A Herança dos Caídos Brasileira

Autor(a): Vannitas


Volume 1

Capítulo 4 — O Céu Que Se Fechou — Parte 2

O cheiro de ferro queimado já tomava o ar, denso e sufocante, misturado ao crepitar da madeira e ao gemido distante das estruturas cedendo. 

Glenn e Louis avançavam pelas ruas tomadas pelo fogo, mas o vilarejo que conheciam já não existia. As casas pareciam se contorcer sob o calor, e entre as labaredas, figuras em armaduras escuras se moviam com a precisão de predadores. As runas vermelhas gravadas em seus peitos pulsavam como corações expostos, vivas, doentes.

Um deles agarrou uma criança pelo braço — o movimento foi rápido, impessoal, quase preguiçoso — e a arremessou contra a parede de pedra. O impacto soou como o estalar de uma fruta madura, e o silêncio que veio depois foi pior do que qualquer grito. O sangue escorreu devagar pelas fendas, pintando o chão.

Glenn cambaleou, sentiu a bile subir à garganta.

— Pelo inferno… — sussurrou, mais para si do que pro primo.

Louis olhou ao redor, tenso, os punhos cerrados. O fogo refletia em seus olhos, e o calor fazia o suor escorrer pelo rosto.

— Eles estão matando todo mundo... sem motivo... — murmurou Glenn, a voz rouca, perdida no barulho das chamas.

— Não são bandidos comuns — respondeu Louis, firme, embora o tremor em sua voz o traísse.

Um dos invasores ergueu a cabeça, como se os tivesse ouvido. Por trás da máscara de osso rachada, os olhos brilharam em vermelho. Ele murmurou algo numa língua que parecia rasgar o ar, gutural e errada, e as veias do seu braço começaram a brilhar.

Runas escarlates acenderam-se sob a pele, e o chão respondeu.

Espinhos vermelhos, longos como lanças, explodiram das mãos do guerreiro e perfuraram a parede de uma casa próxima. A madeira se rompeu como papel molhado. Lá dentro, uma família tentou escapar pelos fundos — o pai empurrava a esposa e os filhos em direção à janela — mas do outro lado já havia outro homem de capuz negro, a palma estendida, o fogo girando no ar como uma serpente viva.

E então, em um sopro, a casa virou cinza.

O clarão engoliu tudo. Glenn ergueu o braço para proteger o rosto, o calor atravessava a pele. O reflexo do fogo dançou no verde dos olhos de Louis, que ofegava, perdido entre o medo e a fúria. 

Gritos se misturavam ao som de coisas desabando, ao estalar das chamas devorava tudo. Crianças, velhos, todos. O vilarejo gritava. E o céu, antes sereno, agora ardia em fúria.

As explosões vinham de todos os lados. Glenn queria correr. Queria lutar. Queria Ellie. Mas antes que pudesse reagir, Louis o agarrou pelos ombros. O olhar firme. Os dedos apertados demais.

— Procure nossos pais, Glenn — disse ele, com a voz tensa, quase sem fôlego.

Glenn piscou, sem entender.  

— O quê? Do que você tá falando? E a Ellie? — gritou, tentando atravessar o barulho.

Louis o empurrou um passo para trás.  

— Eu vou atrás dela. Tô com uma espada, lembra?

— Mas eu...

— GLENN! — o grito cortou o ar, seco, desesperado. — Eu vou proteger a Ellie! Você nunca foi bom com espada. Não tem mana. — As palavras pesaram mais que o calor ao redor. — O que você poderia fazer? Me diga!

Glenn parou. O corpo pulsava. O peito apertava. Quis responder, mas a voz não veio. As mãos cerradas tremiam. O maxilar travou.

Louis está certo.

Num mundo onde todos nasciam com mana, ele era o espaço vazio. O que não encaixava. O que só assistia.

O vento soprou quente. Cinzas cruzaram o ar. Gritos se espalharam. Louis respirava rápido. O suor escorria. O medo já tomava conta do rosto.

— Por favor, Glenn — disse mais baixo, quase num sussurro — ache nossos pais. Eu vou achar a Ellie. Vou tirar ela daqui.

Glenn engoliu em seco. O olhar vacilou.  

— Tá... — murmurou. — Mas toma cuidado, irmão.

Louis assentiu. Sorriu pequeno, breve.  

— Sempre tomo.

A espada brilhou sob a luz das chamas. Ele virou as costas. Correu em direção ao caos. Sumiu entre a fumaça, o fogo, os gritos.

Glenn ficou parado. O som dos passos do irmão se misturou ao rugido da destruição. Depois, o silêncio caiu como peso. O mundo pareceu longe. Distorcido. Irreal. Respirou fundo. O gosto amargo de ferro tomou a boca.

E então soube — sem precisar pensar, sem precisar nomear — o que era estar verdadeiramente sozinho.

— Certo… o tio Reynolds… a tia Vivian… — Glenn mal reconheceu a própria voz.

Virou-se e correu. As chamas se espalharam como um bicho vivo, devoraram as casas, as bandeiras, os sonhos. O chão jazia coberto de destroços, o ar, pesado de fumaça e gritos. Crianças corriam, velhos caíam, e o som de ferro contra carne se misturava ao estalo das tábuas em chamas. O céu — antes dourado de lanternas — agora era uma boca negra que cuspia fogo.

Ele desviou por uma rua lateral, com o coração disparado dentro do peito. A fumaça ardia nos olhos. A cada esquina, a sensação de que algo o seguia apertava mais — até que parou seco.

Um homem de túnica negra estava ali, de costas. A lâmina dele brilhou vermelha antes de descer num arco preciso. O som que veio depois foi grotesco, molhado, real. Glenn se jogou para trás, encostando-se na parede, ofegante, o coração descompassado.

O corpo tremia inteiro. O ar não vinha. As pernas pareciam não sustentar o peso. Tentou prender a respiração, mas ela escapava em soluços.

O grito de alguém ecoou.

Depois outro.

E outro.

Ele fechou os olhos. O barulho de ferro rasgando carne não saía da cabeça. 

“Por favor… tia Vivian… tio Reynolds… por favor…”

As palavras saíam baixas, trêmulas, mais um pedido do que uma prece.

Abriu os olhos. O gosto de ferrugem ainda preso na garganta.

“Eles tão bem… Devem estar. São fortes. Sabem o que fazer.”

A voz saiu baixa, só pra ele. Só pra manter os pés firmes.

Avançou pelos cantos, sob a viga caída. O telhado cedeu ao lado, e faíscas cruzaram o ar. O calor raspou o rosto, e o suor escorreu gelado pela pele.

As mãos, sujas. Tremiam.

“Se eu tivesse treinado mais… Se ao menos tivesse mana…”

O pensamento morreu ali.

Correu.

Gritos se misturavam ao som da própria respiração. Fogo, poeira, estilhaços. Tudo se movia rápido demais. Ou devagar demais. Difícil saber.

“Meus tios..”

“O ataque começou do outro lado da vila... eles devem ter ido pra floresta.”

As palavras ecoavam dentro da cabeça de Glenn enquanto ele corria. O ar queimava os pulmões, os pés afundavam em cinzas quentes. As ruas que conhecia desde criança agora eram um labirinto em chamas. Passou por uma carroça tombada, com os cavalos em pânico, e seguiu por um beco estreito. O som do fogo e dos gritos se misturava, indistinguível.

Quando virou a esquina, viu um homem de manto negro cortar alguém no meio da rua. O golpe foi limpo, rápido, e o corpo caiu antes que o sangue tocasse o chão. Glenn recuou instintivamente, encostando-se na parede de pedra. O coração batia tão alto que ele achou que seria ouvido. O ar pesava, e as pernas tremiam tanto que parecia que iam ceder.

“Ellie…” 

Pensou, e o nome soou como um pedido. Quis correr até ela, mas o corpo não se movia. Quis lutar, mas as mãos estavam vazias. O medo e a impotência se misturavam como uma maré amarga.

Ele engoliu seco, os olhos ardiam.

“Merda… o que eu podia fazer?”

O céu lá em cima continuava o mesmo — uma lua cheia, fria, indiferente ao que acontecia embaixo. Glenn olhou para ela, e por um segundo, o som da destruição pareceu distante.

Foi quando a lembrança veio.

A lua era a mesma. Mas o mundo estava quieto.

Ele estava sentado no telhado da velha escola, o lugar onde se escondia quando queria sumir. A madeira velha rangia sob o peso do vento, e o cheiro de pó e grama molhada pairava no ar. A vila, lá embaixo, dormia sob o manto prateado da noite.

O som das cigarras preenchia o silêncio quando uma voz suave chamou:

— Oi.

Ele não precisou se virar.

Sabia quem era só pelo jeito de andar, leve e distraído, como se o chão a obedecesse.

Ellie subia devagar os degraus de pedra, o vestido azul se prendia nas bordas do muro. O cabelo loiro refletia a luz da lua, e os olhos verdes pareciam guardar uma parte dela.

— Então... o que você queria conversar? — perguntou, parada ao lado dele.

Glenn deu um leve encolher de ombros.

— Nem sei. Só... queria falar com você, acho.

Ela sorriu, e o sorriso dela tinha um tipo de calma que o fazia esquecer de respirar.

Sentou-se ao lado dele, balançando as pernas sobre o telhado, como se o mundo fosse simples o bastante para caber naquele gesto.

— É bonito aqui em cima. — disse ela, enquanto olhava para o horizonte. — Dá pra ver tudo.

— É por isso que venho. — respondeu. — Aqui, parece que a vila é... menor.

— Ou você é que fica maior. — ela brincou.

Glenn riu de leve e ficou em silêncio por um instante, olhando o brilho prateado da lua. Depois disse, com a voz baixa, quase como se falasse pra si mesmo:

— Quero aprender a lutar com espadas. E despertar minha mana. Quando isso acontecer... eu vou embora. Pra capital.

As pernas de Ellie pararam de balançar.

Ela virou o rosto na direção dele, os lábios entreabertos, mas sem emitir som. Em seguida, desviou o olhar. A sobrancelha se contraiu — um gesto sutil, quase imperceptível. Fitou o horizonte, onde as luzes das casas piscavam lentamente, como se hesitassem em permanecer acesas.

— Eu devia ter imaginado. — murmurou. — Todos os garotos estão fazendo isso ultimamente.

Glenn a observava em silêncio. O vento cruzou o espaço entre os dois e levantou uma mecha do cabelo dela, que dançou no ar por um instante antes de cair de volta sobre o ombro.

— Mas eu não sou como eles. — disse. — Não tô indo só atrás de trabalho.

Ellie virou de leve a cabeça, o olhar atento.

— E o que você vai fazer, então?

Glenn respirou fundo, as mãos apoiadas no telhado.

— Vou me tornar um cavaleiro mágico.

Ela arqueou as sobrancelhas, olhando pro céu.

— Hm... cavaleiro mágico? — repetiu, com um tom que misturava ironia e encanto. — Não é meio difícil se tornar um?

— É. — ele respondeu com um sorriso de lado. — Por isso, quando eu for pra lá, talvez demore pra voltar.

Ellie ficou quieta por um instante. O silêncio entre eles foi cortado apenas pelo som das cigarras. Então, com um meio sorriso, ela perguntou:

— Será que vão cantar músicas sobre você nas tavernas? Ou colocar seu rosto nos jornais?

Glenn soltou uma risada curta.

— Quem sabe. Vou me esforçar pra isso.

Ellie voltou a balançar as pernas, o vestido azul roçando no telhado.

— Então vou esperar pra ouvir uma canção sobre o grande cavaleiro Glenn. — disse ela, sorrindo.

Glenn desviou o olhar, envergonhado, mas sorria — aquele sorriso meio torto, de quem não sabe o que fazer com as próprias palavras.

Ellie virou o rosto para ele, e a luz da lua traçou caminhos suaves sobre sua expressão.

— Então... — disse, quase num sussurro. — Me promete uma coisa.

— Uma coisa? — ele perguntou, curioso.

Ela respirou fundo, os olhos fixos no horizonte.

— Daqui a um tempo, quando você for um cavaleiro famoso... e eu estiver em apuros... — fez uma pausa, e então virou o olhar pra ele.

Os olhos verdes dela brilharam. Um sorriso leve, quase infantil, surgiu em seus lábios.

— Promete que vai vir me salvar?

— Hã? — ele piscou, surpreso.

As pernas dela voltaram a balançar.

— É isso que os cavaleiros fazem, não é? — disse, rindo baixinho. — Eles salvam pessoas.

— Ellie... — Glenn começou, meio sem saber o que dizer.

Ela se inclinou um pouco pra frente, o rosto mais perto.

— Por favor? Só uma vez. Me promete.

Ele hesitou. A lua refletia no olhar dela, e por um instante, parecia que o mundo inteiro esperava pela resposta.

— Tá bom... — disse, com a voz baixa, firme. — Prometo.

Fez uma pausa, e completou:

— Quando você precisar, eu vou estar lá. Não importa o que aconteça. Eu... me tornarei alguém capaz de te proteger.

Ellie sorriu — um sorriso doce, quase distraído. Olhou para o céu, e Glenn a acompanhou. A lua parecia maior naquela noite, mais viva, como se tivesse escutado algo que não foi dito em voz alta.

Sob aquele céu, o tempo hesitou. Um instante simples. E eterno.

Agora, Glenn também olhava para a lua. Mas ela não era a mesma. Havia algo nela — fria, distante — que não respondia mais.

Ele suspirou, os olhos pesados, e fechou o punho. As palavras do dia anterior ainda pairavam, como poeira que não assenta: “Nunca me vi com uma espada na mão.”

E então, veio o olhar dela. Aquele momento em que Ellie ficou quieta, o riso apagando aos poucos, como se algo dentro dela tivesse se recolhido.

“Eu tinha me esquecido disso... dessa promessa.”

O fogo, o caos, o medo — tudo voltou.  

E o peso da promessa não caiu sobre ele.  

Ele o reconheceu. Como quem reencontra algo que nunca deixou de estar ali.

A parede fria pressionava as costas dele. O corpo tremia, o fogo rugia lá fora, e o ar trazia o cheiro metálico de ferro queimado. Glenn permaneceu imóvel, com o coração batendo alto demais, como se o peito fosse pequeno demais para conter aquilo.

“E no fim…”

O pensamento surgiu lento, amargo.

“…não mudou nada.”

Os olhos baixaram para o chão coberto de cinza.

“Não aprendi a usar espadas. Não despertei mana. Nada.”

Um riso escapou — curto, sem graça, quase um soluço.

— Eu… não sou nada.

O sorriso se desfez depressa. Os punhos se fecharam, o olhar endureceu. Virou-se de uma vez, o ar queimava na garganta. Começou a correr. A fumaça invadia os olhos, os pulmões exigiam ar, mas só uma coisa ocupava a mente.

"Ellie."

As pernas se moviam por conta própria.

— O que eu tinha na cabeça? — murmurou, sem fôlego. — Eu não posso deixá-la. Eu não posso deixar Louis fazer tudo…

O som dos gritos se afastava, dissolvido pela urgência que o arrastava. Cada passo golpeava o chão como um protesto contra o próprio medo.

“Mesmo sem espada… mesmo sem mana… mesmo que eu morra.”

O pensamento ardeu.

“Ela não vai estar sozinha.”

E então — o impacto.

Algo duro, frio, implacável. Glenn foi lançado de costas, o ar escapou dos pulmões num estalo surdo. O corpo caiu pesado, o chão girou por um segundo.

Quando ergueu os olhos, o mundo pareceu suspenso.

Diante dele, uma silhueta negra. Alta. O metal da armadura refletia as chamas, e cada exalação do cavaleiro soava como um trovão abafado dentro do elmo.

Glenn tentou se mover. Nada. O corpo não respondia.

O cavaleiro ergueu a espada.

O som do aço rasgou o ar — pesado, inevitável. Glenn viu o reflexo do fogo deslizar pela lâmina: uma centelha dourada cruzou o olhar de quem já sabia que não havia mais nada a fazer.  

O tempo perdeu o compasso.  

O calor do incêndio congelou.  

O coração batia alto demais, alto o bastante para se confundir com o próprio som da morte ao se aproximar.

"Então é assim..."

Pensou, com uma calma que não lhe pertencia.

"Assim que acaba. Sem feitos. Sem glória. Só eu, e o medo..."

O mundo parou. Literalmente. O fogo congelou em labaredas imóveis. A cinza suspensa no ar cintilava como poeira dourada.  

E no meio do nada... algo caiu.

Uma pena. Branca. Serena. Girava devagar — a única coisa viva entre o silêncio e o fim.

Ela tocou o chão ao lado de Glenn, e o som lembrou algo se quebrando — distante, profundo, como se o próprio ar rachasse.  

O olhar dele se ergueu.

O fio da espada partiu-se em silêncio. Desfez-se no ar, em mil fragmentos de luz.  

Por um instante, o cavaleiro e Glenn permaneceram suspensos no mesmo momento que já não existia.

Então o tempo recomeçou.

O vento explodiu de volta, trouxe o som das chamas, dos gritos, da vida correndo outra vez — e o corpo do cavaleiro se dobrou. Um lampejo cortou o ar, e ele se despedaçou como vidro sob um martelo invisível.  

A carne e o metal se fundiram em ruído.  

O sangue quente respingou no rosto de Glenn.

Ele piscou, atônito. O ar escapava do peito.

Atrás do corpo que ruía, ela surgiu.

Primeiro um vulto — pálido, recortado pela luz avermelhada do fogo. Depois, uma figura. Cabelos brancos, longos, moviam-se como fios de névoa. Pele tão clara que refletia o incêndio como prata líquida. E os olhos prateados. Fixos. Imóveis. Como se observassem tudo, mas não revelassem nada.

Glenn recuou de joelhos, tropeçou em um corpo que não havia notado.  

— Q-quem... quem é você? — gaguejou, o peito arfava. — O que... o que quer...?

A garota o observava, imóvel, o fogo dançava à sua volta como se temesse tocá-la.  

Então deu um passo.

Quando falou, a voz soou como um sussurro que não atravessava o ar, mas o pensamento.  

Um som antigo demais para ter nascido ali.

— Ainda não é a hora.

A frase ecoou como um presságio, uma sentença, uma promessa.  

E o corpo do cavaleiro atrás dela se dissolveu em fragmentos escuros, sumiu como poeira tragada pelo vento.

Glenn, imóvel, apenas a encarou.

"É como se... o mundo inteiro, por um breve instante, se inclinasse em direção a ela."

A garota deu mais um passo.

O mundo cedeu.

O som das chamas morreu, o vento se retraiu, até as fagulhas suspensas congelaram no ar como se o tempo tivesse esquecido de se mover. Glenn sentiu o ar rarear, e de repente, era como se respirasse dentro de um sonho.

Ela o olhava — e quando falou, a voz parecia vir de todos os lugares e de lugar nenhum. Um eco suave, mas impossível de ignorar.

— A vila se desfaz sob o peso das chamas... — sussurrou, e cada palavra parecia dobrar o espaço ao redor. — A caverna o reclama como parte do abismo... Sua existência se fragmenta entre sombras vivas... A floresta o enfeitiça com verdades que não se dizem...

A cada frase, algo em volta de Glenn parecia ruir um pouco mais — o fogo se dissolvia em cinzas paradas, o céu se distorcia como um espelho quebrado.

Ela se inclinou, se agachando diante dele. O cheiro do ar mudou — frio, metálico, antigo.

Os olhos prateados dela refletiam o rosto dele com perfeição.

— Será que você está pronto?... — perguntou, a voz tão baixa que mais parecia um pensamento que o atravessava.

Glenn tentou responder, mas a garganta estava seca.

— Quem... é você...? — murmurou, ofegante. — Por que... me salvou...?

Ela sorriu. Não de alegria — mas de algo que lembrava ternura.

— Tão jovem... — disse, enquanto tocava o rosto dele com a ponta dos dedos. — Tão belo.

O toque era frio, quase irreal, e ainda assim... familiar.

— Você ainda precisa acordar, Glenn. — sussurrou. — Você não está pronto.

O olhar de Glenn se turvou. O peso o atingiu todo de uma vez — como se o corpo lembrasse de repente que estava vivo, ferido, exausto.

Os olhos ardiam, piscavam pesados.

— Eu... — ele tentou dizer, a voz falhando. — Eu tenho... que salvar... Ellie... Louis... meus tios... eu não posso...

Mas as palavras se quebraram antes de saírem por completo.

O mundo girou.

O fogo, o frio, a dor — tudo se misturou em um borrão.

E antes que a escuridão o tomasse, viu o contorno dela ainda ali, imóvel, serena.

O sorriso dela era doce. Quase humano.

— Eu te amo, Glenn. — disse, num sussurro.

A voz ecoou dentro dele mesmo depois que tudo se apagou.

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