Volume 1
Capítulo 1: Contrato, Parte 1
“Droga, estou atrasada!”, pensou uma certa garota enquanto copiava o conteúdo em seu caderno. Tentava ser a mais rápida possível, mesmo que isso significasse deixar as anotações uma bagunça.
Havia poucos alunos na sala, pois o horário das aulas tinha passado há alguns minutos. Aqueles que estavam ali, olhavam a pobre garota, segurando o riso. Ela sabia que estava sendo alvo de risadas, mas além da vergonha que sentia, o sentimento de culpa por fazer seu melhor amigo esperar era avassalador.
— Ei, Mio, você não pode ir um pouco mais rápido? Ou quer passar a noite aqui na faculdade?
— Ahhh, não me apressa, Kintarou!
Não demorou muito para que ambos fossem os únicos presentes na sala, até o zelador passou para ver se eles não queriam um pouco de café. Kintarou estava acostumado a passar por isso, mas, ainda assim, não deixava de ser vergonhoso.
Depois de se passarem 5 minutos, Mio finalmente fechou o caderno e guardou seu material, para o alívio de Kintarou. E assim, ambos saíram da instituição.
O céu estava num tom escuro, com algumas estrelas e sem nenhuma nuvem. Era um pouco mais das 19 horas e havia muitas pessoas transitando pelas ruas, uns saindo do trabalho e outros indo começar o expediente. Mio e Kintarou andavam rumo ao ponto de ônibus, porém, nenhuma palavra foi dita desde que saíram da faculdade. Querendo descontrair, o homem de cabelos castanho escuro comentou:
— Não é hoje que vai começar uma raid daquele jogo que você é viciada? — Olhou de lado para a menor, tentando ser o mais natural possível.
— Sim...
— Parece que vai ser difícil. Apesar de que, você já tem vários personagens fortes e upados, então isso não deve ser nada pra alguém com uma conta como a sua.
— Acho que sim...
— Tá ansiosa?
— Uhum.
— Por que você fica triste com coisas pequenas?! — perguntou num tom um pouco mais alto, algo raro vindo de Kintarou.
— Me desculpa, só fiquei pensando no pessoal que estava me zoando. E também te zoaram...
— Ah, era isso? Estava distraído olhando você escrever igual uma tartaruga.
Kintarou não conseguiu evitar e riu baixinho, aquilo fez o rosto de Mio arder. Era comum a garota demorar um pouco mais que os outros quando escrevia, já que gostava de ver seu caderno organizado.
— Sinto muito por te deixar esperando, fui irresponsável... — disse com a cabeça baixa.
— Tudo bem, somos amigos e eu vou te esperar. Então, não precisa pedir desculpas.
— É sério?! Você realmente é o meu melhor amigo, Kinta...
— Não preciso das suas desculpas, mas você pode me retribuir. — Kintarou deu um sorriso um tanto maligno.
— Lá vem.
— Já que eu paguei a nossa última noite de karaokê, na próxima vez você poderia pagar. O que acha?
Mio parou de andar, deixando o jovem adulto andando na sua frente. Notando que sua amiga não estava mais do seu lado, Kintarou se virou e levantou uma sobrancelha, confuso pela ação dela. Ele sentiu um “estalo” em sua mente, percebendo que o olhar da garota já dizia tudo.
— Você tá dura, né?
— Ahaha... Bom, é final de mês, sabe? Já gastei minhas economias com coisas necessárias — falou evitando ao máximo encarar seu amigo.
— E o que mais?
— Eu comprei algumas skins...
— Por que não estou surpreso? Logo Mio Kawano, a garota mais otaku que já conheci. — Levou uma de suas mãos até a nuca e a coçou levemente. — Você deveria pensar mais em como gastar o seu dinheiro!
— Desculpa, não pude evitar! Além disso, tava na promoção! — retrucou com o rosto vermelho. — Além disso, você não pode falar de mim, já que gasta com novels mais do que o suficiente!
— Do que você tá falando?!
— Eu não sei!
A essa altura, quem passava por ambos os jovens pensavam que estavam tendo uma briga de casal, ou ainda, que estavam fazendo birra no meio da rua. Não era nada raro vê-los brigando ou defendendo seus interesses, mas como se conheciam desde a infância, não deixavam que isso acabasse com a amizade.
Eles passaram um bom tempo discutindo e quando se deram conta, pararam só quando chegaram no ponto de ônibus. Mio pegou o celular e, vendo a hora, percebeu que estava cada vez mais perto de começar o evento.
— Você está mesmo ansiosa pra essa raid, hein.
— É claro! Preciso me apressar logo e farmar antes que acabe! — Mio fez uma dancinha, dando pulinhos. Kintarou apenas suspirou e balançou a cabeça negativamente.
— Nem parece que tem 23 anos... Quem te olha de longe pensa que é uma garota responsável, mas na verdade, é só uma otaku desastrada.
— E-Ei! Eu não sou assim! Por que acha isso?!
— Não acho, tenho certeza!
Kawano olhou para Kintarou com uma expressão envergonhada, as bochechas com uma tonalidade rosada. Ela não podia retrucar, porque era verdade. De fato, Mio Kawano desde sua adolescência era viciada em jogos e animes. Não largou de ser otaku por um segundo.
Por pura coincidência, os ônibus dos dois chegaram quase ao mesmo tempo. A pequena discussão foi interrompida e ambos se preparavam para subir. Quando Kintarou estava na porta do veículo, virou a cabeça e encarou Mio.
— A gente conversa mais tarde, okay? Vá com cuidado para casa e qualquer coisa me liga. — Deu um pequeno, mas singelo, sorriso para a amiga. — E boa sorte na raid, vai precisar.
— Obrigada, Kintarou! E desculpa por mais cedo, hehehe. — Coçou a cabeça nervosamente. — Sorte? Quem vai precisar serão meus adversários!
— Convencida...
Se olharam uma última vez e cada um seguiu o seu caminho. Mio já se encontrava sentada perto da janela, encarando o vasto céu azul escuro. Desde que se deu por gente, adorava olhar para o céu à noite, tinha uma beleza inexplicável. Muitas vezes passou pela cabeça estudar astronomia, mas deixou essa ideia de lado para perseguir seu sonho.
E sem qualquer aviso, um forte feixe de luz cruzou o céu estrelado, como se fosse uma estrela cadente, mas com um brilho diferente. Aquilo deixou Mio fascinada e, ao mesmo tempo, intrigada. Não havia visto nenhuma notícia de que teria alguma chuva de meteoros ou algo do tipo. Ela deu um largo sorriso por ter tido a oportunidade de ver tal fenômeno.
“Desejo que eu derrote o maou na raid hoje...”, pensou enquanto encarava aquele show de luzes.
Mio se encontrava subindo as escadas do prédio onde residia. Fazia dois anos que morava ali e foram seus pais quem deram a ideia, pois sua antiga casa ficava em outra província. Então, decidiram alugar um apartamento que ficasse perto da faculdade. Na época, Kawano passou por dificuldades, seus pais sempre fizeram tudo para ela. Não foi fácil morar sozinha – e continuava sendo assim.
Tirando a chave da mochila e abrindo a porta, Mio adentrou no pequeno, mas aconchegante, apartamento. Saindo do corredor, acendeu as luzes e se deparou com uma sala toda bagunçada, como de costume. Copos espalhados pela mesa de madeira, alguns mangás largados no sofá, pacotes de biscoito... “Tenho que arrumar isso amanhã”, pensou, rindo da própria desgraça.
Kawano rapidamente entrou em seu quarto e, diferente da sala, o cômodo estava arrumado. Todas as action figures na prateleira, os mangás enfileirados em ordem crescente, posters colados devidamente, dentre outros. Estava tudo muito bem organizado.
Sem perder tempo, Mio ligou seu notebook e já clicou no seu mmorpg favorito. Estava nítido a empolgação e ansiedade da garota de maria-chiquinha. Finalmente chegou o momento mais esperado do dia.
— Notebook carregado, ok! Internet estável, ok! Jogo aberto, ok! Servidor aberto, ok! — falou consigo mesma enquanto checava todos os “componentes” necessários. — Nada irá me impedir agora!!
— Hm… Será que dá pra falar mais baixo? Estou tentando dormir...
— Uahhhh!!
Mio caiu de costas e se afastou o máximo que pode até encostar na parede. O espanto não era para menos. Um homem adulto com roupas esfarrapadas estava deitado na cama, rodeado por almofadas e plushes.
Seu corpo tremia e não conseguia falar nada, palavras não saíam de sua boca. Como que um cara conseguiu entrar em seu quarto? Mio sempre se certificava de deixar a porta trancada, mesmo quando ia na loja de conveniência ali na esquina. E ele não poderia ter entrado pela janela, já que Mio morava no segundo andar. Então, como?
O jovem adulto continuava dormindo tranquilamente, nem ao menos se mexeu quando a garota gritou. Suas roupas estavam em péssimas condições, com furos e algumas partes rasgadas, parecia com aquelas vestimentas de RPG. Possuía chifres curvados e uma longa cauda, em seu rosto, tinha uma pequena listra vermelha em cada canto inferior de seu olho. Seu físico estava bem definido.
A garota não parava de o encarar, tentando entender a situação e o motivo do homem estar tão ferrado assim. “Esse cara deve fazer parte da comunidade de cosplay, por isso está vestido dessa maneira…”, pensou ainda olhando o suspeito. “Mas, isso não explica o motivo dele ter entrado na minha casa sem minha permissão!!”
Engoliu o seco, suando frio e pensando no que poderia fazer. Mio tinha três alternativas: acordaria o homem e perguntaria o porquê de ele estar ali, ou se equiparia com alguns objetos resistentes e bateria na cabeça do sujeito, ou poderia ligar para a polícia.
Acordar e perguntar era a mais pacífica de todas as opções, ninguém se machucaria, porém, o homem poderia atacá-la sem piedade. A segunda era uma boa, pois se acertasse a cabeça, com certeza ele desmaiaria e daria tempo de chamar alguém para ajudá-la, o problema era no caso de não dar certo… Ligar para a polícia? Eles demorariam para chegar.
— Não tenho escolha. Vou ter que fazer isso!
Mio levantou e, silenciosamente, abriu o guarda-roupa, pegou algumas coisas como almofadas, um taco de beisebol, corda e um capacete. Equipou-se, amarrou a corda junto das almofadas na barriga, colocou o capacete e empunhou o taco com a mão esquerda e o celular na direita.
Aproximou-se e cutucou o sujeito com o taco levemente, ele reagiu rangendo os dentes. Alguns minutos cutucando o homem, sua consciência, enfim, despertou.
— Um, dois e três!!
Em um movimento rápido, usou toda a sua força para acertá-lo, porém, Mio acertou em cheio a parede. Perplexa e assustada, deu alguns passos para trás, tomando um pouco de distância. Sim, o homem havia desviado do ataque surpresa de Mio. Foi tão rápido que ela nem o viu desviar.
Ele coçou a cabeça, se espreguiçou, deu um bocejo alto e olhou para a garota com uma cara de tédio. Mio só tomava mais e mais distância até encostar na parede.
— Isso poderia ter me acertado. Ainda bem que tenho bons reflexos — falou dando algumas risadas. Deu uma boa olhada no local e então disse: — Onde estou? Que lugar é esse?
— Como...? O que você quer? Eu não tenho nada para te oferecer! — Mio estava tremendo por todo o corpo e suando, fazendo o óculos que usava ficar um pouco nublado. — Eu vou chamar a polícia!
— “Polícia”? O que é isso?
— Eeeeeh?!
— Você parece estar cansada. Ah, e por que tentou me atacar? Não lhe fiz mal algum. — Colocou as mãos na cintura, olhou para a derrota de Mio e suspirou. — Você nunca irá me acertar com um ataque tão mal pensado como esse.
— É tudo culpa sua, idiota!! — gritou, balançando os braços feito uma garotinha. O sujeito se assustou e recuou, confuso. Não satisfeita, decidiu gritar mais uma vez: — Se você não tivesse invadido minha casa, nada disso teria acontecido!!
— Casa?! — Olhou ao redor e franziu as sobrancelhas mais uma vez. — Isso não parece uma casa. Cadê as camas feitas com as melhores penas do reino? Ou os baús cheios de raridade e riquezas? O dossel?
— Como é que é? Dossel? Baús? Penas? Riquezas? Reino? — perguntou perplexa, seus olhos piscavam rapidamente.
— Os móveis de madeira quase apodrecendo… As janelas minúsculas onde saíam o brilho radiante da Estrela Celeste… As armas que ficam na parede para intimidar… O trono para depositar minhas fezes…
— Tá falando do vaso?!
— Onde está tudo isso?
— Olha, senhor, eu...
O homem já estava ficando impaciente e com uma expressão emburrada, Mio decidiu se apressar e dizer alguma coisa, mesmo que não fizesse sentido. Precisava expulsá-lo de alguma maneira e chamar a polícia. Mas, ele não esperou qualquer ação de Mio.
Se aproximou mais da jovem adulta, os rostos de ambos ficaram bem próximos, parecendo que iriam se beijar. A expressão do suspeito mudou completamente – mais intimidador –, e Mio tremeu com esse olhar.
— Por algum acaso estamos em uma masmorra? Você me sequestrou?
— Eu? Te sequestrar? Era mais fácil você fazer isso! — rebateu, tentando se recompor.
— Está se achando tanto assim, mulher? Acha que pode comigo? — Seu tom de voz mudou também, mais grossa e sinistra.
— N-N-Não é isso!
Se aproximava cada vez mais e Mio corou bruscamente, colocou as mãos sobre os seios e admitiu a derrota. Ela estava ferrada, agora o homem faria coisas horríveis e morreria ali mesmo, sem ter ao menos jogado uma última vez. No entanto, em vez de fazê-la algum mal, ele se virou e fez seu caminho até o lugar onde estava, a cama de Mio.
Kawano abriu os olhos e não entendeu a atitude tão repentina, nenhum psicopata ou pervertido faria algo assim ou deixaria sua vítima impune, mas ele era uma exceção. Uma exceção bem estranha e que ela tentava compreender.
— Posso resolver isso depois, vou voltar a dormir — disse calmamente, se deitando no colchão e pondo suas mãos debaixo do travesseiro.
— Você não pode fazer isso!!
Ela chegou perto do sujeito, o balançou e o cutucou, fazendo movimentos repetidos sem parar. De algum jeito ou de outro, tinha que tirá-lo de sua cama, ou melhor, de casa.
— Vamoooos!! Você não pode ficar aqui! Essa é a minha cama e minha casa!
— Chega!! Você está irritando o Senhor dos Demônios!
— “Senhor dos Demônios…?” — perguntou baixinho para si mesma.
— Não me explicarei para uma mortal como você, ser inferior. — Seu tom, que no começo estava preguiçoso e desorientado, mudou e ficou mais sério e grosso. — Será punida por atrapalhar o sono de um demônio!
O homem segurou com uma das mãos o cabelo de Mio, puxando uma de suas marias-chiquinhas com uma força considerável. A dor foi instantânea, ela gritou e tentou se livrar da mão dele, mas era mais forte que ela. O autoproclamado "Senhor dos Demônios" deu altas risadas, divertindo-se com o momento de fraqueza de Kawano.
— AIII, MEU CABELO!!!
— Sua reação é a melhor! — continuou rindo alto da situação de Mio. — Eu gostei de você, como se chama?
— É-É Mio Kawano... Agora solta o meu cabelo!
—Sim, sim. — Atendendo ao pedido, soltou o cabelo da mais baixa. Olhando profundamente nos olhos da jovem, disse: — Mio Kawano, você quer ser minha serva? A serva do maior Rei dos Demônios, Zethnniyr?
— Serva? Tá querendo me tornar a sua escrava?! — Aumentou seu tom de voz, estava claro a indignação dela.
— Estou com poucas reservas mágicas, então um contrato faria minha magia voltar ao que era — disse suavemente, nem se importava com a expressão perplexa de Mio. — Além disso, esse lugar é bem diferente do meu mundo. Ter uma serva que me mostre as coisas é uma ótima ideia!
— Seu mundo? Está me dizendo que veio de outro mundo?!
Apesar de parecer absurdo, fazia sentido com toda a situação apresentada até agora, principalmente pelo fato de Zethnniyr ter chifres e cauda. Mio sabia que era real depois de tudo.
— Seu nome é Zethnniyr, certo? — perguntou e o demônio assentiu, assim, continuou: — Olha, eu sinto muito, mas eu não posso ser sua serva...
— E por que não?
— Eu não sou a pessoa ideal para te ajudar, muito menos te fornecer magia...
— Tem razão. Em batalha, seu peso deve te atrapalhar por ser gordinha, não é?
— Por que está falando sobre o meu peso?! — Seu rosto apresentava uma expressão emburrada e suas bochechas estavam coradas. Assim que se recompôs, deu continuidade: — De qualquer forma, eu não posso te ajudar... Me desculpe.
O clima do cômodo se encontrava carregado, e também, silencioso. Depois da declaração de Mio, nenhum dos dois falou uma única palavra e ambos não se olharam nenhuma vez. Zethnniyr não tinha mais nada a fazer ali depois daquilo, então se virou e ficou de frente para a janela, encarando-a. Quando Mio ousou em falar algo, o maou interrompeu.
— Não precisa aceitar minha proposta de imediato. Te darei um tempo para pensar.
— Mas...
— Eu vou te tornar a minha serva, mas esperarei até você se provar digna como tal, e claro, quando estiver pronta.
Zethnniyr virou seu rosto e deu um sorriso confiante, o que fez Mio arregalar seus olhos em desentendimento. Sem nenhum aviso prévio, o Rei dos Demônios abriu a janela e, em um salto, pulou para fora do apartamento, sumindo da vista de Mio.
Ela continuou ali parada com as sobrancelhas franzidas. Não sabia se estava sonhando ou se tudo o que tinha acontecido era real. Não conseguiu nem pensar na raid do jogo pelo qual estava tão empolgada. Depois de tal acontecimento, tudo o que conseguia pensar era em reorganizar seus pensamentos e ir dormir.