Volume 2
Capítulo 113: PRIMEIRO APRENDIZADO
A luz não vinha de lugar nenhum. Ela apenas existia, difusa, leitosa e gentil, deslizando pelas paredes arredondadas da bolha, parecendo manter o ritmo da respiração de Kai.
Ele piscou. O ar era denso demais para ser ar. Líquido, quase. Cada respiração vinha pesada, dando a falsa sensação de que o mundo lá fora estava afundando, e ele não.
Havia essa sensação estranha e… alienígena. Isto é… o que estava acontecendo…?
Kai não tinha certeza. Definitivamente, o ar estava mais pesado do que ele lembrava. Mas não era outro lugar, mesmo que…
Sentia seu rosto pesado, inchado. Um cansaço tomou conta dele, e uma dor, não física, mas emocional lhe apalpava com mãos gélidas e unhas afiadas.
Tinha esse sentimento de perda, de dor, de lástima oriunda de algo muito profundo e tão vazio quanto.
Suas memórias… eram um farrapo. Estavam embaçadas, parecendo que pela primeira vez em muito tempo, a maldição de Greylous perdia um pouco de sua força.
Ele tocou o rosto, limpando uma lágrima. Por que chorava? Não havia resposta.
O cheiro da fogueira ainda pairava ali. O eco distante da tempestade também. Só… algo havia mudado dentro da própria bolha.
— Você despertou rápido — disse uma voz calma.
Naor estava sentado exatamente onde estivera antes, imóvel, como se jamais tivesse parado de observá-lo. A luz leitora vinha da areia, suspensa, feito poeira viva refletindo um sol morto.
Kai tentou se erguer um pouco.
— O que… aconteceu? — Perguntou, com a voz rouca.
— Você apagou — disse Naor. — O areal reagiu ao seu desespero.
Kai suspirou.
— Mas estávamos há pouco…
— Sim. — Atalhou Naor, se mexendo. — Mas… você apagou. Parte de você que estava prestes a se quebrar foi engolido pelo areal.
Ele fez um pequeno gesto circular no ar.
— Não o movemos. Apenas mudamos o ar ao seu redor.
Kai compreendia… um pouco. Não era outro lugar. Era a mesma bolha, mas envolvida por um segundo véu, criado pelos Esquecidos. Que habilidade curiosa.
— Quer dizer que ficamos… apenas aqui?
Naor assentiu:
— Isso.
Kai estreitou os olhos.
— Eu não fui para… nenhum canto estranho? Nenhum lugar novo?
Naor sorriu de leve, e foi a primeira vez que o gesto pareceu quase humano.
— Não, Kai. Você não saiu daqui. — Ele tocou o chão. — É o mundo dentro de você que se move quando tenta sobreviver.
Kai massageou a testa, ainda tentando distinguir o que era dele e o que era suspenso da areia luminosa. O parasita, de volta à atormentá-lo, murmurava algo disforme, forçando sua presença a sobreviver naquele ambiente abafado.
— Então onde estamos… o que fazemos aqui?
Naor o encarou tranquilamente.
— Chamo de entrelugar. — Ele tocou o chão novamente. — Nem espírito, nem carne. Apenas eco. Fizemos isso para que pudesse respirar… longe daquilo.
“Eles acham que um casulo de areia vai me calar. Pobres criaturas feitas de poeira…”
Kai suspirou diante de pensamentos que não eram seus. Mas, estranhamente, vieram enfraquecidos.
Ele apertou os olhos sentindo uma pontada de dor na têmpora.
— Isso não vai durar — disse, com dificuldade.
Naor não negou.
— Não. — Seus olhos eram puros, estáveis. — Mas durará o bastante.
Kai suspirou.
Naor o olhava cauteloso e em silêncio. Estranhamente, aquele silêncio nunca se parecia vazio. Era carregado de forma, peso e intenção.
Kai por outro lado…
Novamente parecia perdido. Estava uma bagunça. Não conseguia ligar A e B, sensações fractais ameaçando se deteriorar e deixá-lo num estado mais calamitoso ainda.
Isso era… assustador, vide que poucos momentos se passaram e… puff… ele apagou, perdeu uma parte de sua memória, e nada fazia sentido, exceto…
— Você está ouvindo, não está? — Disse Naor, baixinho.
Kai ergueu o olhar, os músculos tensos.
— O quê?
Houve uma singela movimentação nos olhos dourados de Naor, como se a representação dos sóis apagados ainda contivessem pequenas tempestades de energia solar. O Esquecido se remexeu.
— A voz dele.
Kai hesitou. Não porque não quisesse responder, mas porque era como chamar a coisa para mais perto.
Naor não pressionou, apenas disse:
— Converse comigo, Kai Stone. O ar está pesado porque você ainda tenta respirar com o mesmo peito que tinha antes… mas já não tem o mesmo peito.
O rapaz engoliu em seco. Como se constatou, estava cansado demais para se irritar com pleonasmos.
— Eu sei — murmurou, enfim. — Ela… ele… isso… está quieto demais.
Naor inclinou a cabeça.
— É a primeira fase.
Kai pigarreou. Céus! Mesmo cansado, era impossível não se irritar com toda essa calma e sussurros. E onde estavam aqueles bastardos Esquecidos? Ele olhou ao redor e encontrou apenas a fogueira estalando.
Mas, novamente, ele sabia muito bem que isso podia ser apenas o toque insidioso da Voragem, tentada a tirar ele do foco principal.
De repente, o calor aumentou, e ele, compilado a não evitar o que Naor tinha para dizer, retorquiu:
— Fase de quê?
Naor se inclinou, dando um suspense mais do que deveria. Meio minuto depois, ele disse, com a voz de quem diz que está com sede:
— Do veneno.
Kai fechou os olhos com força. A palavra cortou algo dentro dele. Droga… o que era essa sensação, afinal? Onde diabos ele havia se metido?
Essa gente era louca, e ele mais ainda, por dar ouvidos.
A vontade súbita de refazer seus passos e nunca ter saído de Neve Sempiterna pela porcaria da Floresta de Bulogg lhe assaltava a todo momento, lembrando-o da fatídica escolha de merda que fez.
Por que ele não foi embora como uma pessoa normal? Céus…
— Como eu disse, não é uma criatura querendo se apossar de você — Naor continuou, sua voz baixa, sem teatralidade. — É um veneno antigo. Um que não foi feito para homens. Um que apenas precisa esperar que você desista para, no fim, ter onde sentar.
Mas Kai já sabia disso. Voragem Inominável era poderosa, capaz de colidir entre mundos e devastar civilizações antigas e poderosas. Mas até mesmo seres cósmicos precisavam seguir leis… e a desse ser em específico era simples.
Era engraçado que a única coisa que separava Kai de perder o controle fosse um único fio tênue e frágil… de vontade. Sim, pois esse ser só podia ter Kai caso este desistisse.
E mesmo que ele estivesse na beira de sua sanidade, sua vontade era algo muito forte e firme… corajoso, até. Kai poderia perder em força, intelecto e até mesmo em vitalidade… mas sua vontade era tão forte e poderosa… sua expectativa de viver superava algo que havia dentro dele mesmo: sua vontade de ficar sozinho.
Kai não controlava isso… mas parecia ficar forte e pulsava quando ele era desafiado, quando tudo apontava para que ele fosse ser o lado mais fraco da corda. Kai não era um desistente e, muito pelo contrário, ele tinha a tendência a ser rebelde.
Contudo, não pôde evitar que um arrepio subisse sua espinha.
— Já ouviu um animal faminto? — Perguntou Naor. — Quando está fraco demais para caçar… ele se esconde. Respira pouco. Move-se pouco. Ele economiza tudo. Porque sabe que, se desperdiçar uma única fibra, morre.
Kai sabia disso, claro. Afinal, quantas vezes não passara dias na mata, caçando, sendo ele próprio o animal faminto? Dias memoráveis. Talvez por isso sua boca secou.
— Então… ela está economizando força?
— Sim. — Os olhos de Naor eram poços escuros e calmos. — Porque você quase quebrou. Se tivesse quebrado, ela assumiria. Mas não aconteceu. E agora… ela espera.
Kai passou a mão no rosto.
— E o que eu faço?
Surpreendentemente, Naor sorriu. Havia algo de orgulho naquele sorriso, como se Kai tivesse feito a pergunta certa.
— Agora? Agora você aprende.
***
Naor ajeitou o cajado curto entre as pernas, cruzando os dedos sobre o topo de madeira desgastada.
— O erro de quem carrega um parasita — começou — é tentar vencê-lo com força, ou expulsá-lo pela raiva.
A areia luminosa atrás dele ondulou, feito um tecido vivo.
— Mas criaturas assim não são como invasores comuns. São poços. Eles espelham o que você sente. Se você está com raiva, eles crescem. Se você tentar ignorar, eles se infiltram. Se você tentar combatê-los de igual para igual… você perde.
Kai respirou fundo.
— Então como eu luto?
Naor ergueu um dedo.
— Não luta.
Kai olhou para ele, irritado. Era verdade que o rapaz tinha pouca paciência para pessoas como Naor.
Pegue o Firenze por exemplo… ele não suportava o sujeito, com aquele ar afetado e rei na barriga.
Embora Naor não passasse nada além de uma pompa gentil, Kai estava inclinado a contrariar o homem. Por isso, inconscientemente, passou a nutrir certo anseio negativo ao sujeito de rosto escondido. Mesmo que ele não merecesse nada além de bons modos.
Kai estava de verdade tentando entender tudo isso, e não se surpreender muito com a virada de chave momentânea…, mas cada vez que Naor revelava algo, havia a sensação de que a próxima coisa seria no mínimo mais absurda que a anterior.
Com um olhar incrédulo e bufando pelo nariz, Kai ergueu uma sobrancelha.
— …Como é?
Naor sorriu, talvez se divertindo demais com a revelação nada sutil de Kai, que tinha de aprender a controlar melhor suas reações.
— Você observa. E é isso que vamos começar hoje.
Kai franziu a testa — confuso, irritado, cansado.
— Quero que feche os olhos — disse Naor.
Kai hesitou, mas obedeceu. Estava tentando…
— Agora, inspire. Não fundo demais; seu peito ainda está ferido. Isso. Assim mesmo. Ouça o ar entrando. Não brigue com ele. Não tente expulsar a criatura do seu corpo… tente notar onde ela está.
Kai apertou os olhos. O coração acelerou.
E a voz do parasita roçou sua mente como lâmina tocando vidro:
“Que truque tão infantil. Como se ele pudesse—”
— Ignore a forma — murmurou Naor, como se tivesse ouvido também. — Só sinta o peso.
Kai engoliu seco. E então percebeu:
Não era uma voz. Não ainda. Era um ponto de gravidade, como um metal quente dentro do peito.
— Aí — disse Naor, a voz suave. — Isso é o que ela usa para puxar você para o fundo.
Kai arfou. Sua respiração começou a falhar.
— Não tente afastá-la — disse Naor. — Apenas olhe. Aja como se estivesse olhando para algo dormindo. Algo que você não quer acordar… mas precisa reconhecer.
Kai ficou imóvel. O peso pulsou. E, pela primeira vez desde que acordara, o parasita não respondeu com sarcasmo, nem desprezo.
Ele apenas… afundou. Como se estivesse sendo visto pela primeira vez.
Kai abriu os olhos, ofegante, mas mais firme.
— Consegui? — perguntou, quase incrédulo.
Naor assentiu.
— Hoje, sim.
Kai sorriu, ignorando a forte dor de cabeça que lhe prometia durar o resto da vida.
— E amanhã? — Kai perguntou.
Naor fitou a areia ao redor deles — e a luz leitosa pareceu cintilar, aprovando.
— Amanhã você cai de novo. Mas cai menos.
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