Aelum Brasileira

Autor(a): P. C. Marin


Volume 1

Capítulo 6: Raposa

GRIS

 

O professor já dormiu, e eu também aprontei tudo para fazer o mesmo, mas estou com muita vontade de ir ao banheiro depois de tomar tanto suco.

Cintia comentou que o banheiro é comum e fica do lado de fora, atrás da estalagem. Não posso acordar o professor, porém creio que ele não irá reclamar se eu der um pulinho rápido ali. Sendo assim, saio do quarto e parto em direção à entrada da estalagem, sem fazer muito barulho.

A Srta. Cintia ainda está ali terminando de limpar o bar e as mesas. Ao me ver, ela diz: — Olha só, se não é meu protegido.

— Boa noite, Srta. Cintia, eu preciso ir ao banheiro. Perdão por te incomodar, mas como que eu faço para o encontrar?

— É só sair pela porta principal, ali, e dar a volta pelo lado esquerdo, assim você passará pelos estábulos, já o banheiro fica aos fundos. Não tem como errar. Toma, vai precisar das chaves. — Com isso, Cintia joga uma chave ligada a um chaveiro para mim, e eu pego por reflexo.

— Caso se perca, é só me chamar.

— Obrigado, Srta. Cintia.

Cintia é uma pessoa legal afinal de contas. Eu conheci poucas pessoas até então, mas acho que tive sorte por ter me deparado com ela.

Saio pela porta principal, conforme me foi instruído. Já é noite e o clima é bem agradável. Todos os moradores estão dentro de suas casas, e é possível ver algumas delas iluminadas por velas, mas creio que a maioria já deve ter dormido.

Há pouca iluminação, entretanto a luz da lua é suficiente para que eu consiga enxergar, pois na Floresta de Prata é praticamente assim o tempo todo, e estou acostumado.

— Você é um escravo?

Escuto algo, mas olho aos arredores e não vejo nada. Pensei ter ouvido uma voz feminina, e parecia de uma mulher jovem, mas acho que foi só impressão. Apenas ignoro.

Hey, falei com você!

Ouço novamente, e creio que foi da minha direita. Quando olho para lá, eu vejo sair da porta do estábulo uma raposa vermelha.

Sim, é aquela que nós vimos várias vezes. Ela é bem bonita e sua pelagem reflete em vermelho a fraca luz da lua, o que lembra as faíscas que saem quando movemos brasas acesas de lugar. Eu me abaixo devagar para não assustá-la, pois não quero que ela corra novamente.

— Que raposa linda que você é — eu digo.

— De fato, mas já tive dias melhores — responde a raposa.

— Best...?!

Antes de eu gritar, a raposa abaixa sua cabeça e abana o rabo, à medida que seus olhos brilham em vermelho. Já sua cauda, ela lembra fogo sendo balançado ao vento, é como se o animal estivesse em chamas.

Ainda estou abaixado, porém fico paralisado e caio para o lado como uma pedra, sem conseguir me mexer. Posso tão somente virar os olhos e respirar, mas minha mandíbula não abre, o que me impede de falar. Tenho a sensação de que estou envolvido por cabos de aço invisíveis.

— Não precisa gritar, pois eu não quero lhe fazer mal. Se assim eu quisesse, você já teria morrido, não é mesmo? — diz a bela raposa, enquanto desfila em minha direção.

—  Bom, eu não quero ficar gastando minhas reservas de fluxo com você. Vou te soltar, então só não grite. Está certo?

Não consigo responder. Ainda estou paralisado.

— É, parece que você entendeu. Lembre-se: não grite, pois eu somente quero conversar.

A raposa novamente balança sua cauda, já os pelos e os olhos brilham em um tom vermelho de novo. Caramba, de todos os lugares, eu me deparo com uma besta dentro de uma cidade.

— Obrigado, Senhora Raposa.

— É Senhorita Raposa para você. — Ela vira o rosto de uma maneira esnobe para falar. — Mas, enfim, eu lhe perguntei se você é um escravo?

— Desculpe, Srta. Raposa, mas eu sou o quê?

— Você não sabe o que é um escravo?

Balanço a cabeça em negação.

— Bom, escravo é alguém que não tem direito de liberdade, não pode ir e vir. Ele come apenas o que mandam ele comer, e faz o que mandam ele fazer... É mais ou menos isso, acho que você já entendeu.

— Acho que entendi, mas eu não sou um escravo. Quero dizer, eu acho que não sou. Na verdade, muito do que você diz é verdade e acontece comigo.

— É, eu ouvi dizer mesmo, mas me diz aí, por que você usa esse bracelete de escravo? — A raposa olha para meu pulso direito enquanto fala.

Olho para o meu braço direito também, mas o bracelete não está à vista. Pelo contrário, ele está coberto pela blusa.

— Que bracelete? — eu digo.

— Que feio mentir. Você acabou de olhar para seu braço, e acaba de se delatar, seu bobinho.

Droga, eu estou com medo e não consigo raciocinar direito.

— É um bracelete preto e branco, não é mesmo? Ele é como se fosse feito de dois materiais entrelaçados. Não adianta mentir, eu sinto o fluxo que ele emite. Isso é um bracelete que é colocado nos escravos. Na realidade, os que eu vi eram no pescoço e não no braço, mas tenho certeza que é igual, pois o movimento do fluxo é o mesmo.

Como ela já sabe o que é, não vai fazer diferença se eu mostrar. Além disso, pode ser que ela saiba de mais alguma coisa sobre mim. Talvez a raposa saiba de onde eu sou e o que ocorreu comigo antes da floresta.

— Bem, isto está no meu braço há três anos, e não lembro de nada antes disso.

— Não lembra de nada? Tipo, não lembra de como ele foi parar aí ou não lembra de nadinha, nadinha mesmo?

— É como se eu tivesse nascido há três anos na Floresta de Prata. Não sei de nada antes disso.

— Você é bem grandinho para alguém que tem três anos. Eu diria que tem uns doze ou treze, aparentemente. Nove anos de memorias perdidas, é um tempo bem longo.

— Você sabe de onde que este bracelete pode ser, Srta. Raposa? Talvez você saiba de onde eu vim.

— Olha, como eu disse, os que eu vi eram colares e não braceletes, então não sei de onde é, mas como é um item de escravos, talvez você tenha sido vendido como um. Sendo assim, será que o caçador não te comprou?

— Valefar não...

— A sua dúvida é bem reveladora, mas eu não estou aqui para difamar o caçador. Muito pelo contrário, eu preciso da ajuda dele e da sua também.

— Nossa ajuda?

— Sim, porém eu não posso dar detalhes agora, pois preciso pedir diretamente para ele. O que eu quero de você é que convença ele a falar comigo sem me atacar, pois tenho certeza que do contrário ele vai tentar me matar assim que eu abrir a boca. Vocês são tão bárbaros. E ainda têm a petulância de me chamar de besta, pois besta são vocês seus...

A raposa resmunga algo ao final, mas ela diz em baixo som e não consigo escutar muito bem.

— Eu te ajudo. Vou convencer ele.

— Então vamos fazer assim, pegue esta fita vermelha e, se o caçador concordar em falar comigo, é só você amarrar a fita em algum lugar visível da sua roupa, assim eu saberei. — A raposa tira com a boca uma fita vermelha, que está em seu pescoço, e me entrega. — Eu vou voltarei em alguns dias, pois ouvi dizer que o caçador sairá da cidade. Portanto, procurarei por vocês novamente assim que ele retornar.

— Mais uma coisa — diz a raposa —, como ato de boa-fé, lhe alerto sobre algo, pois alguém deve ter removido suas memórias com magia. Perda de memória, da forma que você me explicou, só pode ser feita por magia. Quando é para remover uma memória recente é bem simples, mas para apagar vários anos, como parece ser o caso, é uma extremamente complexa e precisariam de vários...

— Sr. Vitor! Ele só foi ao banheiro e já deve voltar! — diz Cintia em voz alta. Vem da direção da porta de entrada.

— Parece que o lorde demônio se aproxima. Tenho que ir. Eu conto com você, filho do caçador. — Com isso, a Srta. Raposa sai correndo em direção ao estábulo e some em meio as sombras.

— Gris, o que você está fazendo aí sentado no chão?  — diz Valefar.

Ahm... Eu estou vendo como é a noite na cidade, ela é bem bonita fora da floresta — digo tal mentira e escondo a fita vermelha no bolso. — Eu vou ao banheiro, professor. Já volto para dentro. Desculpe-me se causei problemas.

— Certo, mas não demore.

— Viu, eu falei que ele estava bem. Crianças são assim mesmo, mas a cidade é tranquila...

Cintia continua falando várias coisas para o professor, mas o som fica muito distante conforme caminho na direção oposta.

Será que eu sou mesmo o que ela diz, um escravo? E este bracelete no meu pulso, de onde será que ele é? Creio que ela é minha melhor chance de descobrir sobre de onde eu vim.

Não quero mentir para o professor, mas ele não quererá me ajudar e provavelmente dirá para eu não pensar muito no assunto. Manterei tudo em segredo e ajudarei a Srta. Raposa, afinal isto não atrapalhará nossa busca.

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