a oportunidade de sair. Eu me sentia assim, quando estava preso naquele tronco com a dríade.

Na verdade, levo comigo este sentimento em várias ocasiões, o tempo todo. Assim também é todos os dias que acordo na cabana.

— Podem entrar, Gris e Alienor. É seguro — diz o professor.

Olho para a raposa, e ela parece fascinada com o que vê. Alienor corre para dentro da cela sem hesitar, como somente ela sabe fazer. A raposa dá uns pulinhos para checar a estrutura e então me diz com entusiasmo:

— É um teleférico! Não, é um elevador! Bora lá, Gris, só cala a boca e entra.

Mas é só você quem está falando!

Alienor não me deixa muitas opções, então eu entro. Vejo que, se por um lado Alienor está eufórica, por outro, Kali possui um semblante de desolação. Ela tenta esconder o rosto atrás do próprio cabelo branco, mas consigo notar suas lágrimas.

Logo atrás de mim, o outro soldado entra e tranca a porta de madeira. Ele se vira e diz: — Segurem-se, pois vai balançar um pouco. E vocês deveriam levar essa besta-raposa no colo, porque ela pode cair.

— Hey! Não fale comigo como se eu fosse um animal de estimação — contesta Alienor.

— Ele tem razão. É perigoso e você pode cair. Gris, você consegue levá-la? — pergunta o professor.

— Ahm... — Eu olho para meu braço direito e me lembro que não consigo fazer força com ele. — Acho que sim.

Olho para os soldados. Vejo que eles não têm intenção alguma de se manifestar. Depois observo Kali, e ela demonstra uma certa repulsa em relação à raposa. Já é senso comum que Alienor mantém distância do professor, então nem cogitamos isso. Por fim, desvio meu olhar até Alienor.

— O quê? Eu também não estou nada confortável com isso. Só vamos acabar logo...

Preciso sentar no chão, pois somente possuo um braço bom para segurar na grade. Eu a acolho com o braço direito e, com o esquerdo, me seguro para não cairmos. Ao fazer isso, noto que Kali parece curiosa a respeito do meu braço machucado, mas ela não diz nada.

— Todos prontos? — diz o lumen que entrou primeiro. — Nós balançamos a cabeça em afirmação. Então ele coloca sua mão em um pedestal no meio da gaiola e complementa: — Alta Câmara.

Os vaga-lumes prateados voam para longe, assustados com a movimentação do elevador. Escuto o som dos cipós se moverem do lado de fora, e eles parecem se soltar e se agarrarem nos galhos das árvores, movimentando a estrutura como se fosse uma aranha pernuda a caminhar pela parede, ao passo que a gaiola se move para cima.

— O que aconteceu com seu braço, Gris? — questiona Kali.

— Foi arrancado, mas um amigo do professor o colocou no lugar.

— Nós viemos aqui em Ticandar para curá-lo — intervém Alienor. — Bom, para resolver um probleminha meu também.

A jovem garota de cabelos brancos e sardas no rosto reflete por um instante e expressa tristeza em seu olhar. Ela observa o professor, que ainda a mantém presa, e depois olha para mim. Ela junta forças para dizer: — Eu desejo sorte. Espero que consiga ser curado.

— Obrigado, Kali — digo a ela.

Hey, olhem aquilo! — exclama Alienor.

Já estamos há vários metros do chão e conseguimos ver melhor a luz do sol e o céu azul. Agora estamos acima da altura das árvores gigantes da Floresta de Prata. Porém, o que Alienor nos pediu para olhar são as centenas de bestas voadoras que cobrem o céu ao redor de Ticandar.

Há gaviões vermelhos, águias prateadas, alguns répteis com asas e insetos voadores, como libélulas e vespas gigantes. Entretanto, eles estão em completa harmonia entre si e para com os moradores da cidade.

— Que cidade incrível! Por que você nunca me disse que Ticandar era maneira assim? — pergunta Alienor ao professor.

— De fato. Mas não contei para seu próprio bem, pois não seria bom chamar sua atenção a um lugar tão perigoso.

O professor tem razão, é muito perigoso atravessar a orla interior e, conhecendo Alienor, é quase certo que ela tentaria vir aqui sozinha. Penso nisso, na medida em que continuo a observar a cidadela reluzente.

Acácia mentiu para mim, só pode ser isso. É, a dríade só pode ter mentido, pois o professor me ensinou um monte de coisas e sempre se preocupou comigo. Assim como se preocupou com Alienor. Ele não precisava ajudá-la, assim como não precisava ajudar a Srta. Cintia, mas o fez.

Sim, talvez seja bobagem minha ter dúvidas sobre o professor. Ele próprio disse que as bestas mais perigosas são aquelas que falam. Talvez este seja o motivo delas serem perigosas, pois tentam nos enganar.

Talvez o professor esconda coisas de mim. Talvez ele saiba algo do meu passado e não me conta. Mas sei que, no momento certo, ele me dirá, como foi quando ele contou sobre o bracelete e sobre eu ser um Imune.

Percebo que Alienor fica quieta em meu colo. Ela já está há um bom tempo sem dizer qualquer coisa. Isso nunca é um bom sinal. É estranho vê-la assim, porque é sempre tão alegre e faladora.

Estamos tão alto que conseguimos ver até mesmo as montanhas vermelhas ao oeste. Acho que é por isso que Alienor ficou pensativa, talvez sinta saudade de casa.

— Está tudo bem, Srta. Raposa?

— Não me chame mais assim, seu bobão.

— Ora! Ele só está preocupado com você, e até eu percebo que você não está nada bem — diz Kali.

— Não é nada. Eu só lembrei do meu pai, ele me contava histórias deste lugar. Eu era pequena, mas me lembro dele dizer que era um lugar bonito. Ele me traria aqui durante um dos festivais.

— Seu pai esteve aqui? Que legal. Mas o que ele veio fazer — eu pergunto.

— Os melhores magos e guerreiros de Galantur costumam vir para cá quando completam entre quinze e vinte anos. Mas não sei o motivo, nunca me disseram.

Olho para o professor, pois creio que deve ter a resposta. Mas ele não diz nada. Já Kali aparenta ter mais interesse em nossa conversa, porém ao tentar questioná-la, a gaiola para de subir, e o soldado lumen anuncia: — Chegamos: A Alta Câmara de Ticandar. Sigam-me.

Deixo Alienor no chão com cuidado. Ela se vira para mim e diz: — Humpf! Não conte isso a ninguém, ou te mandarei pelos ares.

Balanço a cabeça em afirmação. Entretanto não tenho certeza do que ela não quer que eu conte. Será que é sobre a história de seu pai?

O lumen sai primeiro. Ele diz algo em sua própria língua para os demais guerreiros que nos esperavam do lado de fora, mas foi tão baixo que não ouvi.

Os guerreiros que nos aguardam parecem muito poderosos. Eles usam armaduras pesadas da cor verde e levam consigo espadas médias e um escudo de metal branco, mas com o símbolo de um dragão verde cercado por ramos e árvores.

Em outras circunstâncias, eu estaria preocupado. Mas com o professor aqui, eu tenho certeza que não há problemas.

Ao entrarmos em uma Câmara, que fica dentro de uma das árvores gigantes, vislumbro que não há vaga-lumes, entretanto o local é igualmente iluminado por alguns cristais brancos espalhados pelas paredes.

O salão possui dois andares, no primeiro, estão várias salas, mas nos dirigimos ao segundo por uma escadaria grande que se encontra no centro do ambiente, a qual leva a uma porta com aproximados três metros de altura. Chama-me a atenção ao fato de haver poucos móveis e objetos.

Seguimos os dois lumens mascarados, já nas nossas costas nos escoltam três soldados de armaduras pesadas, os quais não dizem qualquer palavra. Quando chegamos em frente a porta, o professor toma a dianteira e arrasta Kali até ela. Então, ele se vira e diz:

— Resolverei este assunto e voltarei em breve. Esperem-me aqui e não toquem em nada. —  Parece que a parte final da fala do professor foi direcionada à raposa.

Hey! Está querendo insinuar alguma coisa? — pergunta Alienor.

— Todos os quatro devem entrar — interrompe o lumen com máscara de carcaju. — Por ordem do Grande Khan, o garoto e seu familiar devem comparecer à audiência.

— Familiar?! Está pensando o que da vida, seu cabeça de fuinha? — retruca a raposa.

É um carcaju, Alienor!

— Alienor, comporte-se, pois estaremos diante de uma das maiores autoridades de Aelum — diz Valefar.

— Seus brutamontes, comedores de carne-seca! Se esqueceram de onde eu vim? Eu sei como funcionam as solenidades. Humpf! — A raposa vira seu rosto para o lado de forma esnobe.

Dado seu comportamento irreverente, às vezes, me esqueço que Alienor é uma princesa de Galantur.

— Em todo caso, não digam nada lá dentro. Deixem que eu resolva este assunto — orienta o professor.

— Todas as armas deverão ficar comigo. Eu as devolverei quando terminarem — diz o lumen mascarado.

— O que será que você fez de errado desta vez, seu delinquente juvenil? — pergunta a raposa.

 

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