Aelum Brasileira

Autor(a): P. C. Marin


Volume 1

Capítulo 19: Pessoas Levadas

CINTIA

 

Que descuido o meu. Creio que eu ainda estava fragilizada pela notícia de que o Gris e a Alienor foram feridos e quase morreram.

Receio que baixei a guarda por conta do alívio e também pelo fato de que ele é nosso benfeitor, mas os sinais vieram cedo.

Estou segura que, em circunstâncias normais, eu perceberia algo estranho no momento que eu vi ele servir o chá. Seus movimentos, concentração e destreza não são compatíveis com seu ofício.

Claro, se somente fosse isso, eu não teria desconfiado, mas outros indícios também vieram.

Droga, eu tomei todo aquele chá que ele me entregou. Certamente ele bebeu comigo, entretanto Alan é um alquimista e poderia ter colocado uma substancia minúscula no meu copo, que eu nem perceberia ou, talvez, ele poderia tomar um antídoto escondido, antes de beber do chá.

O chá! V. está tomando também!

— O que seria isso Sr. Val Lefar? — diz Alan.

Por que ele pronuncia o nome do V. sempre de forma diferente? Droga, não posso me distrair com isso!

— Os anões inventaram recentemente, parece que é chá, mas eles se ofenderam quando eu chamei disso — diz o V., despreocupadamente.

— Que bom que você teve bastante tempo livre em sua viagem. Fico realmente contente que suas férias na capital do aço tenham sido tão produtivas! Humpf! Enquanto morríamos aqui.

Que ódio do Vitor. Sim, voltarei a chamá-lo de Vitor, esse imbecil, idiota. Pois, ele ficou lá passeando, enquanto acontecia o inferno em Lumínia, e ainda tem a ousadia de me dizer para eu descansar!? Eu? Você vai ver quem vai des...

Ah! Os garotos estão bem, Srta. Cintia! Eu já cuidei deles. Agora só precisam descansar e estarão quase novos. Quero dizer... — Ele para de falar, por um momento, e espreita o braço direito de Gris, o que havia um bracelete antes, mas agora possui uma cicatriz horrível, e depois volta a falar com o Vitor: —  Vamos Sr. Val Lefar, me diga o que é isso.

Val Lefar novamente, será que Val é nome e, Lefar, o sobrenome? Agora que paro para pensar, o barão também parecia chamá-lo assim.

Somente nobres tem sobrenome e Val é um nome que serviria tanto para um homem, quanto para uma mulher. É um nome estranho; mas, em todo caso, é bem mais bonito que Valefar.

Droga, não tenho tempo para pensar nisso. O que preciso me preocupar é com o ferimento do Gris.

Eu sabia que foi atacado e que estava inconsciente. Sei que ele respira tranquilamente e está bem, mas seu braço parece que foi arrancado? Sim, o bracelete não está ali, e quem o arrancou?

A Alienor não me diz nada. Se fosse o Alan, ela teria me avisado.

Olho para a raposa, e ela está... prestando muita atenção em uma conversa sobre chá? Por que ela se interessa tanto por uma conversa sobre isso? Alienor parece curiosa, confusa e com um pouco de medo, mas sua cauda não para de balançar. Para lá e para cá.

Se há alguém difícil de entender, é Alienor. Será que é por isso que nos damos tão bem? Digo, às vezes eu quero matá-la, e tem vezes que eu chego às vias de fato, mas eu gosto dessa raposinha safada.

— Eles o chamam de Chimurram — diz V.

Chimurram, que nome estranho, e que droga de assunto é esse? Bom, tanto faz.

Eu preciso confirmar algo mais importante: — Garotos, não querendo atrapalhar a conversa produtiva de vocês, mas... — V. e Alan olham um para o outro, depois ambos olham para Alienor, e todos os três riem ao mesmo tempo:

Hahahahahahaha!

— Perdão, Srta. Cintia, mas tem razão, eu imagino que estamos fazendo uma barulheira e os meninos precisam descansar, não é isso? —  diz Alan.

Ele não me engana. Eu sei que tem coisa estranha nele, só não tenho certeza ainda do que é e nem provas de algo.

— É que eu estou curiosa sobre a cicatriz no braço do Gris.

— Sim, de fato — responde Alan —, eu consegui curar os ferimentos mais leves com perfeição, mas o braço dele foi arrancado, e isso está além do que posso fazer.

— Arrancado?! — eu indago.

Céus, então é verdade. A cicatriz indica que foi arrancado e depois recolocado no lugar, pois o bracelete não está mais ali.

Porém parece que eu sou a única aflita sobre isso. Até o V. está calmo e apenas observa o Gris, enquanto toma chá. Vitor seu maldito! Pegarei o Gris para mim. Você não o merece.

— Mas ele está curado, não é? — digo.

Hum... É que há um limite do que pode ser feito com poções alquímicas, Srta. Cintia. O que eu fiz religou as veias, músculos e ossos muito bem, mas os nervos e tendões são delicados e complexos, portanto ainda estão um pouco comprometidos. Receio que o meu tratamento foi só para que o braço dele não apodrecesse fora do corpo. Em todo caso, ele fará coisas simples com a mão direita, como comer, mas terá muitas dificuldades em tencionar um arco, por exemplo.

— Não, não pode ser, ele é um menino tão bom e...

— Eu consigo corrigir isso, não se preocupe — diz V., com uma voz firme e serena. — Demorará seis meses para que possamos ir até aquele lugar, mas eu o levarei, e ele será curado. Não será custoso, apenas precisaremos esperar. Além disso, eu pretendo usar este tempo para treiná-lo em algo específico. Ele é jovem, mas é inteligente e é certo que aprenderá fácil.

— Eu não entendo, seis meses, esse lugar é tão longe assim? É do outro lado de Aelum, por acaso? Não vá me dizer que é em Nila Velum? Eu não deixarei levá-lo até lá, pode esquecer. Além disso, como ele treinará enquanto viaja? — Eu despejo um monte de perguntas.

Saco, eles devem pensar que sou uma maluca, por fazer tantas perguntas, mas meu coração está tão inquieto.

— Não, não haverá viagem para longe, pois o local é Ticandar. Lá estão boa parte dos magos mais proficientes em magia positiva. A maioria utiliza criação, mas eu conheço ao menos um que usa magia de vida e pode curar o Gris — diz Valefar.

Ticandar, isso é ótimo.

— Entendo, mas por que seis meses? Chegar em Ticandar é perigoso, todavia é próximo daqui, e eu sei que você consegue.

Ticandar é no meio da Floresta de Prata. Ora, o V. vive ali.

— Creio que sei o motivo — interrompe Alan —, pois Ticandar é fechada para estrangeiros, mas a cada cinco anos eles fazem um festival, que é aberto a eventuais visitantes corajosos o suficiente para atravessar a Floresta de Prata.

Ele disse antes que era novo na região, e agora conhece tão bem a cultura dos lumens? Nada nele se encaixa.

— De fato, é isso mesmo. Eu poderia entrar, pois tenho boa relação com os lumens, mas o Gris não, eles não o deixariam. No caso, o festival dos lumens será daqui seis meses. Está próximo, só precisamos esperar.

É isso, minha oportunidade. Preciso que Alienor vá junto.

— Lembra que você me devia um favor, por cuidar do Gris, Sr. V.?

— Sim... — Finalmente a serenidade de V. é substituída por desanimo. Eu o venci!

— O que eu quero em troca é que você cuide de Alienor, por seis meses, a proteja e a leve junto, em segurança, até Ticandar, para que ela possa ser curada também e não estamos abertos a discussões. Você me deixou em maus lençóis aqui e já vai até lá, de qualquer forma. Só precisa levar uma raposinha a mais — digo isso e, ao final, aponto para Alienor.

O que pode dar errado, não é, Srta. Raposa?

Ah! Finalmente estarei livre dos soldados de Galantur. Estou aos seus cuidados, Lorde Demônio.

— Lorde o quê? — eu pergunto.

— Certo, eu farei. A levarei, mas a garota terá de me obedecer, pois a Floresta de Prata não tolera pessoas sem disciplina.

Todos olham para a raposa.

— O quê? Eu prometo, ! Bem-comportada e tal...

Poderia não abanar o rabo na hora de mentir?!

— Eu a levarei então.

Ah! Obrigado V., você é a pessoa mais gentil do mundo, mas eu tenho um pouco de pena de você e do Gris agora.

Não, pensando bem, acho que vocês todos se merecem.

— Será como uma família feliz a passear no bosque, que alegria — diz Alan, enquanto aplaude.

Com a fala dele, eu retomo o meu raciocínio. Ele disse que não estava aqui há muito tempo na cidade, agia de forma discreta, portanto.

Não se assustou nem um pouco com a presença de Alienor, porém qualquer pessoa comum ficaria com medo de um animal que falasse.

Que coisa, ele me perguntou se eu os via como filhos, nem percebi que ele já sabia que a raposa era Alienor. Que droga, o que mais eu deixei passar?

Por fim, o mais grave de tudo; pois, se fossem somente pelos indícios anteriores, eu provavelmente não desconfiaria de nada, mas ele diz que Alberto viajou para longe e ao mesmo tempo Lorena deixou a cidade. Ambos estão conectados a ele, Gris ou a mim. Há uma conexão entre os que desapareceram, e eles sumiram ao mesmo tempo.

Sem falar que a história contada por ele é muito estranha.

Céus! Verdade, ele disse que Alberto pagou em dinheiro pelas despesas, por se sentir culpado pelos ferimentos dos garotos, mas os ferimentos acabaram de acontecer, portanto o tempo é muito curto para ele ter tomado ciência disso, pago e se mudado daqui!

Olho ao meu redor e não percebo nada estranho na casa de Alan. Desde a chegada do Vitor, ele está relativamente normal e não aparenta ter medo do V. também.

Entretanto, ao passo que analiso tudo e procuro por mais pistas, a imagem de uma menina me vem à mente, uma menininha loira.

Espere! A filha de Lorena! Que sensação estranha, lembro dele ter falado de maneira esquisita sobre o fato dela não parar de tagarelar.

— Pessoal, eu preciso ir a um lugar, deixo os dois garotos aos seus cuidados, eu já volto.

Não queria deixar Gris e Alienor, mas o V. está aqui. Conto contigo, V.!

— Deve ser algum daqueles assuntos femininos — diz Alan, enquanto toma um gole de chá.

Saio pela porta da loja de poções, a qual é anexa à casa de Alan. Eu sei onde a Lorena mora. Agora eu preciso confirmar se ela está na cidade e, principalmente, se Laura está bem.

Já começo a ver os raios de luz. Nós ficamos o resto da noite na casa do Sr. Alan conversando e cuidando dos meninos.

A casa de Laura está a uns cinco minutos de caminhada daqui. Enquanto caminho, eu vejo algumas crianças brincando logo cedo, há dois meninos, um ruivo e outro de cabelo preto, com roupas estranhas. Além deles, há uma menina loira, é Laura e ela chora no canto, sentada no chão.

Passo pelo menino ruivo e pergunto a ele: — Por que a Laura está chorando?

— Ela diz que os pais saíram de casa, enquanto ela dormia, e não voltaram mais. ela veio aqui perguntar se eu os vi. Disse que não, depois ela ficou chorando.

— Obrigada, Mateus.

— Por nada, Srta. Cintia.

Eu vou até Laura. Ela é tão pequena, e deve ter uns oito anos no máximo. Ela está sentada no chão, com as costas contra a parede de uma casa. Eu me abaixo e pergunto:

— O que aconteceu, Laura?

— Srta. Cintia? É que... é que... eu fiquei brincando com o pessoal até tarde, ontem, aí a mamãe disse para eu entrar, mas eu não entrei, o papai também falou para eu entrar, mas eu também não obedeci ele, o papai gritou que o monstro da floresta iria me levar embora, mas, mas. Buahhh!

— Pode continuar, meu bem. Estou aqui agora.

Aí... aí... eu desobedeci, de novo, e o papai veio me buscar com uma vara, então ele me bateu, ele falou que eu sou levada. A mamãe também estava com raiva, eu dormi com dor, mas agora eu acordei e não achei o papai e a mamãe. Acho que eles me abandonaram por eu ter sido levada. Buahhh! — A Laura chora ainda mais.

Sinto um aperto no peito, mas já ouvi tudo o que precisava.

— Laura, eu não sei onde seus pais estão, não ainda, mas que tal vir com a Srta. Cintia aqui. Nós podemos esperar juntas e, quando estiver mais tarde, eu te ajudo a procurar por seus pais. Vamos sair por aí e perguntar para todo mundo no vilarejo, tudo bem?

— Tudo bem, Srta. Cintia — responde Laura, enquanto soluça e pega minha mão. Então eu a puxo para meu colo.

Ela é uma menina linda, é tão perfeita, e até o modo como não para de falar a torna tão incrível.

— Aonde nós vamos, Srta. Cintia? — Ela já está um pouco mais calma em meu colo.

Sim, nós precisamos voltar àquele local, por isso, eu ando com ela bem devagar, pois preciso acalmá-la antes de chegarmos lá.

— Nós vamos à casa do Sr. Alan, o dono da loja de poções.

— O tio do bigode? — diz Laura, ainda com a voz um pouco embargada pelo choro.

— Sim, mas não o chame assim, por favor, pois é feio. Em todo caso, é ele mesmo. Hum... você acha ele legal?

— Acho sim, ele é engraçado, é bem divertido.

— Você tem razão, ele é engraçado, sim. , nós vamos ver o caçador também, ele está lá e...

— O da Floresta de Prata? Ele é enorme né, tipo gigante, não é, a Srta. viu? Eu acho que ele mata bestas gigantes na floresta, mas, quando eu falo isso para os meninos, eles riem de mim.

— É aquele caçador mesmo. Você é uma menina muito esperta, sabia?

Brigada, Srta. Cintia. E o Gris também está lá?

— Está, sim, mas ele está dormindo agora e está doente.

Hummm... Espero que ele melhore. Eu queria brincar mais com ele. Ele é muito rápido, sabia? Tipo, vrum! Ele pula, dá uma pirueta e cai de pé. Ninguém consegue pegar o Gris!

— Sim, ele é muito especial também e... me diz uma coisa: Ele é bonito, não é? — Aperto com o indicador em seu peito para provocá-la.

— Acho sim. Ele me dá um pouco de medo, mas eu gosto dele, ele é legal.

— Quer saber, ele me dá um pouquinho de medo às vezes também. Porém, ele é muito gentil, e nunca faria nada de malvado e... Hey! Não mude de assunto, pois eu conheço seus truques. Sei que você falou que ele é bonito! — Digo isso, enquanto faço cocegas nela.

Hahahahaha. — Ela para de chorar, e está bem melhor agora.

— Sabe, se o Gris melhorar rápido, o que acha de nós três irmos andar a cavalo perto do rio, quando fizer sol?

— A Srta. sabe andar a cavalo?

— Não só isso, sou tão boa que sou uma professora de equitação. Às vezes, eu ensino filhos de ricos a cavalgarem por aí.

— É, a mamãe diz que só meninas ricas que andam a cavalo.

— Você é uma menina rica, não sabia?

— Sou?

— Sim, e por isso você vai aprender comigo e um dia você terá um monte de cavalos. Eu vou te ensinar direitinho como se faz.

— Que legal, Srta. Cintia... — Laura pensa um pouco, acho que ela quer fazer uma travessura, pois dá uma risadinha: — Não conte para a mamãe, mas ela ficou falando que tem baratas na sua estalagem. Hihihi.

— Caramba, não acredito. Serio que ela fez isso? Humpf!

— Sim, mas não conte para ela, por favor, senão ela vai me bater.

— Não se preocupe, este será nosso segredinho.

Sinto muito, Laura, mas eu creio que mesmo que eu quisesse, estou quase certa que não terei a oportunidade de contar para sua mãe.

Chegamos, agora eu bato à porta.

Toc! Toc!

Que situação complicada, Laura, pois creio que quem foi levado por um monstro foram seus pais, e não você.

A porta se abre.

— Olha só, que surpresa, que alegria! Minha casa está cada vez mais colorida, pois tem uma ruiva, tem uma morena, um moreno, tem até um cinza e agora? Uma loira, era o que faltava mesmo! A Srta. Cintia sabe como completar uma festa. Hahahaha — diz Alan, que dá uma bela risada.

— Sr. do Bigode! — Laura, que até então estava no meu colo, debruça-se e estende as duas mãos na direção de Alan, e ele a pega no colo. — Tem também um de cabelo marrom! — a garota diz isso, na medida em que toca o cabelo de Alan.

— Sim! É verdade, tem um de cabelo castanho, que bobo eu sou! Ih! Andou chorando?

— Não, Sr. do Bigode, é porque estava chovendo lá fora! Hahahaha!

— Sua danadinha! Fica mentindo para mim. Eu sei que não está chovendo. Você vai ver! — Ele faz cocegas em Laura, e ela cai na gargalhada.

Eu deveria ser grata a ele? Por não ter levado pelo menos a Laura? Juro que, por um breve momento, eu senti um pouco de gratidão. Isso me torna alguém ruim? Sentir gratidão por um monstro mascarado?

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