Volume 1

Capítulo 5: Lazer

 

Os raios de Sol ultrapassaram a fina camada da cortina, iluminando o quarto abafado. Não fazia muito tempo desde que a noite virou dia, em torno de quase duas horas. Mas, ainda assim, era um horário nobre, principalmente para uma certa garota que adormecia naquele quarto.

A iluminação repentina fez com que a garota adormecida fizesse uma careta. Levou as suas mãos até os olhos e os coçou levemente, assim despertando. Ela se levantou e sentou na beirada da cama. Um bocejo preguiçoso quebrou o silêncio do cômodo.

— Droga, eu esqueci de colocar a máscara para dormir… — reclamou Mio, enquanto coçava a barriga cheinha — Engraçado, eu sonhei que estava sendo atacada por uma criatura estranha e aí veio um cara desconhecido me salvar. E no final do dia tive que arrastar esse mesmo cara porque ele tava bêbado.

— Ué? Mas, foi isso mesmo que aconteceu.

Mio lentamente virou seu rosto para o dono da voz. E lá estava um homem com expressão rabugenta sentado numa cadeira. Kawano, constrangida, só pode soltar uma risada sem graça. Ela pegou a coberta e se cobriu até a cabeça.

— Acho que estou sonhando, vou voltar a dormir.

— Ei, vai me ignorar mesmo?! — Elevou a voz, tentando chamar a atenção da garota. Sem delicadeza nenhuma, Zethnniyr puxou a coberta e a jogou para longe. — Você vai tratar o seu mestre dessa forma no primeiro dia?!

— É muita coisa pra assimilar! Me deixe dormir que depois eu penso nisso! Além disso, são 10:30 da manhã!

— Não vou deixar mesmo!

Zethnniyr não só tirou a coberta de Mio, mas também agarrou o rosto da menor e apertou as bochechas dela, o que a fez grunhir. Mas, a garota não iria deixar que ele fizesse o que bem entendesse. Mio levou as mãos até os chifres do maou, puxando forte.

— Vamos, você precisa levantar! Se não, vou puxar seu cabelo também!

— Seu filho da… — Mio balançou a cabeça, querendo tirar as mãos de Zethnniyr, e assim que obteve uma chance, não perdeu tempo e mordeu a mão esquerda do homem.

— Maldita!

— Hehe, quem mandou ficar me perturbando? — Sorriu ao ver o maou recuar e esfregar a mão mordida. — Você tava acordado faz muito tempo? 

— Acredito que uma hora e meia. 

— Ficou fazendo o que? Me encarando esse tempo todo? — perguntou em um tom debochado, ela até mesmo abraçou o próprio corpo fingindo se proteger.

— Heh, eu estava explorando algumas coisas no seu quarto.

— Você o que?!

Naquele momento, Mio finalmente havia despertado por completo. Ela se levantou da cama mais rápido do que nunca e deu uma boa olhada no quarto. Diferente do resto do apartamento, sua toca era o lugar mais arrumado disparado, pois era ali que ficavam todas as coisas que considerava importantes, como seus preciosos mangás, figures e jogos.

E para a sua infelicidade, o quarto estava uma bagunça. Todo o seu suor e esforço em deixar tudo mais bonitinho o possível foi por água abaixo.

— Eu achei uns livros bem interessantes, incrivelmente a escrita é a mesma do que a do meu mundo, então não tive problemas quanto a isso. — Zethnniyr começou, não percebendo a expressão incrédula de Mio. — É “mangá” que vocês chamam, certo?

— Sim…

— Tem vários desses mangás com romance entre duas garotas. Você é aquilo que eu penso ser…? — Após fazer esse comentário, Mio estremeceu. Isso realmente tocou fundo nela.

— B-Bem…

— Ah, e eu achei esse artefato interessante! 

O maou levantou da cadeira e foi em direção a escrivaninha. Antes de Mio acordar, Zethnniyr separou as coisas que mais lhe chamavam atenção e as colocou na mesa de madeira. Dentre os mangás, jogos e pacotes de comida, havia uma action figure bastante peculiar.

— Olha aqui, essa boneca é diferente dos que encontrei, tem como tirar a roupa! Que tipo de magia é essa? — Zethnniyr, como forma de demonstração, tirou as vestimentas da boneca. Uma expressão admirada se formou no rosto dele.

Kawano estava à beira do colapso. Primeiro que o maou bagunçou todo o quarto da garota, segundo que ele leu os GL’s — ela espera do fundo do coração que ele não tenha lido certos mangás — e terceiro que Zethnniyr descobriu seu maior segredo, um que nem mesmo Kintarou sabia.Seu rosto queimava, não só irritação, mas também vergonha. 

Zethnniyr em menos de algumas horas morando com ela já fez Mio se arrepender de ter aceitado aquele contrato. Mas, não tinha mais volta.

instintivamente e intencionalmente, Mio deu um tapa bem bonito na cara do maou, que fez um estalo que podia ser ouvido da rua, assustando as pessoas que passavam por perto.


 

— Finalmente terminamos de arrumar tudo! Agora os meus preciosos estão arrumadinhos.

— Por que você me forçou a fazer isso? — disse zethnniyr com uma expressão aborrecida, ele se jogou no chão e cruzou os braços.

— Foi você quem bagunçou tudo!!

Depois do pequeno incidente, ambos tiveram uma pequena discussão e, no final, Mio conseguiu fazer com que o maou ajudasse na organização do quarto. Eles levaram um tempinho para arrumar tudo — Zethnniyr fez um furacão lá dentro —, tanto que tiveram que dar uma pausa para almoçarem. Mas, tudo se resolveu em menos de duas horas.

Os dois se encontravam na sala, e sem qualquer aviso prévio, uma cena raríssima aconteceu no cômodo, algo que os maiores guerreiros de Ainzterbegger, o antigo mundo do Rei dos Demônios, imaginariam que fosse possível. Lá estava Zethnniyr ajoelhado com a cabeça baixa, enquanto uma mera humana estava de pé na frente dele.

— Um pequeno aviso: posso até ser a sua serva, mas isso não quer dizer que agirei como uma. — disse em um tom mais rígido, algo raro vindo de uma jovem adulta gentil e tímida como Kawano.

— Eu sei disso. No contrato não tem algo dizendo que você deve me obedecer. “Mestre” e “servo” é só um título como qualquer outro. Você apenas vai me fornecer magia e me ensinar sobre este mundo, além de me deixar morar com você — explicou Zethnniyr, sem qualquer expressão ou emoção.

— Sobre essa última parte, — disse dando uma pausa e respirando fundo na sequência — você não pode sair mexendo nas coisas! A partir de hoje, minha casa terá regras.

— Regras?

— Primeira regra: você não pode mexer nas coisas que desconhece. Você pode quebrar alguma coisa ou até mesmo colocar fogo na casa, hospital é caro, sabia? Meus pais ficariam endividados… — Mio levou as mãos ao olho, fingindo estar chorando. Até porque, Mio estava desempregada.

— Quanto ao fogo, eu posso controlá-lo como bem entender, essa é a minha especialidade mágica.

— Não vou precisar me preocupar com incêndios pelo visto… — Mio suspirou em seguida, aliviada com uma coisa a menos. Então, deu continuidade: — A segunda regra é que já que está morando comigo, nada mais justo do que me ajudar na faxina. Não vou te deixar aí de bobeira.

— Nem neste mundo eu posso relaxar. — O maou fez um “ahh”, amuado com a ideia. — Mas, é o mínimo que posso fazer por  me deixar ficar aqui. Então, te ajudarei.

Mio não conseguiu deixar de sorrir com o comentário do demônio. Zethnniyr poderia muito bem se recusar a contribuir, poderia simplesmente romper o contrato e procurar uma serva melhor. Ele é um maou de outro mundo! Apesar disso, ele não o fez. 

Os motivos para Zethnniyr aceitar tão casualmente sua situação era um verdadeiro mistério, mas talvez fosse esse ar misterioso dele que instigava Mio a querer conhecê-lo cada vez mais.

— Fico feliz em saber disso. — Mio não conseguia parar de sorrir, mas quando percebeu que estava contente demais, puxou suas bochechas levemente a fim de conter o sorriso. 

— Tem mais alguma regra que eu devo seguir?

— B-Bom… Não é bem uma regra, mas eu ficaria feliz se você pudesse cumprir…

— E o que seria?

— A terceira regra é opcional, mas seria legal se você pudesse me acompanhar nas minhas atividades otaku… — disse com uma expressão envergonhada enquanto esfregava um dedo indicador no outro repetidamente.

— Atividades otaku?

— Esse é o meu principal lazer. Ler mangás, assistir animes participar de comiket… Tudo isso são atividades que os otakus geralmente fazem. 

— Eu não me importo de te acompanhar. Inclusive, os mangás são livros muito interessantes, tenho curiosidade em saber mais sobre esse mundo! — Zethnniyr parecia uma criança dizendo aquilo de tão animado que estava.

— Sério? Muito obrigada mesmo! Você não sabe o quão feliz eu estou agora! — Mio não conseguia mais conter sua felicidade e começou a dar pulinhos, sorrindo que nem uma idiota. Zethnniyr apenas a olhava curioso. — Você é a segunda pessoa que se ofereceu para ficar comigo nesses momentos, Kintarou nem sempre pode acompanhar minhas idiotices…

Mio Kawano era uma pessoa com um círculo social minúsculo para se dizer o mínimo. Desde sua infância, ela encontrava dificuldades em socializar por conta da sua timidez e seus gostos. Kintarou foi o único que ficou ao seu lado até a fase adulta e ele continuou sendo seu único amigo.

Estaria mentindo se dissesse que não se sentia solitária. Como a solidão fazia parte do seu dia a dia, ela tentou preencher isso conversando com pessoas online e acabou fazendo alguns amigos virtuais. Ainda sim, Mio esperava o dia em que pudesse ter mais amigos fora da internet.

De repente, um alarme foi ouvido por Mio e Zethnniyr, interrompendo a conversa. A garota de maria-chiquinha foi até a fonte — que se tratava do próprio celular — e o desligou em seguida. Kawano se afastou do maou e andou até a televisão, pegando o controle e ligando. Havia chegado o momento.

— Você disse que iria ficar comigo, certo? Já vai começar um anime da temporada que estou assistindo pela TV. — Se jogou no sofá e colocou os pés sobre a mesa, passando os canais. — Senta aqui ao meu lado, Zeth!

— Zeth? — O maou se aproximou da jovem moça e se sentou ao lado dela. Além de estar surpreso com o apelido, estava também pelo fato de nunca ter visto uma “caixa mágica” como aquela antes.

— Esse é o seu novo apelido. Te chamar de Zethnniyr cansa. Ficou bonitinho, né?

— Não é ruim…

— Olha, já começou! Presta atenção!

Kawano se aconchegou no sofá, animada com a exibição do novo episódio do anime. Quando começou a chamada opening, Mio aproveitou para explicar — de maneira bem resumida — como uma televisão funcionava. Explicou sobre os canais, os programas e sobre os botões do controle.

Também deu uma resumida sobre o que o anime se tratava. Basicamente, um cara fracassado é reencarnado num mundo de fantasia e ele passa por diversas aventuras com seus amigos, enquanto vai crescendo fisicamente e mentalmente. No episódio do dia, o protagonista estava em um reino que era excluído pela sociedade por se assemelharem a bestas.

A expressão no rosto de Mio transbordava alegria, ela esperou a semana toda para ver o episódio novo. Do outro lado, Zethnniyr estava com uma expressão difícil, como se estivesse se lembrando de algo ruim. Percebendo isso, Mio decide quebrar o silêncio:

— Aconteceu alguma coisa? Tá com dor de barriga?

— Essa situação… é extremamente parecida com o que meu mundo vivia. — respondeu, seu olhar emitia pura melancolia. — Meu reino, minha raça e semelhantes foram isolados por pura arrogância de nobres. Se achavam “abençoados”, achavam que poderiam imitar deus.

— Zeth, do que está…

Antes que pudesse terminar a frase, a campainha do apartamento tocou. Mio suou frio, quem poderia ser? Esse era o pior momento para alguém aparecer, pois Zethnniyr estava lá e explicar aquela situação daria trabalho. Kawano tomou um pouco de coragem, engolindo seu medo, e foi até a porta, destrancando-a. Ela não a abriu totalmente, pois o visitante só conseguia ver metade do corpo da garota. E para seu azar, era aquele visitante.

— Mio! Você está bem?! O que aconteceu naquele dia? Por que não foi para o hospital, a amiga de Haruka disse que você se recusou a ir!

— Kintarou… E-Eu…

— Você é o humano que não conseguiu proteger a minha serva, não é? — Surgindo de dentro do apartamento, Zethnniyr apareceu com uma expressão irritada.

— S-Serva? Você com homem em casa? O que isso significa, Mio?!

A garota de maria-chiquinha congelou. Como explicaria a situação? Como iria dizer para Kintarou que Zethnniyr veio de outro mundo? Que ele era o Rei dos Demônios? Que ele foi invocado para este mundo? Mio só conseguia pensar em uma coisa…

“Fudeu!”

 



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