Volume 1

CAPÍTULO 6: 1° ABRIL, 18H

ME ENCONTREI PARADO em frente ao pequeno santuário de madeira, olhando para a pedra rachada dentro dele, enquanto Greensleeves tocava no alto-falante atrás de mim. Dei um passo para trás para olhar para a resplandecente árvore de cerejeira acima e o céu escurecendo atrás dela. Perto dali, estavam alguns brinquedos de playground antigos e enferrujados. Não havia dúvida — eu estava de volta ao parque abandonado, exatamente onde tudo começou.

Peguei meu celular e olhei a data. Domingo, 1º de abril, 18h. Eu havia voltado para o dia em que cheguei a Sodeshima, o mesmo dia em que Akito perdeu a vida. Depois de cinco longos e confusos dias, eu veria como o restante do 1º de abril se desenrolaria. Eu sabia exatamente o que precisava fazer a seguir. Iria até a Taverna Asuka, impediria Akito de beber a qualquer custo e isso seria tudo. Não deveria ser difícil e eu tinha bastante tempo para chegar lá.

No entanto, não conseguia tirar da cabeça o que Hayase me disse antes do Rollback. Isso ficava me corroendo no peito como uma espinha de peixe afiada presa na minha garganta.

"Ouvi dizer que ele tem abusado fisicamente da irmãzinha, Akari."

Se isso fosse verdade, destruiria qualquer respeito que eu já tivesse por Akito… mas, no final das contas, era só um rumor. Não conseguia imaginar o mesmo cara que se levantou por mim contra aqueles valentões há muito tempo, batendo na própria irmã, não importando o quão baixo ele tivesse caído. Eu não queria nem considerar essa possibilidade. Por ora, porém, meu objetivo não tinha mudado; eu precisava focar em evitar a morte de Akito. Depois eu poderia investigar a veracidade desses rumores.

Corri pelas ruas vazias e abandonadas em direção à Taverna Asuka. Eu sabia que ele não chegaria até o bar antes das 21h, o que ainda estava a três horas de distância, mas mesmo assim, sentia a necessidade de ir logo. Demorei cerca de 20 minutos para chegar ao meu destino. Achei um lugar discreto um pouco mais à frente, do outro lado da rua, onde eu poderia vigiar a entrada do bar sem chamar a atenção dos outros clientes. Agora, tudo o que eu precisava fazer era esperar ele chegar… mas como ainda era por volta das 18h30, eu ficaria ali esperando por mais duas horas e meia. Me encostei em um poste de telefone e me preparei para a longa espera. Foi então que senti meu celular vibrando no bolso. Tirei ele e vi que era minha avó ligando, então atendi.

— Alô?

— Querido, para onde você foi? Já quase é hora do jantar. Por favor, venha para casa.

Ah, claro — esse era o dia em que eu tinha saído de casa para esfriar a cabeça.

— Desculpa, vó. Estou um pouco ocupado agora… Talvez não chegue em casa até mais tarde.

— Ocupado com o quê? E até que horas estamos falando?

Eu não sabia o que dizer. Obviamente não queria voltar para casa agora e correr o risco de não poder voltar para cá depois, mas também não fazia ideia de quando eu terminaria o que tinha que fazer aqui. Então, decidi ser honesto com ela.

— Desculpa, ainda não sei. Prometo que te ligo assim que tiver uma ideia melhor de quando vou chegar. Como eu disse, provavelmente será bem tarde.

— Você ainda não está chateado com a Eri, está? — ela perguntou, reprobatória.

— Não, vó. Não tem nada a ver com isso.

— Bom, tá bom.

— E não se preocupe em guardar sobras para mim. Eu me viro.

— Ok. Mas tente voltar o mais rápido possível, querido. Posso perceber que a Eri está bem preocupada com você, mesmo que nunca admita.

— Heh. Ah, sério?

— Enfim, não nos faça esperar demais. Falo com você em breve — Disse minha avó, e desligou o telefone. Lembrei-me aleatoriamente de que foi ela quem originalmente me disse que eu havia ficado na casa de um amigo na noite do 1º de abril. Mas aqui estava eu, definitivamente não na casa de um amigo, e não via isso mudando, a não ser que algo muito bizarro e drástico acontecesse. Era uma das poucas coisas que ainda me deixava confuso… mas tanto faz. Por agora, o plano era terminar isso para poder dormir na minha própria cama. Não importava onde eu tinha ficado da última vez, porque desta vez eu iria mudar o futuro.

O tempo passou. O céu acima foi lentamente se transformando de um vermelho escarlate quente para um azul-marinho profundo e frio. Caramba, está um frio danado aqui fora, pensei comigo mesmo, enquanto esfregava os ombros para me aquecer. Já passava um pouco das 21h, mas Akito ainda não dava as caras. Eu até fui dar uma olhada dentro do bar um minuto atrás, caso eu tivesse o perdido de vista, mas ele não estava lá. O dono do bar tinha dito que ele só lembrava que era "mais ou menos" às 21h, então não era tão estranho pensar que Akito ainda não havia chegado, mas mesmo assim, isso me deixava ansioso. Onde ele estaria agora, e o que estaria fazendo? Seria bem mais fácil se eu soubesse o número dele e pudesse ligar para ele…

— Espera aí.

Eu poderia pegar o número dele com a Akari, né? Me senti um idiota. Por que não pensei nisso antes? Imediatamente tirei o celular e disquei o número dela. Três toques depois, ela atendeu.

— Oi, Akari? Ouve, é…

— Kanae-kun, você tem que me ajudar!

— Ei! Quem disse que você podia atender isso?! Me dá aqui! — A chamada foi desligada do outro lado.

— O que diabos foi isso?

De repente, uma sensação ruim tomou conta de mim. Era a Akari quem tinha atendido o telefone, disso eu tinha certeza. Mas quem era aquela outra pessoa gritando com ela? A voz parecia vir de mais longe, então eu não conseguia entender direito. Um suor frio escorreu pela minha testa. Algo ruim estava prestes a acontecer. Ela não teria atendido ao telefone pedindo minha ajuda de outra forma. Tentei ligar novamente, só para garantir… mas sem sucesso.

Eu preciso ir. Akari precisa de mim.

Eu saí correndo. Meu destino: o complexo de apartamentos da Akari. Não sabia com certeza se seria lá que ela estaria, mas parecia o lugar mais provável. Se ela não estivesse lá, eu teria que tentar em outro lugar. Corri o mais rápido que consegui pela rua, tropeçando várias vezes pela falta de iluminação, e cheguei ao complexo de apartamentos em tempo recorde. Ofegante, subi as escadas e toquei a campainha. Nenhuma resposta. Bati forte na porta. Ainda nada. Por fim, tentei girar a maçaneta como último recurso, e a porta me surpreendeu ao abrir sozinha. Chamei lá de dentro para saber se havia alguém em casa, e entrei sem esperar resposta. Era uma possível emergência; não tinha tempo para seguir a etiqueta. Caminhei pelo corredor principal e entrei na sala de estar, que estava com a porta aberta. Ali, no meio do chão, estava uma jovem encolhida na posição fetal.

— Akari! Você está bem?! — perguntei, correndo até ela. Me agachei ao seu lado e coloquei a mão suavemente nas suas costas, tentando ajudá-la a se levantar. No momento em que meus dedos tocaram nela, ela se levantou abruptamente e empurrou minha mão para longe.

— Pare com isso! — ela gritou. — Não toque em m—

Nossos olhares se encontraram, e ela congelou no lugar, com a boca aberta. Então, aos poucos, a expressão dela se transformou em uma mistura de tristeza e desespero. Seus olhos começaram a se encher de lágrimas, que logo começaram a sair em torrentes, como pequenas cachoeiras.

Waaaaaah! — ela gritou alto, enterrando o rosto no meu peito.

Dessa vez, fui eu quem congelei, mas logo percebi o que tinha que fazer. Envolvi os braços ao redor dela e comecei a acariciar suas costas, como minha avó sempre fazia para me confortar quando eu era pequeno. Depois de a embalar assim por um tempo, seus soluços eventualmente diminuíram, e ela afastou o rosto do meu peito. Longos fios de muco se esticaram como teias de aranha de suas narinas até minha camisa. Peguei uma caixa de lenços no centro da mesa e a estendi para ela. Ela pegou um sem dizer uma palavra e assoou o nariz.

— Está se sentindo um pouco melhor agora? — perguntei.

Mmn — ela resmungou, com a voz nasal. Fiquei em dúvida se isso significava sim ou não. Ela ainda estava sentada, com os ombros caídos, olhando desanimada para o chão. O que diabos aconteceu com ela? Não conseguia imaginar algo que a fizesse desmoronar daquele jeito, a não ser que fosse algo realmente terrível. Dei uma olhada rápida nela, mas não vi sinais de uma luta intensa ou algo assim. Nenhuma roupa rasgada ou ferimentos visíveis, pelo menos.

— Você não se machucou, né? — perguntei, e ela apenas balançou a cabeça.

Então, fiz minha próxima pergunta.

— O que aconteceu aqui?

No momento em que perguntei isso, as lágrimas começaram a se formar novamente. O rosto dela se contorceu, e elas começaram a escorrer dos cantos dos seus olhos.

— Meu din— ele... ele pegou meu...meu — ela disse, fungando inconsolável entre uma palavra e outra. Estava cada vez mais difícil de entender. Decidi que a explicação podia esperar por agora.

— Tudo bem, podemos conversar sobre isso depois — disse, acariciando suas costas para confortá-la novamente. — Você está bem. Está tudo bem agora...

Enquanto continuava tentando consolá-la, olhei rapidamente para o relógio na parede. Eram 22h, o que significava que Akito estava bebendo há quase uma hora. E algo me dizia que pedir para ele parar de beber pelo telefone não ia adiantar mais, já que ele já estava embriagado. Eu precisaria voltar lá e pará-lo pessoalmente. Claro, ainda tinha bastante tempo, então teoricamente poderia ficar um pouco mais com a Akari, mas a vida do Akito estava em jogo. Não queria correr o risco.

— Ei, Akari, hum... Não quero ser um idiota, mas... tem um lugar onde eu preciso estar em um tempo curto — confessei. Ela levantou a cabeça rapidamente para me olhar. Então, ela agarrou meu braço direito e apertou forte.

— P-Por favor, não vá — ela implorou.

— Tá tudo bem. Eu volto rapidinho, prometo.

— Não... Eu não quero que você vá...

Ver ela me implorando para não ir, com os olhos cheios de lágrimas, apertou meu coração. Pensando bem, eu não podia fazer isso. Não podia simplesmente deixá-la aqui.

— Tá bom. Então você pode vir comigo — disse, levantando-me. Akari também se levantou aos poucos, ainda me segurando pelo braço enquanto começávamos a atravessar a sala de estar.

— Espera... Onde você está me levando? — ela perguntou.

— Para o bar — respondi, saindo para o corredor. — É lá que o Akito está.

Akari parou de repente, ainda puxando com força a manga do meu casaco.

— Por que... temos que ir lá? — ela perguntou com os olhos embaçados.

— Porque senão o Akito pode morrer hoje à noite. Se eu não for lá e fizer ele parar de beber, é isso.

— Como você pode saber disso?

— Eu explico no caminho. Vamos, vamos logo.

— Não. Quero que me conte aqui mesmo.

— Mas estamos ficando sem tempo...

— Por favor, Kanae-kun.

Akari teimosamente se recusava a sair de onde estava. Pela determinação que eu via em seus olhos, estava claro que ela não ia se mexer até conseguir as respostas que queria. Eu entendi querer uma explicação depois de eu ter dito que o irmão dela poderia morrer, mas ela precisava ser tão insistente assim...? Não dava mais para pensar nisso. A única maneira de eu conseguir que ela fosse comigo era explicando tudo.

— Tá bom, mas já vou avisando, isso vai ser bem complicado — avisei.

— Eu não me importo — Akari assentiu, então soltou meu braço.

— Certo. Então, basicamente, eu sou do futuro.

Eu contei tudo sobre o fenômeno do Rollback com o máximo de detalhes que consegui.

— Então, você entende agora? — perguntei.

— Como é que eu vou acreditar em tudo isso...?

Akari gemeu, segurando a cabeça com as mãos como se tivesse uma enxaqueca. Eu realmente não podia culpá-la; lembro de ter tido dificuldade para entender a explicação dela sobre como o Rollback funcionava no começo. Só depois de vivenciar o fenômeno eu comecei a acreditar em tudo o que ela me dizia. Como eu deveria explicar tudo isso de uma forma que fizesse a Akari acreditar em mim, se ela nunca experimentaria o fenômeno? Talvez fazendo alguma previsão sobre o futuro? O único evento importante que eu tinha para prever era a morte do Akito, e eu estava tentando evitar isso. Nos últimos dias, eu assisti um pouco de TV e vi algumas notícias no meu celular, mas não lembrava de nada substancial o suficiente para causar um impacto. Olhei o relógio de novo. Agora eram 22h30. Precisávamos sair logo.

— Vamos logo — disse. — Eu te conto mais no caminho. Talvez assim você comece a acreditar em mim.

— Mas — ela protestou, segurando as mangas de seu suéter gigante enquanto baixava a cabeça. Não parecia que eu conseguiria convencê-la tão cedo. Eu não tinha muito o que fazer – teria que arrastá-la comigo, por mais grosso que fosse. Estendi a mão para pegar a dela, mas isso claramente a assustou, já que ela recuou instintivamente e tropeçou no pequeno desnível da porta, onde o chão se elevava. Ela perdeu o equilíbrio e caiu de costas, sentando-se no chão.

— Ai, ai...

— Ah, caramba, me desculpa! Você tá bem? — Eu entrei em pânico, me agachando ao lado dela enquanto ela gemia de dor. — Nossa, que idiota, eu não devia ter esticado a mão assim sem falar nada primeiro.

— Não, tá... tá tudo bem — ela disse, esfregando a parte inferior das costas enquanto se levantava. Ela parecia um pouco envergonhada.

— Tem certeza? Você não caiu na parte ruim do quadril, né?

— Meu quadril ruim? — ela perguntou, confusa.

— É, você machucou a parte baixa das costas recentemente, não foi? Você mencionou isso outro dia. Disse que ainda dói de vez em quando.

— Espera, quando foi isso? — ela piscou, sua confusão agora se transformando em surpresa genuína.

— Na noite em que invadimos o Colégio Sodeshima.

— Mas a gente nunca fez isso.

— Claro que fizemos. Foi ideia sua! Você me ensinou a como entrar pela janela quebrada do banheiro feminino e tudo. É só dar um pouco de força, e a fechadura abre na hora.

— W-Whoa, como você sabe disso? Isso é algo que só eu e algumas das outras garotas da escola deveriam saber fazer...

— Como eu disse, aprendi com uma profissional. Ou melhor, com a sua versão do futuro.

Akari pensou um pouco, olhando para baixo; pelo que eu pude perceber, ela ainda tinha suas dúvidas, mas estava começando a acreditar um pouco mais em mim. Talvez agora ela estivesse mais disposta a ouvir o que eu tinha a dizer sobre o Akito.

— Escuta, Akari. Como eu estava tentando te dizer antes, eu voltei aqui de alguns dias no futuro. Sei o que vai acontecer nos próximos dias e quando — eu expliquei. Ela olhou para mim e, depois de uma longa pausa, assentiu levemente, então continuei. — Por isso, preciso que você acredite em mim quando eu te disser que, em algum momento dessa noite, entre meia-noite e 2 da manhã, o Akito vai morrer de envenenamento alcoólico agudo. A não ser que eu vá até o bar agora e faça ele parar, claro.

— Então... você está tentando salvar a vida do meu irmão...?

— Isso mesmo.

O fato de o Akito estar em perigo grave finalmente pareceu atingir Akari, pois sua expressão se transformou em uma mistura de confusão e horror. Seus lábios tremiam, como se ela quisesse muito dizer algo, mas não conseguia forçar as palavras a saírem.

— Enfim, desculpa, mas eu realmente não posso perder mais tempo. Você ainda quer vir comigo ou não?

— S-Sim... Eu vou — ela respondeu timidamente.

— Legal. Vamos logo, então.

Saímos do apartamento da Akari e descemos as escadas. Enfrentando o ar gélido da noite, fomos pelas ruas desertas da cidade silenciosa. Eu guiava o caminho, com Akari logo atrás. Nenhum de nós disse uma palavra enquanto corríamos pela ilha até nosso destino.

O objetivo que eu busquei ao longo desses últimos dias estava quase ao alcance. Assim que chegássemos ao bar, eu entraria lá e arrastaria o Akito para fora, se fosse necessário. Se ele tentasse resistir ou já estivesse dando sinais de envenenamento alcoólico, eu poderia simplesmente chamar a polícia ou uma ambulância. Desde que eu conseguisse chegar lá e confrontá-lo, eu deveria ser capaz de mudar o futuro e evitar que a morte dele acontecesse.

Foi uma semana difícil, mas logo ela chegaria ao fim.

Ainda havia algumas coisas sobre esse processo do Rollback que eu não entendia completamente... mas provavelmente não valia a pena pensar muito nisso agora. Desde que eu conseguisse salvar o Akito, era só isso que... 

De repente, senti um puxão urgente na minha manga. Akari estava me segurando pelo braço. Eu parei de andar e virei para ela; estávamos bem embaixo de um dos poucos postes de luz da rua, então eu conseguia ver perfeitamente o rosto de Akari. Então, eu ofeguei. Ela estava olhando pensativamente para a calçada, com lágrimas escorrendo pelo rosto.

— Eu não consigo — ela soluçou, apertando meu braço tão forte que eu senti suas unhas atravessando minha pele através do casaco. — Desculpa, Kanae-kun... Eu simplesmente não consigo...

— O que você quer dizer com isso? Não consegue fazer o quê? — eu perguntei, desesperado. Eu não fazia ideia do porquê ela tinha me parado ou por que estava chorando, o que começou a me deixar um pouco em pânico. Ela olhou para mim e, com os olhos cheios de lágrimas, fez um apelo que partiu meu coração.

— Precisamos mesmo... salvar meu irmão...?

Demorou alguns momentos para que as implicações das palavras dela se assentassem em minha mente. Se me dessem um milhão de suposições sobre o que ela diria, eu jamais teria chegado perto do que realmente saiu da sua boca. Minha boca ficou aberta, sem acreditar no que acabara de ouvir, enquanto tentava, sem sucesso, formar palavras. Eventualmente, comecei a me sentir um pouco tonto. Já não conseguia dizer com certeza se meus pés ainda estavam tocando o chão.

— O que você está dizendo? — eu gaguejei. — Claro que temos, não temos…?

— Mas — ela resmungou, segurando o colarinho do seu suéter com a outra mão. Estava se comportando quase como uma criança mimada.

— O que aconteceu com você, Akari? Esse é o seu único irmão, estamos falando dele…

— Eu sei, mas… eu simplesmente não consigo fazer isso… Eu não quero salvar ele, Kanae-kun. Eu nem quero estar na mesma sala que ele de novo…

— Bom, faz sentido, mas isso é uma questão de vida ou morte. Se não fizermos nada, ele literalmente vai morrer. Você não entende isso?

— Eu entendo, mas… eu só… Ah, não sei…

Akari continuou balançando a cabeça, se recusando a olhar nos meus olhos. Ela parecia frágil, até paranoica. Como se estivesse convencida de que algo ou alguém estivesse tentando pegá-la, e estava me implorando para resgatá-la do seu perigo. Do meu ponto de vista, eu não entendia o que ela temia. Akari ainda não tinha expressado suas emoções de maneira clara o suficiente para eu entender.

— Por que você não quer salvar o Akito? — eu perguntei.

— Bem… porque ele é uma pessoa horrível…

— Como assim?

— Ele… me bate, me chuta, essas coisas…

— Q-Que — Eu gaspei, rezando para ter apenas ouvido errado. 

— Ele… realmente te bate?

— Sim — ela acenou com a cabeça e começou a elaborar lentamente, com uma voz trêmula.

Ela me contou tudo sobre como ele estava constantemente jogando coisas nela, puxando seus cabelos e até quebrando um osso do quadril dela. Como ele a usava como sua assistente pessoal, dia após dia. Como ele roubava todo o dinheiro que ela havia economizado enquanto trabalhava duro no seu emprego de meio período. Como ele chegou a sugerir que ela trabalhasse em um clube de striptease para ganhar o dinheiro de volta…

A cada palavra que saia da boca da Akari, meu sangue fervia de ódio por Akito, e minha empatia por Akari só aumentava. Essas duas emoções conflituosas se sobrepuseram como uma enorme tesoura, cortando meu coração. Akari estava fazendo um apelo por ajuda, e, por mais que eu quisesse apenas tampar meus ouvidos e ignorar o que ela dizia, eu jamais poderia fazer isso com ela. Quanto mais ela explicava o que vinha acontecendo, mais uma terceira emoção começava a se formar dentro de mim: arrependimento. Arrependimento por dois anos atrás, quando fiz as malas e deixei Akari sozinha em Sodeshima sem pensar duas vezes. Por que eu não percebi antes que algo estava errado? Por que nunca liguei para saber como ela estava? Eu me martelava com perguntas como essas, mas não havia boas desculpas. Se eu tivesse ficado ao lado da Akari, poderia ter estado lá para ela quando…

— Agora você entende? — Akari interrompeu meus pensamentos. — Por favor, Kanae-kun… Não podemos… apenas esperar para ver o que o universo decide sobre meu irmão?

Eu não tinha o que dizer em resposta a isso. Depois de ter chegado até aqui, eu agora estava começando a ter dúvidas de última hora. Devo salvar Akito ou não? Quando o Rollback começou, não havia dúvida na minha mente sobre qual deveria ser a resposta a essa pergunta. Mas naquela época, eu não sabia sobre todas as coisas que ele estava fazendo com a Akari. Todas as coisas horríveis e repulsivas. Não podemos esquecer que Akari era minha melhor amiga aqui, não Akito, e ela mesma estava essencialmente me dizendo que seu irmão merecia morrer.

E ainda assim… certamente havia espaço no coração de Akito para mudança, se lhe déssemos uma chance de uma segunda vida, não havia? Se o deixássemos morrer, ele nunca teria a oportunidade de se redimir. Havia um número infinito de maneiras de a vida dele mudar a partir deste ponto, tanto para melhor quanto para pior, e deixá-lo morrer agora significaria apagar todas essas possibilidades. Eu estava realmente preparado para ser seu juiz, júri e executor aqui? Eu não sabia.

Então, o que eu deveria fazer? Minhas escolhas eram agir contra a vontade da minha melhor amiga, que era uma vítima de abuso, ou deixar um homem profundamente falho morrer. Nesse exato momento, admito que as balanças não estavam inclinadas para nenhum dos lados. Eu estava perdido, e a pressão da decisão iminente estava começando a me deixar angustiado.

De repente, do nada, uma memória antiga surgiu na superfície da minha mente. Era daquela viagem de campo da quinta série, a mesma que Akari e eu tínhamos relembrado depois de invadirmos a escola naquela noite. Uma memória da Akari caindo de cara na lama e eu, de propósito, caindo logo em seguida. Naquele momento, meu raciocínio era que, quando você se encontra até o pescoço na lama, preso numa situação horrível da qual não consegue escapar, seus verdadeiros amigos são aqueles que se atiram na lama junto com você, se sujando em solidariedade para te ajudar a sair. E agora? Eu realmente estava disposto a carregar essa lama, essa mancha na minha consciência, e compartilhá-la com ela pelo resto da minha vida?

— Tudo bem — murmurei com um pequeno suspiro, assentindo para mim mesmo. Eu tinha tomado minha decisão. — Vamos adiar a decisão de salvar o Akito, então.

No momento em que disse essas palavras, Akari soltou meu braço e vacilou, como se estivesse prestes a desmaiar. Eu a segurei pelos ombros e a apoiei, temendo que ela desmaiasse.

— Você está bem? — perguntei.

— Desculpa… acho que só estou… me sentindo meio tonta — ela disse. Sua palidez não parecia boa; ela parecia tão exausta que poderia cair de joelhos a qualquer momento.

— Vamos te levar para casa.

Voltamos pelo mesmo caminho, afastando-nos do bar onde Akito estava bebendo. Nenhum de nós disse uma palavra. Acho que ambos precisávamos de um tempo para processar a gravidade da decisão que acabávamos de tomar juntos. Caminhamos em silêncio o caminho todo para casa, enquanto eu a sustentava.

Chegamos ao apartamento da Akari depois do que pareceu uma eternidade. Ela destrancou a porta, e ambos entramos. Ela parecia não ter forças nem para andar sozinha. No momento em que pensei em encontrar um lugar para deitá-la, ela apontou fraca para uma porta à esquerda no corredor. Seguindo suas instruções, abri a porta e a ajudei a entrar. Acendi a luz, e o cômodo ganhou vida. Era um espaço bem apertado — cerca de oito metros quadrados, mais ou menos — mas havia uma fragrância levemente doce no ar.

Presumi que aquele fosse o quarto da Akari (eu nunca tinha estado dentro dele antes). Do outro lado da porta havia uma cama de estrutura simples de madeira e, quando olhei para a minha direita, vi o uniforme da escola de Sodeshima pendurado na parede. Dei uma olhada rápida no quarto e vi uma estante cheia principalmente de volumes de mangás, uma cômoda plástica e uma escrivaninha velha, cheia de trabalhos escolares e livros didáticos. Cada livro tinha milhares de marcadores de página coloridos saindo de capa a capa.

— Por favor, não me julgue… Sei que está uma bagunça — Akari reclamou.

— Ah, não! Desculpa, eu não estava tentando ser rude — pedi desculpas.

Parei de olhar ao redor e a ajudei a caminhar até a cama para se deitar, puxei o cobertor até seu pescoço e a cobri.

— Você devia tentar descansar essa noite — falei. — Podemos conversar mais amanhã.

— Ok — ela assentiu fraca.

Achei que seria uma boa ideia ficar por perto, pelo menos até ela adormecer. Apaguei as luzes, liguei a luz noturna e me sentei no chão com as costas apoiadas na lateral da cama dela. Akari estendeu a mão debaixo do cobertor e tocou meu ombro, então me virei.

— Você pode… segurar minha mão? — ela pediu timidamente, estendendo-a até mim. Fiquei um pouco surpreso com isso no começo, mas fiquei feliz em atender ao pedido.

— Claro, sem problema.

Me virei de modo a ficar de frente para a cama e entrelacei os dedos com os dela. Akari apertou com força. Sua mão era menor que a minha, e tão suave, quente e delicada quanto quando éramos crianças. Tão delicada, que eu tive medo de apertar forte demais e acabar machucando.

Ficamos assim, com sua mão na minha, enquanto as primeiras horas da noite passavam tranquilamente sob nossos pés. Olhar para Akari com os olhos fechados me fez sentir um pouco sonolento também. Ainda segurando firme, encostei minha testa no canto da estrutura da cama e fechei os olhos. O chão estava um pouco frio para conforto, mas provavelmente eu adormeceria assim eventualmente… Espera. Lembrei que deveria retornar a ligação para minha avó assim que soubesse que horas voltaria para casa.

— Espera um pouco, Akari. Preciso fazer uma ligação rápida — disse, me levantando e soltando sua mão.

— Qu-quem você precisa ligar? — ela perguntou timidamente. Sentou-se na cama.

— Só para minha avó. Não se preocupe.

— Ah, tá… Mas volta logo, tá bom?

— Pode deixar.

Saí do quarto e peguei o celular. Já eram onze horas. Liguei para casa, esperando que minha avó estivesse irritada. E claro, ela estava. Assim que me identifiquei, ela começou um discurso maravilhoso sobre como eu era irresponsável e o quanto ela estava preocupada. Ela não me deixou falar uma palavra sequer, e eu não vi ela parando tão cedo, então, de repente, disse que ia passar a noite na casa de um amigo e desliguei o telefone. Um momento depois, percebi o que tinha feito. As implicações bateram tão forte que perdi o equilíbrio e bati minhas costas na parede.

Claro.

Senti a maior pergunta pendente, aquela que permanecia congelada na minha mente todo esse tempo, começar a derreter, drenando de mim como a neve derretendo. Eu acabara de cumprir minha própria profecia. Esta era a casa do amigo onde passei o dia 1º de abril, e em algumas horas, Akito morreria novamente. Então amanhã, eu encontraria o corpo e ligaria para relatar. Agora eu entendia porque Akari se recusava a me contar o que aconteceu na noite de 1º de abril. Ela não podia me dizer que ela e eu deixamos Akito morrer de propósito, não enquanto eu ainda estava determinado a salvar a vida dele. O passado e o futuro se conectaram novamente. Tudo aconteceu exatamente como o destino havia ordenado. No final, eu era impotente para mudar o destino de Akito.

Não. Eu escolhi deliberadamente não mudar.

Sem aviso, a porta do quarto da Akari rangeu um pouquinho. Olhei e a vi espiando pela fresta, nossos olhares se encontrando.

— O que aconteceu? — perguntei.

— Bom, você demorou um pouco… Fiquei um pouco preocupada — ela murmurou.

— Ah, foi mal. É que acabei de sair da ligação. Disse que vou ficar aqui essa noite.

— Espera, você vai passar a noite? ...Certo, tudo bem. Faz sentido. Idiota.

Ela falou como se tivesse demorado um pouco para digerir a ideia, mas eu não consegui ver sua expressão com as luzes ainda apagadas. Voltei para o quarto, e nós dois voltamos às nossas posições de antes, tanto de sentar quanto de dormir. Nesse exato momento, meu nariz resolveu começar a coçar, e eu espirrei. Passei a mão pelo nariz.  

— Você está com frio? — Akari perguntou.  

— Só um pouco. Posso ligar o aquecedor?

— Bem, você até poderia... mas eu tenho uma ideia melhor — ela declarou, então se afastou um pouco para o fim da cama, fazendo espaço para mim. — Por que você não vem para cá... tem bastante espaço debaixo das cobertas.

— Hã?! Espera, mas isso... Quer dizer, v-você acha que isso é uma boa ideia?

— Claro, por que não? Eu confio em você. Agora, vem logo — ela insistiu, batendo várias vezes no espaço vazio das cobertas, como um convite para eu me juntar a ela. Não queria que ela pensasse que minha hesitação significava algo negativo, então acenei com a cabeça e me deslizei para debaixo das cobertas ao lado dela... mas assim que senti o calor do corpo dela ainda persistindo nas cobertas, meu coração disparou.  

— Você não está meio que pendurado na beirada ainda? — ela perguntou. — Aqui, vem mais para perto.

— O-Ok — eu disse. Me movi para o centro da cama, como ela pediu. Agora o rosto da Akari estava a poucos centímetros do meu, perto o suficiente para eu ver cada cílio. Suas grandes íris escuras estavam fixamente olhando para as minhas.  

— Ei, Kanae-kun? Posso te contar uma coisa?

— Sim? O que é? 

— Não quero parecer estranha, mas... Eu tenho pensado muito em tentar entrar na mesma faculdade que você e me mudar para Tóquio depois de me formar. Tenho trabalhado muito, muito mesmo para isso... Você não tem ideia de quanto eu senti sua falta nesses últimos anos.

— Espera. Era para isso que você estava juntando todo aquele dinheiro?

— Mm-hmm — ela acenou timidamente.  

— Entendi... Bem, me desculpe se fiz você sentir que isso era a única forma. Se eu soubesse que era assim que você se sentia, eu teria ficado aqui com você.

— Não, não! Desculpa, não era para soar como um golpe de culpa. Além disso, agora tudo vai ficar bem — ela me tranquilizou, sorrindo suavemente do outro lado do travesseiro. — Vamos guardar isso como nosso segredo, e esquecer tudo isso, ok?

Então, ela levantou a mão direita entre nossos rostos e levantou o dedo mindinho.  

— Me promete? — ela perguntou.  

— Sim. Eu prometo.  

Entrelaçamos os mindinhos. Quando finalmente soltamos, ela deu uma risadinha satisfeita e depois soltou um longo suspiro de contentamento.  

— Kanae-kun...

— O que foi?

— Ah, nada, só... Obrigada — ela disse, fechando os olhos. Quando os abriu novamente, uma única lágrima perolada escorreu pela têmpora. — Agora não me deixe mais assim, ouviu? 

Então, ela se aninhou ainda mais perto, tão perto quanto duas pessoas poderiam ficar, e pressionou a testa contra o meu peito. Quando olhei para baixo e vi sua cabeça ali, abaixo do meu queixo, fui tomado por uma vontade estranha e irresistível de passar os dedos pelos seus cabelos. E eu fiz. Passei os dedos pelo couro cabeludo dela, subindo e descendo, repetidamente, de maneira lenta e metódica.  

— Mmmnn — ela gemeu, um pouco hesitante no começo, mas logo se relaxou e deixou-se aproveitar a sensação da massagem. Continuei traçando meus dedos de maneira suave, como se quisesse memorizar os contornos do crânio dela. Lentamente, Akari foi adormecendo profundamente. Momentos depois, parei de acariciar seus cabelos e fechei meus olhos também. Eu só queria aproveitar esse momento perfeito e esquecer o mundo.  

Mas, de algum jeito, o sono me escapou.  

Lá no fundo do meu coração, eu pude ouvir uma voz gritando.  

Outro eu — outro aspecto de mim mesmo — estava fazendo um apelo desesperado à minha consciência. 

Então você está realmente bem com isso, né?

 


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