Aelum Brasileira

Autor(a): P. C. Marin


Volume 1

Capítulo 11: Joatan

JOATAN

 

Já vi muitas coisas, participei de guerras nas linhas de frente e sobrevivi, assim como já liderei homens até a morte e sigo vivo.

Às vezes, converso com os caídos em batalha quando durmo. Chamam isso de loucura da guerra.

Também já enfrentei bestas e estou de pé. Não há muitas coisas que possam me amedrontar hoje em dia, e não é porque sou corajoso, mas porque já vivi o suficiente.

Porém, existe um certo alguém a quem temo, e o motivo disso é que ele pode tirar mais do que minha vida. Ele pode retirar o meu legado.

A notícia boa é estou em bons termos com ele, ou estava, até agora.

— Adolescentes!

Nosso acordo era simples, não faço mal algum a quem ele me indicar. Já ele mantém as bestas da floresta longe das minhas terras.

Eventualmente, até se desfez de salteadores que perturbavam Lumínia, cujos meus soldados não conseguiram dar conta. Devo até assumir que a recente prosperidade que passamos nos últimos três anos se deve muito a ele.

O caçador poderia tão somente me ameaçar, mas mesmo assim se prontificou a prestar um serviço à altura do que me pediu. Não, o serviço que ele vem prestando é bem maior que a contrapartida que eu dou.

Eu disse para aquele idiota não provocar o caçador, ficar o mais longe possível dele. Entretanto, o merdinha se julga mais inteligente do que eu, não é? Acha que sabe mais do mundo do que os veteranos.

— O que devemos fazer, Meu Senhor? — diz o tenente.

— O caçador está na cidade?

— A informação que coletamos é de que ele saiu da cidade e deixou o filho sozinho na estalagem, aos cuidados de Cintia.

— E meu filho?

— Na clínica do Dr. Túlio, ao que tudo indica, sem risco de morte ou qualquer sequela grave.

— Vamos até lá. Quero saber a versão dele.

Deixo minha mansão. Depois de atravessar a cidade, percebo que todos comentam sobre o ocorrido e me observam curiosos. Isto não passará despercebido de forma alguma, não desta vez.

Ao final, chego à clínica médica.

— Vossa Senhoria — diz Túlio, o médico.

— Meu filho, como ele está?

— Estável, Meu Senhor. Quando cheguei, o Sr. Alan, o alquimista, já havia administrado uma poção restauradora, a qual curou quase que completamente e o tirou do perigo. Eu nunca vi uma poção com efeitos tão fenomenais em todos meus anos de medicina. Em todo caso, agora seu filho está aqui somente para observação e nada mais.

— Posso vê-lo?

— Sim, Meu Senhor, é por aqui.

Atravesso a recepção e chego ao quarto que Diego está. Meu filho é um garoto forte, ao ponto que até um soldado treinado teria problemas ao desafiá-lo e olhe ele aqui, em um estado deplorável. Se o caçador fizesse isso, eu entenderia, porém me disseram que foi um garoto pequeno.

Com o depoimento da testemunha e com o relato dos soldados, já sei como conduzir isto. Sou obrigado a pular algumas pequenas formalidades.

— Você é réu e está sob julgamento agora, Diego di Ricci. Eu tinha dado uma ordem bem simples para você, não é? Falei para não criar problemas para o caçador, pois ele e eu estamos em bons termos e você está aí estragando tudo. Tem ideia do tamanho da merda que você fez? Qual sua explicação?

— Se você fosse mais corajoso, eu não teria que fazer isso sozinho. Ele é só um...

Com a mão direita agarro o pescoço de Diego, o arranco da cama e o coloco contra a parede. Escuto o som dos utensílios e ferramentas médicas caírem no chão. O tenente e o médico veem tudo, mas não fazem nada para ajudar o garoto.

— Você?! Não me chama mais de senhor nem de pai? E ainda me insulta e me chama de covarde! Pois, de agora em diante, vai se referir a mim como Meu Senhor e Vossa Senhoria, assim como os demais, entendeu!? Entendeu!? Eu perguntei se entendeu!?

— Guah! — O garoto não consegue responder, pois está estrangulado. Agora ele começa a ficar roxo e se debate, mas nenhuma das testemunhas faz nada. Então eu o solto, e meu filho desaba pelo chão.

Eu perguntei se você entendeu? — digo agora em voz mais baixa, ao mesmo tempo que me inclino para frente, para ouvir a resposta.

— Entendi! — diz Diego, enquanto se levanta.

Bam! Dou um murro no rosto de Diego e ele desaba novamente.

— Entendi o quê?!

— Entendi, Meu Senhor!

— É uma bela cicatriz a que você ganhou no rosto. Eu não vou pagar para removerem e, caso algum dia você queira retirá-la, precisará fazer pelo seu próprio esforço.

— Diego di Ricci, você perdeu sua oportunidade de dar sua versão dos fatos, por falta de decoro, por isso te declaro revel. Dispenso o depoimento do ofendido.

Agora, eu já possuo informações suficientes para te julgar.

— Sua sentença, portanto, é culpado e sua pena... — Olho para o tenente e digo: — Tenente!

— Sim, Meu Senhor!

— Leve Diego para mansão. Eu retiro toda autoridade dele sobre você, qualquer soldado, morador, trabalhador, estrangeiros ou servos. Leve-o ao seu quarto. O garoto não tem permissão de sair até que eu ordene o contrário. Deixe dois subordinados seus o tempo todo de guarda. Se ele tentar sair, podem usar a força, podem até o surrar se necessário, só não o matem, pois ele não vai se livrar tão fácil assim.

— Sim, Meu Senhor.

Ah! Mais uma coisa, depois de resolver o que eu determinei, procure meu secretário e peça para ele efetuar o pagamento das despesas com o alquimista e com o doutor, o que inclui os objetos que eu quebrei aqui.

— Como desejar, Meu Senhor.

Pois bem, vejamos esse tal filho do caçador.

Chego à casa de Cintia, a dona da Estalagem Alazão Selvagem, e bato à porta. Ela demora um pouco para abrir. Deve estar pensando em como reagir. É meticulosa, e eu sei.

Olho para os lados. Está ventando forte e ficou frio de repente.

Cintia abre a porta, ela parece estar bem tranquila.

— Meu Senhor, por favor, entre.

Eu entro e procuro pelo garoto, mas ele não está aqui. Será que foi levado à estalagem?

— Não precisa ser tão formal, Srta. Cintia, pois não há ninguém aqui mesmo, verdade?

— Fico agradecida. Por favor, sente-se, Sr. Joatan. — Com a classe esperada de uma princesa, a Srta. Cintia me indica o local que posso sentar.

Eu me sento no sofá. Vejo que a casa de Cintia é bem-cuidada e limpa. É uma mulher bem sofisticada e relativamente rica, muito acima da média de um vilarejo tão pequeno e modesto.

Porém, o vilarejo prospera, com isso a estalagem e os estábulos prosperam junto, haja vista que por aqui passam diversos mercadores. Lumínia é o centro de várias rotas de comercio, afinal.

Assim, com as conexões e com seu jeito para os negócios, creio que em alguns anos ela pode se tornar uma aristocrata, quem sabe até ganhar um título. É quase o meu caso, mas eu ascendi com as vitórias em batalhas, digo, por sobreviver a muitas batalhas.

Gostaria que meu amigo Bernardo estivesse aqui para ver sua filha.

— Espero que não lhe desagrade a minha humilde residência, Sr. Joatan.

— Muito pelo contrário, ela é particularmente aconchegante.

— Deseja beber algo?

— Não é necessário. Fico agradecido... — Deixo escapar um suspiro. Não levo jeito para estas coisas.

— Não vou dar muitas voltas, Srta. Cintia, pois não sou bom com as palavras como você. A Srta. sabe que sou um militar e, portanto, gosto de ser prático e objetivo. Onde está o garoto de cabelos cinzas?

— No meu quarto, Sr. Joatan. Quer que eu o chame?

— Sim, por favor.

Cintia se levanta, vai à porta de seu quarto e diz:

— Gris, venha cá por favor.

A porta se abre, e dela sai um garoto bem pequeno. Eles me avisaram, mas não esperava que seria tão pequeno assim. Quero dizer, ele aparenta ter uns doze anos, e seu tamanho condiz com a idade, pois ele é bem saudável, possui uma boa musculatura, mas é um garoto normal.

— Esse é o garoto que espancou o Diego? — digo e aponto para ele.

— Sim, Sr. Joatan, porém deixe-me explicar, ele...

Não é do meu feitio interromper alguém que fala, pois isso dá a falsa impressão de que não temos interesse no que a pessoa tem a dizer. Não deveria fazer isso, principalmente com alguém importante como Cintia, mas eu não resisto e faço um sinal com a mão para ela parar, pois há algo que não posso deixar para depois.

— Só um momento. Então quer dizer que este garoto magricela espancou o Diego?

— Sim... foi. — Um pouco relutante, confessa Cintia, e abaixa a cabeça.

Hahahahaha! Que ótimo! Você fez bem, garoto, pois meu filho precisava de uma lição dessas mesmo. Ele não tem ideia de como o mundo funciona.

— Seu pai lhe ensinou a usar o impetus? Foi assim que você subjugou o Diego?

O garoto olha para Cintia antes de responder. Está pedindo autorização para falar? Não, parece que ele não sabe do que se trata.

Impetus? — o garoto pergunta.

— Se você ainda não sabe, não cabe a mim lhe ensinar, pois é algo perigoso. Isso certamente seu pai vai lhe explicar em algum momento apropriado. Em todo caso, o que você fez então, usou magia? Sabe dominar o fluxo?

— Não, Sr., eu não posso manipular o fluxo.

Olho para Cintia, e ela balança a cabeça em afirmação. Cintia é muito inteligente, portanto ela não ousaria mentir.

— Então quer dizer que você só superou meu filho e nada mais? Só espancou ele? Hahahaha! Isso não é incrível, Srta. Cintia? Esse garoto é incrível! Olhe só para ele.

Inacreditável, ele dominou meu filho completamente e só usou a força do próprio corpo e provavelmente o quê? Técnica, sem nada mais? Eu queria ter visto.

— Senta aí, garoto, e vamos conversar de homem para homem então. — Percebo uma certa tristeza em Cintia. — Vamos lá, Srta. Cintia, não precisa ficar tão apreensiva, pois eu sei que você não é assim.

Agora todos estão sentados e o clima da conversa fica mais relaxado.

— Então, conte-me, você mora onde, é na floresta com seu pai?

— Sim, Sr., eu moro na Floresta de Prata.

Ah é? Ele lhe ensinou a caçar também?

— Sim, eu já consigo caçar qualquer animal na borda da floresta e evitar algumas bestas também.

Uau! E ainda tão jovem! Sabe que tem homens fortes e adultos que não aguentariam um dia lá, não é?

— Sim, o meu pai também diz isso. Porém não é pelos homens serem fracos, é por não conhecerem como funciona a floresta, pois eles fazem muito barulho. Isto atrai predadores e eventualmente bestas também. A orla exterior é escura, tem muitas árvores e neblina. É fácil se perder e ser emboscado.

Só tocar no assunto de caça e o menino se solta. Vejo o brilho em seus olhos. Ele deve gostar do que faz.

— Foi assim que você espancou o Diego? Ele não sabia como que funcionavam as coisas?

Hum... — O garoto pensa um pouco e continua: — É, eu creio que foi mais ou menos isso. Ele parecia esperar que eu fosse me comportar de uma maneira diferente. Ele não protegia os pontos fracos do corpo, por isso perdeu. Mas em questão de força, ele é bem mais forte, tenho certeza. Entretanto, meu pai já conseguiu abater um urso usando as mãos e uma adaga. Eu vi ele fazer, não é questão de força.

— Você se machucou? Vocês tiveram algum prejuízo?

— Cortei a boca, mas nada muito sério, Sr.

— Não, nada foi quebrado aqui, Sr. Joatan — diz Cintia.

— Olha só, quem diria, se eu o visse por aí, acharia que é um garoto comum. Pois bem, sobre o ocorrido de hoje, nada aconteceu. O que eu vou dizer é que meu filho desmaiou na rua e que vocês tentaram ajudar. As pessoas não vão comprar esta ideia, mas não me importo, e é assim que será dito, tudo bem?

O garoto olha para Cintia e busca aprovação, já ela afirma com a cabeça.

Sob circunstâncias normais, eu ouviria a versão do meu filho, a versão do Gris e de todas as testemunhas. Ao final, tomaria uma decisão, mas esta não é uma circunstância normal.

— Tudo bem, Sr. Joatan.

— Certo então, se meu filho ou qualquer um na cidade causar algum problema para um de vocês dois, eu peço que me procurem. Se eu não estiver ao alcance, falem com o tenente ou meu secretário. Vamos tentar que isto não ocorra novamente.

— Sim, Sr., isso não se repetirá — diz o menino.

O garoto olha para Cintia, ela responde com uma expressão de raiva, e o garoto se amedronta.

— O Sr. Val Lefar volta quando para a cidade?

— Em cinco dias — responde o garoto, rapidamente.

— Certo, sobre a prisão preventiva do garoto, eu a revogo. Darei a ordem aos soldados assim que eu sair daqui. O garoto é bem-vindo em qualquer lugar de Lumínia.

— Fico agradecida pela sua benevolência, Sr. Joatan.

— Qualquer dia, eu farei uma visita com mais tempo, mas hoje a cidade está uma bagunça, e preciso acalmar os ânimos. Muito obrigado pelo tempo de vocês.

— Eu que agradeço, Sr. Joatan. Também estamos à disposição para qualquer esclarecimento.

Assim, eu saio da casa de Cintia e dou a ordem.

— O garoto está livre. Nada aconteceu hoje, entenderam?

— Sim, Meu Senhor! — dizem, em uníssono, os soldados que estavam de guarda.

Preciso falar agora com a empregada da estalagem e com os soldados que ouviram seu testemunho, pois eles precisarão mudar a versão dos fatos. Também necessito falar com o Dr. Túlio, pois ele precisa guardar segredo do que viu.

Sinto algumas gotas de chuva em meu rosto.

Que Dara tenha piedade de Lumínia, desta vez.

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