Volume 1
Capítulo 5: Cinzas
O ar veio primeiro — quente, pesado, carregado de poeira e fuligem.
Glenn abriu os olhos de súbito, arfando. Os pulmões ardiam, e uma tosse seca o tomou por inteiro, trazendo à boca o gosto amargo de cinzas. Tossiu até o corpo protestar, até sentir o ar finalmente entrar, ralo e quente.
Quando ergueu o rosto, viu acima de si um teto de madeira velha, escurecida pelo fogo, com pequenas frestas por onde a luz fria da lua atravessava em riscos finos. Cada feixe de luz desenhava o pó suspenso, como se o ar fosse feito de fragmentos de alguma coisa morta.
Ele estava deitado sobre palha. Sentiu a aspereza nas mãos, o cheiro de feno queimado misturado a ferro e sangue seco.
Levantou-se devagar, o corpo inteiro latejava, a cabeça pesada como se tivesse dormido séculos. O lugar era estreito — um celeiro antigo, talvez nos arredores da vila. As paredes estavam manchadas de fumaça, o teto curvado, prestes a desabar. Por um instante, ele só ouviu a própria respiração.
— Onde... — a voz falhou. — Onde eu tô...?
As lembranças vinham partidas: o clarão do fogo, os gritos, Louis correndo, a sombra do cavaleiro negro... e depois, ela. A garota de cabelos brancos. O frio no meio das chamas. O toque dela.
“Quem era... aquela garota...?”
O coração disparou. Glenn apoiou-se na parede, quase perdendo o equilíbrio. O corpo ainda não parecia seu, como se tivesse esquecido o próprio peso. Quando tentou dar um passo, o joelho cedeu.
Olhou em volta. Nada. Nenhum som, nenhum sinal de vida.
“Por quanto tempo eu dormi...?”
A incerteza o corroía. Deu alguns passos cambaleantes até a porta do celeiro. A madeira velha rangeu sob sua mão, e quando ele empurrou, o vento entrou com força — quente, denso, cheio de cinzas.
E então o mundo se abriu diante dele.
Ainda era noite, mas o céu parecia sufocado por colunas de fumaça que se erguiam até o alto, apagando as estrelas. A lua mal conseguia atravessar a névoa, transformando tudo em tons de cinza e vermelho. A vila... sua vila... não existia mais.
As ruas onde brincara quando criança, onde corria com Louis e Ellie nas tardes de verão, eram agora trilhas de carvão. As casas haviam desabado sobre si mesmas, transformadas em carcaças negras. As janelas eram buracos vazios, cuspindo brasas mortas. Onde antes havia vida, agora só restavam espinhos de madeira retorcida e o cheiro de algo queimar devagar.
Glenn saiu, um passo hesitante sobre o solo coberto de fuligem. O chão estalou sob as botas, e aquele som solitário pareceu ecoar longe demais. A poeira quente grudava nos cílios. O ar queimava os olhos.
Por um instante, ele só ficou ali — parado, cercado pelo silêncio pesado que sobra depois do caos. O coração batia rápido. Era como se o tempo tivesse parado antes de poder contar o que acontecera.
A vila de Eloria estava morta.
O fogo já não rugia.
Restavam apenas brasas — pequenas, teimosas — tremulando nas bordas do que um dia foram casas.
Glenn caminhava entre os escombros. O ar era espesso, denso demais para respirar. Cada passo levantava cinzas que se misturavam à fumaça, e o chão estalava sob as botas — seco, oco. Ossos.
Ele não parava. Não hesitava. Apenas seguia.
De vez em quando, o vento mudava e trazia o cheiro. Doce e metálico. Carne e ferro. Ele o sentia preencher os pulmões, mas não tossia. Não tapava o nariz. Apenas deixava o ar entrar e sair, lento, inútil.
Passou por uma carroça tombada — a madeira carbonizada, o cavalo ainda preso, olhos abertos e secos. Mais adiante, uma rua familiar. Ou que já fora. As pedras estavam cobertas por algo espesso e escuro. O reflexo das chamas fazia o sangue brilhar como vidro partido.
Glenn olhou, mas não viu.
Escorregou levemente, apoiou-se num muro e deixou a mão ali, mesmo sentindo o calor da pedra queimada. O calor não incomodava mais. Nada incomodava.
Perto do poço, uma figura caída. Corpo pequeno, coberto de fuligem, rosto voltado para o céu. Glenn se aproximou. Parou ao lado. Observou o vestido azul chamuscado, o braço fino estendido, como se ainda pedisse ajuda.
Nenhuma palavra. Nenhum som.
Apenas o bater ritmado do próprio coração — ou talvez fosse só o eco dos passos.
Ele continuou andando. O corpo se movia sozinho, obedecendo a uma vontade que já não era sua. A mente, distante, observava tudo de fora, em silêncio.
Entre os destroços, uma boneca de pano — sem cabeça, suja de cinza. Glenn parou. Olhou por um instante. Depois seguiu.
As cinzas caíam devagar, como neve. O vilarejo inteiro parecia suspenso num silêncio espesso, como um túmulo aberto.
E Glenn, lá no meio, atravessava tudo com o olhar de quem já não pertencia nem ao mundo dos vivos, nem ao dos mortos.
Enquanto a brisa cruzava a rua silenciosa, a fumaça se espalhava como um véu. Foi então que Glenn viu os fios loiros balançando, grudados em cinzas. O corpo dele respondeu primeiro que a mente — o coração bateu forte demais, rápido demais, como se tentasse escapar de dentro do peito. Ele parou de respirar. Concentrou o olhar.
O vestido azul… o azul que ele conhecia.
Ali, imóvel, quase engolido pelas sombras das casas queimadas.
Glenn deu um passo. A ponta da bota arrastou nas pedras. Ele quase caiu. As mãos se fecharam em punhos, trêmulas. Uma pressão esmagava o peito, como se o ar tivesse decidido abandoná-lo.
— Ellie…? — a voz saiu sem força, como se tivesse esquecido o caminho para o ar.
Mais um passo.
O mundo afunilou ao redor dele.
Nada existia além daquela figura no chão, deitada de lado, o rosto escondido atrás dos cabelos.
— Não… — não era uma negação ao que via. Era um pedido. — Não… por favor…
Ele chegou perto o bastante pra ver os dedos dela — sujos de terra, curvados, como se ainda tentassem segurar a vida. O vestido estava molhado. Vermelho onde deveria ser azul. E logo acima da cintura… um corte profundo, cruel demais.
Glenn arfou, sem perceber. O corpo dele se curvou, como se tivesse levado um golpe invisível. Caindo de joelhos, ele apoiou a mão ao lado dela e sentiu o sangue morno contra a pele.
— Ellie… me escuta… — tentou sorrir, mas a boca tremeu. — Vamos pra casa… lembra? Eu preciso te falar algo…
Ele tocou o ombro dela com a ponta dos dedos. A pele estava quente. Mas imóvel. Imóvel demais.
— Acorda… — a voz rompeu, rouca. — Acorda, Ellie… por favor…
Os cabelos loiros escorriam sobre o rosto dela, escondendo tudo. Glenn os afastou devagar, com medo do que veria — com medo do que já sabia.
Ela não se mexeu.
Nem um tremor.
Nem um suspiro.
O silêncio respondeu por ela.
Glenn inclinou o rosto, aproximou a testa da dela, e o sussurro saiu como uma oração desesperada:
— Eu tô aqui… eu prometi… vim por você… então… acorda…
Mas ela não ouviu.
Ou não podia mais ouvir.
Glenn não sabia o que fazer. Sentia o coração bater rápido, mas o resto do corpo parecia travado, preso a algo que ele não via. A primeira lágrima simplesmente caiu, quente, e queimou a pele suja de cinzas. Ele mordeu o lábio com força demais; o gosto de sangue se misturou ao ar amargo da destruição.
— Ellie… — a voz saiu baixa, sem força. — Por que você não me responde…?
Ele segurou a mão dela com cuidado, como se tivesse medo de machucar o que já estava tão frágil. Encostou aquela mão, que começava a esfriar, no próprio rosto. Queria sentir algum sinal, qualquer reação que dissesse que ela ainda estava ali. Mas o toque parecia… distante.
— Eu tô aqui… — sussurrou, quase implorando. — Não dorme… não agora… por favor…
Ele a abraçou, puxando-a para perto, como se pudesse protegê-la do que já havia acontecido. As lágrimas começaram a cair, mais pesadas — não uma, nem duas, mas uma sequência desesperada e sem controle. O som delas caindo no vestido rasgado parecia alto demais. Como se tudo tivesse ficado silencioso só para que a dor dele pudesse ser ouvida.
A mão de Ellie, antes apoiada em seu peito, escorregou e caiu no chão. O impacto foi leve… mas o tilintar da pulseira bateu como um sino fúnebre.
Glenn olhou por instinto.
A pedra esverdeada brilhava — algo que nunca deveria acontecer daquele jeito. Aproximou o rosto, confuso, limpando as lágrimas com o dorso da mão. A pedra tinha uma rachadura que não estava ali antes, e dela escorria um brilho estranho… algo que fluía como fumaça e líquido ao mesmo tempo.
O brilho desceu pela pulseira, tocou o pulso de Ellie e, em seguida, espalhou-se pela pele dela em fios delicados, como veias que se acendiam. Glenn recuou um pouco, com os olhos arregalados e o ar escapando de novo.
— O quê…? — mal conseguiu dizer.
O verde se moveu até o ferimento maior. O sangue brilhou sob aquela luz e começou a puxar-se de volta, como se algo dentro dela exigisse que a vida não fosse embora. A pele se fechava… não de uma vez… mas em pulsos. Cada pulsar parecia um batimento devolvido, roubado da morte.
Glenn assistiu sem conseguir respirar. O mundo inteiro parecia sustentar um único segundo que teimava em não acabar.
— Espera… — ele sussurrou, com um tremor na voz que não vinha do frio. — Ellie… eu… eu não…
Os dedos dele se curvaram levemente sobre o braço dela.
Ele precisava de resposta.
Precisava de certeza.
Precisava dela.
O brilho verde continuou… como se o próprio destino estivesse costurando a vida de volta.
Glenn percebeu que as lágrimas tinham parado, mas não sabia quando. A respiração permanecia presa, trêmula na garganta. Ele não ousava se mover.
Foi a respiração dela que o fez se inclinar.
Primeiro, um movimento quase invisível no peito. Um suspiro fraco. Depois outro, mais fundo. Devagar, mas firme — como quem tenta voltar de longe.
Glenn soltou o ar. Um ar que nem sabia estar retendo. Os ombros cederam por um segundo — o primeiro desde que tudo começara.
A cor de Ellie retornava. Lentamente, mas retornava. O rosto deixava de ser cinza. O azul do vestido parecia menos morto.
Ele tocou a bochecha dela com a ponta dos dedos. Estava quente outra vez.
— Isso… — murmurou. — Respira… continua…
Quis sorrir, mas o medo impediu.
Um clarão cruzou o céu — um raio rasgou as nuvens escuras ao longe, cortando o silêncio que crescia. O trovão veio segundos depois, carregado, pesado, como um aviso de que o mundo ainda não havia terminado de explodir.
Os lábios dela se moveram, e um som quase imperceptível escapou:
— …você prometeu… me salvar… — a voz fraca, como se viesse de um lugar distante demais. — …se eu… estivesse em apuros…
Ele não respondeu de imediato. O peito apertou tanto que doeu, como se tivessem arrancado o chão sob seus pés.
Fechou os olhos e encostou a testa na dela. Segurando aquele instante com tudo que ainda restava. Se soltasse, temia perdê-la de novo. O calor fraco da pele dela tocou a sua — e bastou. O ar voltou. Devagar, mas voltou.
— Eu prometi… — disse, com a voz presa entre o alívio e a dor. — Não foi…?
A respiração dela roçou o queixo dele — curta, pequena, mas presente.
Glenn permaneceu ali, sentindo cada movimento fraco daquele peito como se fosse o próprio mundo voltando a respirar.
Cada suspiro dela dizia: não acabou.
Cada palavra lembrava: quase acabou.
— G… l… — a voz falhou, seguida por uma tosse sufocante que espalhou sangue quente sobre os escombros.
Glenn se virou num sobressalto. O som veio de algum ponto à direita, entre os restos retorcidos de uma casa que já não existia. O coração disparou antes que a mente pudesse formar qualquer pensamento.
Ali, entre madeira queimada e concreto partido, havia um corpo. E por um instante — um único e terrível instante — Glenn desejou não reconhecer.
A pele estava fundida às cinzas, como se o fogo tivesse tentado apagar a identidade junto com a carne. Um buraco grotesco tomava o lado direito do tronco, onde antes havia costelas, músculos, vida. O sangue escorria lento, quase resignado, como se o corpo já tivesse aceitado o fim.
O cheiro de carne queimada se misturava ao da fumaça, e o ar parecia mais denso ali — como se o mundo estivesse tentando esconder o que ele estava prestes a ver.
Um detalhe surgiu. Pequeno. Quase insignificante.
A pulseira no pulso esquerdo.
Glenn travou. O chão pareceu se afastar dos pés. A mente tentou negar, mas os olhos já sabiam.
Era Louis.
O nome não veio como pensamento — veio como impacto. Como uma pancada interna que tirou o ar e deixou só o vazio.
Ellie respirava, viva por um milagre que ainda desafiava lógica. Mas agora… ali estava Louis, vivo apenas pela teimosia do corpo em não desistir. Glenn colocou com o máximo cuidado a cabeça de Ellie no chão, como se ela pudesse se ferir só com um sopro, e correu para perto do primo. O ar pesava, e cada passo parecia puxado por algo mais forte que ele.
— Louis… — chamou, e a voz saiu rouca, sem firmeza.
O garoto levantou os olhos, o movimento causou uma careta que denunciava uma dor impossível. Mesmo assim, tentou sorrir. Foi pequeno, torto, mas existiu — e isso doeu mais em Glenn do que todas as feridas abertas diante dele.
— Que bom… que você está… bem… — disse Louis, as palavras tropeçavam entre respirações falhas. — Eu pensei… que você…
Glenn caiu de joelhos ao lado dele antes que a frase terminasse. As mãos foram direto ao ferimento, sem técnica, só desespero. O calor do sangue que escorria entre os dedos fez o estômago dele se revirar. Não havia como aquilo… como alguém… sobreviver assim. O pensamento veio rápido demais e ele o esmagou na mesma hora.
Louis tentou puxar mais ar. Tossiu forte — e mais sangue jorrou. Os olhos dele buscaram Glenn com urgência, como se precisasse se agarrar a alguma verdade antes do último suspiro.
— Nossos pais… estão bem…?
Glenn travou por um segundo que pareceu infinito. Tudo ao redor — o fogo, o céu rachado, os gritos que já haviam silenciado — empurrou ele para uma resposta que não tinha. Então rasgou a própria camisa, prensando-a contra o ferimento do primo, como se o tecido pudesse impedir o inevitável.
— Estão, sim… — respondeu rápido, firme demais. — Eles estão a salvo, Louis… eu juro.
Ele nem percebeu que mordeu o lábio até o gosto de sangue voltar. Não podia dizer que desmaiou. Não podia contar que não viu nada. Não podia admitir que talvez ninguém estivesse a salvo. Não para Louis. Não agora.
O garoto acreditou. E esse detalhe, essa confiança quase ingênua, feriu mais que qualquer imagem de horror que Glenn já tinha visto naquela noite.
Louis virou a cabeça com dificuldade, procurando Ellie com os olhos. O medo que surgiu era quase infantil, aquele medo que ele nunca admitia ter.
— Eu vi… ela sendo cortada… e após a explosão, ela… — a voz falhou e os dedos tremeram. — Glenn… não me diz que…
— Ela está bem — Glenn respondeu tão rápido que quase se engasgou com as palavras. — A sua pulseira… aquela que você deu ontem… Ela salvou a Ellie. Ela está viva, Louis. Ela está ali.
O garoto soltou um riso leve — um som que não combinava com o sangue que escorria pelo que restava de sua roupa.
Era o tipo de riso que ele dava quando queria parecer forte.
O mesmo riso que sempre dava quando dizia que seria o cavaleiro mais poderoso do reino.
Glenn apertou mais o corpo contra o solo, na tentativa de entender o impossível: Louis estava consciente. Falava. Ria. Quando não deveria nem conseguir respirar. O estômago dele girou — e a cabeça tentou recusar o que os olhos viam.
— Eu… eu vou achar alguém… — Glenn começou a levantar.
A mão de Louis agarrou a dele — fraca, mas firme o bastante para impedir qualquer herói de fugir.
— Não me deixa aqui… — ele pediu, sem conseguir fingir coragem dessa vez. — Eu não quero… ficar sozinho…
Glenn sentiu o peito fechar.
Os olhos arderam.
Mas ele respirou — um esforço silencioso para manter-se inteiro diante do primo.
— Eu tô com medo, Glenn… — Louis confessou, e foi como se algo nele finalmente tivesse cedido. — Eu… eu não quero morrer…
Glenn puxou ele pela mão, como se pudesse ancorá-lo no mundo só com o toque.
— Você não vai — disse com a voz mais forte do que sentia. — A gente ainda tem um monte de coisa pra conquistar! Você vai virar cavaleiro, lembra? Não importa se eu não tenho mana… o tio Reynolds vai botar a gente pra treinar amanhã cedo e eu vou reclamar o dia todo… como sempre…
Louis riu — quase sem som — mas riu.
— Seria bom… — murmurou. — Talvez até… um milagre…
Glenn aproximou o rosto. Falava rápido, desesperado, como quem quer encher o tempo antes que ele se esgote.
— E vamos viajar também! Os três reinos! Você disse que queria conhecer todos. Como era mesmo? Vai… me lembra. — Ele apertou mais a mão dele. — Você sabe a capital…
Louis respirou fundo, como se buscasse as palavras em algum lugar longe demais.
— Va… Valeris…
— Isso. — Glenn sorriu pequeno, com lágrimas caindo. — Capital humana. E depois Ilvanor. Aquelas florestas e árvores gigantes que você dizia querer escalar… mesmo com medo de altura…
Ele soltou um riso engasgado.
E continuou falando.
Falava como se as palavras pudessem costurar Louis de volta.
— E Karak-Dûm… as montanhas que você dizia que a gente ia gritar de lá de cima… até todo mundo ouvir…
A voz dele embargou.
Não havia como esconder.
Não havia como mentir para o próprio coração:
Louis perdia a luta.
Ele soltou outra risada fraca, quase um sussurro preso entre a dor e o alívio.
— Sim, irmão… vamos… — disse com um sorriso débil. — Eu só… preciso dormir um pouco…
— Não. — Glenn aproximou-se mais, segurando o rosto dele. — Fica comigo. Acordado. Olha pra mim. Por favor…
Mas as pálpebras de Louis já pesavam. Ele piscava devagar… cada vez mais devagar… como se o mundo se afastasse dele.
— NÃO, PORRA! — Glenn gritou com a voz rasgada, o desespero finalmente rompendo toda resistência. — NÃO, LOUIS! POR FAVOR, NÃO!
Louis respirou fundo, arrastava o ar com esforço.
— Glenn… você vai ter que… cuidar deles… por mim…
Glenn balançou a cabeça como se pudesse negar a realidade com movimento.
— Louis, não… não faz isso comigo… não agora…
O garoto sorriu de novo — um sorriso frágil, mas verdadeiro.
— Eu não me arrependo… de nada. Eu… salvei… o amor da minha vida… — a voz falhava, mas ele insistia. — Por um momento… eu venci você… em alguma coisa…
O sorriso dele cresceu só o suficiente para mostrar um pouco do menino que ele sempre foi.
— Eu… venci…
Glenn deixou um soluço escapar. O corpo inteiro tremia.
Louis continuou, a voz já muito longe:
— Eu te amo, cara… obrigado… por me deixar… ser seu… irmão…
E então… o pescoço de Louis cedeu devagar. A respiração perdeu o compasso. Os olhos pararam de procurar.
— Não… — Glenn sussurrou primeiro.
Depois mais forte, com a voz rasgada pela dor:
— NÃO… NÃO, LOUIS… por favor… — ele tremia, enquanto segurava o corpo do primo como se pudesse impedir a morte de levá-lo. — Volta… por favor…
Uma lágrima caiu no rosto de Louis. Depois outra. E mais outra.
Até que a chuva se misturou às lágrimas — impossível dizer o que vinha do céu ou do coração de Glenn.
— NÃÃÃO! — o grito rasgou sua garganta como vidro, rouco, desesperado, quase selvagem.
As nuvens se acumulavam como muralhas no céu, e o vento trazia consigo o cheiro metálico da chuva que já começava a cair. Gotas frias deslizavam pelo rosto de Glenn, mas ele não piscava. Seus olhos estavam fixos no alto, onde o Palácio Celestial de Aldebaran flutuava, suspenso como uma miragem entre os trovões.
O palácio cintilava com uma luz que não vinha da lua — uma luz que parecia ignorar o mundo abaixo. Era belo. Intocado. Imaculado. E, acima de tudo, indiferente.
Glenn sentiu o peito apertar. A garganta seca, não pela falta de água, mas por algo mais profundo. Algo que queimava.
— Então é isso? — murmurou, sem esperar resposta.
O trovão respondeu por ele, um rugido distante que ecoou entre os vales. Glenn não se moveu. Apenas fechou os olhos por um instante, como se buscasse dentro de si uma explicação que o céu se recusava a dar.
"Se ele é um deus..."
"...então por que não fez nada?"
As imagens voltaram como lâminas: os gritos, o sangue, as mãos estendidas em vão. Crianças. Mães. Homens que só queriam voltar pra casa. Tudo engolido pelo silêncio de um céu que nunca respondeu.
Seus punhos se cerraram com tanta força que os nós dos dedos ficaram brancos. A raiva não era um grito — era um sussurro constante, um rio subterrâneo que ameaçava romper a terra.
— Um deus... — repetiu, com amargura. — Um deus deixaria isso acontecer?
O palácio lá em cima não se moveu. Nem uma janela se abriu. Nenhuma sombra se inclinou para ouvir.
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