Volume 1

CAPÍTULO 3: 4 ABRIL, 18H

  

MINHA CONSCIÊNCIA RETORNOU instantaneamente a um ponto diferente no tempo. Assim que ergui a cabeça, vi uma grande multidão espalhada ao meu redor. Respirei fundo pela primeira vez, e uma mistura aromática de odores doces e salgados invadiu minhas narinas. Em seguida, vieram os sons — o barulho incessante da multidão e, ao longe, a melodia suave de Greensleeves.

Akari, que estava ao meu lado antes do salto, havia desaparecido. Era exatamente como quando fui transportado do parque abandonado para o quebra-mar num piscar de olhos, como se o projetor do mundo ao meu redor tivesse trocado de slide instantaneamente. Desta vez, pelo menos, eu já estava preparado, graças à explicação da Akari, mas isso não tornava a experiência menos desconcertante.

— Você só pode estar brincando — murmurei, incrédulo. 

Apesar da minha surpresa, a imagem do rosto encharcado de lágrimas da Akari não saía da minha mente. O que a deixou tão abalada naquele momento? Será que ela estava pensando na morte do irmão? Eu teria dito algo sem perceber que a machucou? Ou havia outro motivo...? Eu sabia que isso ficaria martelando na minha cabeça, mas, por ora, decidi ignorar e focar em me situar. Se Akari estivesse certa, o Rollback deveria ter me enviado de volta para as seis horas da tarde do dia 4 de abril.

Justo quando ia pegar o celular para conferir a hora, um homem desconhecido apareceu repentinamente no meu campo de visão. Seu rosto estava vermelho, e ele parecia estar na meia-idade. O que mais me assustou foi a brusquidão com que ele surgiu — ele não veio correndo dos lados nem de trás. Era como se tivesse saltado do nada, como se estivesse sentado bem aos meus pés e de repente tivesse se levantado direto na minha cara.

— Ei! O que diabos você pensa que tá fazendo, moleque?! — ele rosnou, os olhos faiscando sob as veias saltadas da testa franzida. Estava claramente furioso comigo por algum motivo... mas eu não fazia ideia de quem ele era. Nunca o tinha visto antes na vida.

— Er... Desculpe, posso ajudar com alguma coisa? — perguntei, hesitante.

— Hã?! — o homem gritou. Na mesma hora percebi que ele estava bêbado — seu hálito fedia a álcool. — Quer levar uma surra, moleque?! Não se faça de idiota comigo!

— E-Espera aí, calma! — balbuciei, recuando alguns passos enquanto ele avançava. — Olha, eu realmente não sei do que você tá falando...

O homem repetiu minhas palavras de forma exagerada e zombeteira. Algo me dizia que ele não estava disposto a escutar a razão. Droga, o que foi que eu fiz para merecer isso? Primeiro, fui pego de surpresa pelas lágrimas da Akari. Depois, minha mente foi jogada no meio de uma multidão enorme. Agora, um bêbado aleatório estava me importunando. Era coisa demais para lidar de uma só vez — eu sentia que ia enlouquecer.

Antes de mais nada, eu precisava pensar em uma forma de sair dessa encrenca. Sabia que o sujeito estava bastante bêbado e, portanto, provavelmente não conseguiria me alcançar se eu saísse correndo. Ao mesmo tempo, fugir sem nem entender o que eu supostamente tinha feito me incomodava. Mas ele também não parecia disposto a uma conversa racional — na verdade, parecia prestes a me dar um soco na cara. Eu não tinha tempo para ficar ponderando. Dei mais alguns passos para trás. No instante em que me virei para correr, uma jovem de cabelos loiros surgiu entre mim e o bêbado.

— Já chega! Acabou! O que está acontecendo aqui? — ela exigiu.

Ela imediatamente começou a acalmar o homem e a desarmar a situação, explicando educadamente o quanto ele estava sendo inconveniente, que todos estavam olhando e que talvez fosse uma boa ideia ele beber um pouco de água. Ela claramente sabia o que estava fazendo. Enquanto eu a observava, impressionado com a forma como ela não dava espaço para ele retrucar, ela me lançou um olhar.

— Pode deixar que eu cuido disso — disse ela. — Agora vá para casa, tá bom?

— Hã? Espera, mas eu…

— Sério, tá tudo bem. Considere isso meu jeito de te agradecer por toda a ajuda.

Ficava cada vez mais óbvio que continuar ali só dificultaria ainda mais as coisas para ela. Mesmo sendo uma completa desconhecida, eu não queria atrapalhá-la mais do que já tinha feito. E, já que de qualquer forma eu estava prestes a fugir, decidi aceitar sua generosa oferta.

— Tudo bem, justo — eu disse. — Obrigado.

Inclinei levemente a cabeça para ela e então saí em uma caminhada leve. Enquanto me esgueirava pela multidão, finalmente percebi onde estava e, consequentemente, por que havia tanta gente ali. Aquele era o terreno do Santuário Sodeshima. Julgando pela enorme multidão, além das várias barracas de comida e entretenimento alinhadas ao longo do caminho principal que levava ao santuário, aparentemente eu tinha voltado no tempo direto para o auge do maior evento anual de Sodeshima: o Festival da Dádiva do Oceano. Isso, no entanto, não explicava o motivo de eu estar ali em primeiro lugar. Eu me sentia extremamente desconfortável em grandes multidões, então geralmente evitava o festival como se fosse uma praga.

Quem era aquela mulher loira, afinal? Parecia que eu poderia tê-la reconhecido de algum lugar, se não estivesse tão ocupado lidando com o bêbado briguento para conseguir olhar direito para seu rosto. Ainda assim, ela disse que aquilo era sua forma de me agradecer "por toda a minha ajuda", então eu devia ter feito algo por ela nos últimos dias. Como sempre, eu estava encontrando mais perguntas do que respostas, e isso estava começando a ficar realmente irritante.

Me sentia como um funcionário novo sendo colocado em um cargo altamente complicado para substituir alguém que saiu sob circunstâncias misteriosas, sem deixar nenhuma anotação ou orientação — exceto que, nesse caso, essa pessoa era eu mesmo.

Achei que deveria pelo menos conferir as horas. Alcancei o bolso direito, onde normalmente guardava o celular, e fiquei satisfeito ao perceber que ele realmente estava lá desta vez. Apertei um botão, e a tela acendeu — era 4 de abril, 18h05. Então Akari estava certa — eu realmente tinha voltado 48 horas no tempo a partir da noite do dia 6. Acho que o Retorno é real, pensei comigo mesmo. Dessa vez, aceitar isso foi surpreendentemente fácil — ou talvez meu cérebro simplesmente estivesse ficando insensível a todas as loucuras que estavam acontecendo comigo. Bem, era bem melhor do que me sentir enlouquecendo. Guardei o celular de volta no bolso e segui para casa.

Quando finalmente cheguei, já havia decidido qual seria minha primeira prioridade — coletar o máximo de informações possível. Ao entrar na sala de estar, encontrei Eri estudando na mesa, como a boa aluna que era. Aquela era a oportunidade perfeita para fazer algumas perguntas.

— Ei, Eri? Posso te perguntar uma coisa? — perguntei.

Ela me lançou um olhar rápido e então voltou a focar em suas anotações.

— Claro, tanto faz. Mas seja rápido — respondeu.

— Ótimo, obrigado. Indo direto ao ponto: onde você acha que eu fui hoje?

Eri ergueu uma sobrancelha, curiosa.

— O que é isso, algum tipo de pegadinha?

— Não, só responde honestamente.

— Bom, você foi ao festival, não foi?

— Ding ding ding. Garota esperta. Ok, próxima pergunta: você sabe por que eu fui ao festival?

— Você ia ajudar em uma das barracas, certo? Foi o que você disse ontem, de qualquer forma…

Aha. Então eu estava ajudando na organização ou algo assim. Isso explicaria por que aquela mulher loira se sentia em dívida comigo — ela devia fazer parte do comitê organizador. O motivo de eu ter concordado em ajudar ainda era um mistério, mas pelo menos agora eu sabia por que estava lá. Eu tinha receio de que Eri ficasse desconfiada se perguntasse diretamente, então disfarcei como se fosse um joguinho de perguntas. Pelo visto, funcionou. Eri não parecia suspeitar de nada.

— Parabéns, jovem dama! Você acertou todas as respostas! …Ok, só foram duas perguntas, mas ainda assim. Obrigado por participar, e até a próxima!

Enquanto eu fazia uma saída dramática da sala, ouvi Eri murmurar uma única palavra.

— Esquisito.

De volta ao meu quarto, sentei-me à mesa e peguei uma caneta e um caderno da gaveta. Abri em uma página em branco e tentei recriar o diagrama que Akari desenhou na terra quando me explicou o Rollback. O incidente no festival me deixou um pouco desnorteado, então eu queria refrescar a memória e garantir que não tinha esquecido nada do que ela me disse. Desenhei as datas e setas uma por uma, avançando um dia, depois retrocedendo dois. Quando tracei a última seta até o dia 2 de abril, larguei a caneta. Ok, certo. Ainda me lembro direitinho. Estamos bem.

— Ei, espera aí.

Enquanto olhava para o diagrama, uma dúvida antiga voltou à minha mente. Era algo que tentei perguntar a Eri na noite em que caminhávamos para o velório de Akito.

O que eu estava fisicamente fazendo entre às 18h do dia 1º e às 18h do dia 5?

Se apenas minha mente estava saltando no tempo, isso significava que meu corpo ainda havia vivido aqueles quatro dias na ordem natural. Em outras palavras, o corpo em que eu estava agora já havia passado por todos os eventos que eu estava prestes a reviver, mas minha mente não se lembrava porque estava experimentando tudo na ordem inversa.

Peguei meu celular, pensando que talvez houvesse algo registrado nele que pudesse me dar pistas sobre o que fiz nos últimos dias. Eu já esperava que fosse um tiro no escuro, mas quando toquei no aplicativo de Notas, ele abriu direto em um conjunto de anotações que eu não me lembrava de ter feito.

02/04: Encontrei o corpo de Akito às 18h30 no terreno baldio atrás da tabacaria e chamei a polícia.

Hora estimada da morte: entre meia-noite e 2h daquela manhã.

Estava bebendo bastante naquela noite no Asuka Tavern, das 21h à meia-noite.

— Que diabos? — murmurei incrédula.

Tudo ali eram detalhes relacionados à morte de Akito. O segundo ponto eu já tinha ouvido da Akari, mas os outros dois eram informações totalmente novas para mim. Franzi a testa e reli cada palavra com cuidado, até que, de repente, tudo fez sentido.

— Oh, claro! — exclamei, enquanto a lâmpada de ideias acendia na minha cabeça.

Eu devia ter digitado essas anotações em algum momento entre seis horas da tarde de 1º de abril e seis horas da tarde de 4 de abril. Para simplificar, essas eram informações que meu futuro eu havia deixado para mim no passado. Isso explicava porque havia detalhes ali que eu ainda não sabia. Mas, se fosse esse o caso, não pude deixar de me perguntar o quão precisas essas informações realmente eram… exceto, é claro, pelas coisas que Akari já me contou.

Por exemplo, o primeiro ponto parecia sugerir que eu tinha encontrado o corpo de Akito no terreno vazio atrás da loja de tabaco e o havia reportado às autoridades. Akari me disse que o corpo foi encontrado exatamente naquele local, mas não mencionou quem o encontrou. Parecia um detalhe relevante se fosse eu. Ainda assim, o fato de estar escrito ali, no meu próprio celular, me inclinava a acreditar que fosse verdade. Nesse caso, provavelmente havia um registro da minha ligação para o número de emergência naquele horário. Ao perceber isso, rapidamente abri o histórico de chamadas recentes.

 

CHAMADAS RECENTES

Akari Hoshina - Ontem - 19:56

Akari Hoshina - Ontem - 18:35

Akari Hoshina - Ontem - 17:32

Pai - Segunda-feira - 22:24

Casa - Segunda-feira - 19:15

119 - Segunda-feira - 18:30

Casa - Segunda-feira - 23:07

Akari Hoshina - Domingo - 21:06

Akari Hoshina - Domingo - 21:05

Casa - Domingo - 18:29

 

E lá estava: um registro de eu ligando para o 119 exatamente às 18:30 de segunda-feira, 2 de abril. Batia perfeitamente com o horário listado nas minhas anotações, e como não se pode forjar o histórico de chamadas, não tive escolha a não ser aceitar as anotações no meu celular como sendo verdadeiras. 

No entanto, achei um pouco peculiar que eu tivesse feito tantas ligações para Akari nos últimos dias — especialmente ontem, quando aparentemente tivemos três chamadas em questão de horas. Vamos ver… Ontem foi dia 3, então… Talvez tivéssemos combinado de nos encontrar ou algo assim?

De qualquer forma, agora eu tinha uma compreensão muito melhor dos detalhes da morte de Akito. Só restava agora descobrir o que eu tinha feito nos últimos dias, mas provavelmente conseguiria descobrir isso facilmente com algumas perguntas bem formuladas para Eri ou minha avó. Como se tivesse lido minha mente, Eri gritou de baixo para me avisar que o jantar estava pronto.

Quando me levantei da cadeira, ouvi algo amassando no meu bolso esquerdo. Coloquei a mão e descobri uma misteriosa nota de mil ienes dobrada. Talvez eu tivesse planejado usá-la para comprar um lanche no festival ou algo assim. Desdobrei a nota e a coloquei na minha carteira, então desci para a cozinha.

— Oi, vovó, posso te perguntar uma coisa? — perguntei depois que terminamos de comer e ela estava lavando os pratos na cozinha.

— O que foi, querido? — ela respondeu sem sequer se virar, continuando a esfregar o prato que estava lavando.

— Você lembra o que eu tenho feito desde que voltei para Sodeshima?

Eu tinha planejado falar com Eri primeiro, mas depois achei que ela provavelmente ficaria desconfiada sobre o motivo de eu estar perguntando isso e decidi perguntar para minha avó em vez disso. Minha avó não era uma pessoa muito cética, geralmente respondia qualquer pergunta de maneira direta, sem questionar a intenção de quem perguntava. Infelizmente, parecia que eu tinha cometido um pequeno erro de cálculo desta vez.

— Como é que é? — ela perguntou, surpresa, virando-se para me encarar. — Nossa, que pergunta vaga.

Ela estava certa. Eu deveria ter sido mais específico.

— Er, sim, desculpa. Vamos começar com o dia em que cheguei aqui? 1º de abril. O que mais te marcou sobre mim naquele dia?

— Foi há vários dias já, Kanae… Bem, você brigou um pouco com sua irmã — ela lembrou, mas isso eu já sabia. O que eu realmente queria saber era o que eu fiz depois das seis da tarde naquele dia.

— Certo, Eri e eu brigamos e eu saí de casa. Mas o que eu fiz depois disso? — insisti.

— Querido, por que está me fazendo essas perguntas estranhas? Você não deveria saber a resposta para isso?

— Claro, claro que eu sei… Eu só estava curioso para saber o quanto você se lembra ou sabe.

— Como eu poderia saber o que você fez depois disso? Você não voltou para casa naquela noite.

— Eu não voltei?

— Não, não lembra? Você ligou aqui para dizer que passaria a noite na casa de uma amiga. Sério, querido — como é que minha memória é melhor que a sua?

Aha. Isso explicava o registro no meu histórico de chamadas, de quando liguei para casa naquela noite. Para deixar claro, ainda tinha a casa da minha avó registrada como "Casa" na minha lista de contatos, mesmo depois de me mudar para Tóquio, porque meu pai não tinha telefone fixo. Mas o que era isso de eu ter passado a noite na casa de uma amiga? Não tinha amigos aqui em Sodeshima que me oferecessem para ficar na casa deles — nem em Tóquio, para ser honesto. Claro, tinha a Akari, com quem eu era relativamente próxima, mas não havia a menor chance de eu ter passado a noite na casa de uma amiga. Então, onde foi que eu dormi naquela noite?

— De quem era a casa, afinal? — minha avó perguntou antes mesmo que eu tivesse a chance de fazer a pergunta. — Eri também estava curiosa sobre isso.

— Ah, sim, é... Desculpa, vou te contar depois.

— Como é? — ela perguntou, surpresa, virando-se para me encarar. — Não me diga que você passou a noite na casa de algum vagabundo que seu pai e eu não aprovaríamos.

— Não, não! Não é nada disso... Eu acho.

— Você não parece muito certo de si. Não foi se meter em nenhum negócio suspeito, foi? Se estiver em perigo, precisa nos contar. Se não for a mim, então ao seu pai, pelo menos...

— Er, sim. Não, entendo isso. Mas é sério — eu te conto assim que eu puder, tá? Tchau.

— A água do banho está pronta, então fique à vontade para se lavar! — ela gritou enquanto eu saía apressado da cozinha. Enquanto caminhava para o banheiro, senti uma onda repentina de ansiedade cobrir minha mente, como nuvens negras de tempestade se aproximando.

Depois de um banho rápido, voltei para o meu quarto. Passei todo o tempo na banheira tentando descobrir onde poderia ter passado a noite de 1º de abril, mas ainda não conseguia chegar a uma conclusão. Eu nunca tinha passado a noite na casa de um amigo, por mais triste que fosse — então para eu fazer isso enquanto já estava fugindo de casa parecia quase impensável. Deveria ter havido uma razão muito convincente para eu não poder voltar para a casa da minha avó naquela noite, e o fato de que no dia 1º foi também a noite em que Akito morreu me fez pensar que talvez as duas coisas estivessem relacionadas.

Não, isso não poderia estar certo. Não se o corpo só foi encontrado na noite seguinte. Ainda assim, eu precisava descobrir onde tinha passado a noite. Não queria deixar nenhuma pergunta sem resposta antes de voltar para o dia 1º, pois assim poderia dar toda a minha atenção para salvar a vida de Akito. Não que eu tivesse qualquer prova concreta de que o Rollback me levaria tão longe, mas queria estar preparado caso isso acontecesse. Eu precisaria fazer uma investigação pela cidade assim que amanhã chegasse.

Estava prestes a pular na cama quando avistei o caderno que tinha deixado sobre a minha mesa. Abri-o por impulso e dei outra olhada no diagrama do Rollback que eu tinha desenhado mais cedo. Então, uma ideia me ocorreu: Quando exatamente o Rollback deveria acabar? O diagrama da Akari terminava às 18h do dia 2 de abril — e sim, foi quando eu terminei de preencher o vazio de quatro dias nas minhas memórias — mas o que aconteceria depois disso?

Decidi que provavelmente não deveria pensar muito sobre isso, não ia encontrar respostas desse jeito. Por enquanto, precisava de descanso. Meu corpo inteiro estava extremamente dolorido — talvez de ter ajudado no festival, se o que Eri disse fosse verdade. Obviamente minha mente não se lembrava de ter feito nenhum trabalho pesado, mas meu corpo certamente lembrava. Fechei o caderno e me aninhei sob as cobertas. Em questão de minutos, já estava dormindo profundamente.

Fui acordado pelo som do meu celular vibrando. Peguei-o com uma mão, esfregando os olhos com a outra. Depois que minha visão se ajustou, olhei para a tela e vi o nome Akari Hoshina.

— Akari...? — murmurei sonolento, e então atendi o telefone. — Alô?

— Oh, você atendeu! Ei, Kanae-kun! Desculpa por te ligar a essa hora. Você provavelmente já estava dormindo, né?

— Sim, estava... Que horas são agora?

— Ah, deve ser umas uma hora. Uma hora da manhã.

Não é à toa que eu ainda estava com tanto sono.

— Por que você está ligando tão tarde? — perguntei, abafando um bocejo. — Precisa de alguma coisa?

— Bem, eu não diria que preciso de algo. Só estava me perguntando se talvez, sei lá — ela murmurou, sua voz ficando cada vez mais baixa. Coloquei o celular bem perto do ouvido, mas mesmo assim estava difícil entender.

— Desculpa? Não ouvi direito...

— Hum... Eu estava me perguntando se talvez a gente poderia se encontrar um pouquinho?

— O que, você quer se encontrar? Agora... Uma hora da manhã?

— Mm-hmm… — ela respondeu com uma voz fraca. Eu podia praticamente ver os olhinhos de cachorro implorando do outro lado da linha. Isso também era bem incomum; a Akari que eu conhecia jamais ligaria tão tarde da noite, muito menos pediria para se encontrar. O fato de ela estar fazendo isso agora me fez pensar que algo devia estar errado. Preocupado com ela, concordei de imediato.

— Tá bom, claro. Só me fala onde eu tenho que ir.

— Espera, sério? Você quer dizer mesmo? …Ok, me encontra no Central Park em, tipo, vinte minutos.

— Central Park. Entendido. Então nos vemos lá.

— É, te vejo daqui a pouco.

O Central Park era um parque pequeno, mas popular, que ficava um pouco mais para dentro da ilha. Geralmente, quando alguém de Sodeshima dizia "me encontra no parque", era esse que estavam se referindo. Achei que Akari tivesse especificado para eu saber que ela não estava falando do parque antigo e abandonado que eu havia descoberto outro dia.

Depois de desligar o telefone, saí da cama e troquei o pijama por uma calça de moletom e um hoodie. Sabia que levaria uns dez minutos para chegar lá, mas decidi sair mais cedo mesmo assim. Desci as escadas com cuidado para não acordar o resto da família, esgueirando-me pela porta dos fundos e fechando-a silenciosamente atrás de mim.

Quando o ar gelado da noite tocou minhas bochechas, qualquer vestígio de sonolência que eu ainda sentia desapareceu instantaneamente. O vento gelado varria as ruas desertas do bairro, me congelando até os ossos.

Comecei a correr devagar, tentando conservar o calor do corpo. Os bairros de Sodeshima tinham muitas colinas íngremes, então normalmente eu não tentava correr por ali, a menos que estivesse com pressa. Agora, não tinha muitas opções — desapareceram com minha bicicleta quando me mudei para Tóquio, então, a não ser que eu resolvesse pegar a de Eri emprestada, ou corria ou ia a pé e virava um picolé humano.

O som dos meus tênis arrastando no asfalto ecoava alto pelas ruas em um ritmo staccato. Sodeshima estava incrivelmente silenciosa à noite nessa época do ano. Enquanto em Tóquio você nunca escapava do constante zumbido dos motores de carros passando, aqui o mundo parecia parar assim que o sol se punha. Claro, de vez em quando passava algum idiota roncando na moto, mas esses caras eram iguais em qualquer lugar.

Cheguei no parque antes que eu percebesse, mas Akari não estava lá. Olhei para o grande relógio de rua, com seu mostrador iluminado pela luz de um poste, e vi que eu havia chegado quase dez minutos mais cedo. Sentei em um banco de parque para esperar, e o metal gelado logo começou a drenar todo o calor que eu tinha acumulado na pele quente durante a corrida.

Brrr, eu tremi, percebendo tarde demais que deveria ter colocado mais uma camada de roupa.

Nada faz a imaginação correr tanto quanto a expectativa de esperar alguém chegar. Se eu soubesse que chegaria tão cedo, talvez fosse uma boa ideia passar na casa da Akari e pegar ela no caminho. Mesmo morando aqui na área afastada, ainda era perigoso para uma jovem como ela andar sozinha à noite.

Você nunca sabia quem poderia estar escondido nas sombras, e a falta de luz tornava mais difícil ver para onde estava indo. Eu nunca tinha feito um encontro noturno com uma garota como aquele antes, então acho que acabei esquecendo de considerar esse aspecto. Talvez fosse uma boa ideia ligar para ela e sugerir de encontrá-la em um lugar mais perto, mesmo que ela provavelmente já tivesse saído.

Justo quando eu estava prestes a tirar o celular do bolso, notei uma figura sombria na entrada do parque, e soube imediatamente pela silhueta que era a Akari. Levantei-me rapidamente e chamei o nome dela. Ela veio correndo assim que identificou onde eu estava.

— Oi, desculpa — ela ofegou. — Não te fiz esperar muito, né?

— Nah, você está tranquila. Eu que cheguei agora.

Agora, sob a luz do poste, eu realmente pude ver como Akari estava. Ela usava um cardigan grosso e largo, com os dedos aparecendo pelas mangas longas enquanto segurava o tecido com força. Uma sensação estranha se formou dentro de mim — havia algo excitante em nos encontrarmos no meio da noite, ainda mais porque nunca havíamos feito algo remotamente parecido antes.

— Ah, ok. Enfim, desculpa por te tirar da cama tão tarde — ela disse.

— Não se preocupe com isso. Então, me conta...

Eu estava prestes a perguntar por que ela me chamou para nos encontrarmos, quando de repente a imagem dela chorando sob a árvore de cerejeira no parque abandonado veio à minha mente. O rosto dela, encharcado de lágrimas, se sobrepôs perfeitamente ao da Akari à minha frente agora. Não conseguia tirar da cabeça o som dela chorando suavemente enquanto Greensleeves começava a tocar, e pétalas voavam pelo céu. Eu ainda queria entender a razão por trás das lágrimas, então decidi mudar de pergunta.

— Por que você estava chorando outro dia? — perguntei.

— Hã...? Chorando? Quando foi isso? — ela respondeu, me encarando com uma expressão de confusão.

— Não se lembra? Bem antes do último Rollback, você—

Então me dei conta. Nos encontramos no parque abandonado no dia 6, e agora era apenas o dia 5. Claro que essa Akari não saberia do que eu estava falando.

— Er, n-não importa. Esquece o que eu falei. Desculpa, acho que ainda estou me acostumando com essa coisa de Rollback…

— Ahhh, entendi… É, é bem difícil de entender.

— Nem me fala. Se você não tivesse me explicado tudo, eu provavelmente estaria encolhido em posição fetal em algum lugar agora.

— Espera. Quando foi que eu te expliquei alguma coisa? — ela perguntou, inclinando a cabeça para o lado.

— Ah, certo. Isso também foi ontem... Ou melhor, amanhã. 6 de abril. Você me passou o resumo no parque abandonado.

— Eu fiz...? Hmm. Que estranho — disse ela, sua expressão claramente indicando que ainda estava confusa, mas já tinha desistido de tentar decifrar meu discurso lunático. E eu não podia culpá-la por isso — imagine ser informada sobre algo que você fez em um dia que nem sequer aconteceu ainda. Depois dos últimos dias, eu entendia bem essa sensação.

— De qualquer forma, por que você queria tanto se encontrar comigo? Aconteceu alguma coisa? — perguntei.

— Não, não aconteceu nada... Só não consegui dormir.

— Sério...? Como assim?

— Não sei — ela disse, desviando o olhar. Levou um punho cerrado até o peito. — Sempre que eu fechava os olhos, ficava tendo esses pensamentos sombrios... Tipo, de alguém que eu amo indo para bem longe ou, um dia, decidindo que não gosta mais de mim... coisas assim. Eu não conseguia suportar.

Pareciam ansiedades vagas e abstratas, ainda mais vindo da Akari. Mesmo assim, eu não me sentia à vontade para insistir no assunto, especialmente vendo sua expressão vulnerável. Não sabia se era sempre a mesma pessoa que ela imaginava nesses momentos — talvez seu irmão ou alguma figura sem rosto representando o mundo ao seu redor. De qualquer forma, estava claro que a morte de Akito tinha abalado completamente seu estado mental. E, mesmo sem saber todos os detalhes, era evidente que ela estava tão abalada que não conseguia dormir e acabou me ligando no meio da noite, só para ter alguém ao lado dela. No mínimo, eu lhe devia isso, como seu amigo de longa data.

— Certo. Então, vamos conversar um pouco, que tal? — Sorri, e a expressão da Akari suavizou imediatamente, transparecendo alívio.

— Obrigada, Kanae-kun.

— Não precisa agradecer. Às vezes é bom sair de casa — respondi e, em seguida, mudei o assunto para algo mais leve. — E então, o que você fez hoje?

— Hoje...? Para ser honesta, não fiz muita coisa. Minha mãe ficou no telefone praticamente o dia todo, fazendo ligações sobre o meu irmão.

— Que tipo de ligações?

— Acho que ela estava ligando para vários médicos de um hospital universitário. Tentando conseguir mais informações sobre ele, imagino.

— Entendi... Que curioso — murmurei, sem saber o que dizer.

Se Akito já estava morto quando o encontrei, então não havia como tê-lo transferido para tratamento. O que significava que... provavelmente estavam fazendo a autópsia dele. Mordi o lábio, percebendo que talvez tivesse acabado de trazer mais pensamentos desagradáveis para a cabeça dela. E, enquanto tentava desesperadamente pensar em um assunto mais animador, uma rajada de vento gelado passou zunindo por nós. Agora, oficialmente congelando, esfreguei os braços numa tentativa inútil de gerar calor por fricção.

— Caramba, tá frio pra caramba aqui — resmunguei. — A gente pode ir para outro lugar?

Em Tóquio, havia lanchonetes e restaurantes 24 horas espalhados por toda parte, mas aqui em Sodeshima não existia nada disso. As únicas opções abertas a essa hora eram alguns bares e pubs pequenos — e, infelizmente, ainda éramos menores de idade.

— Bem, não é aquecido, mas eu conheço um lugar onde podemos nos abrigar do frio — disse Akari.

— Sério? Onde? — perguntei.

Ela me olhou nos olhos e respondeu, sem um pingo de sarcasmo.

— O colégio Sodeshima.

Depois de escalarmos o portão da frente, nós dois aterrissamos do outro lado e seguimos direto pelo centro do campo de esportes vazio. À minha frente, Akari caminhava com um pulinho confiante no passo, sem sequer tentar ser discreta.

— Ei! — sussurrei, apreensivo. — Tem certeza de que não vamos nos meter em encrenca com isso?

— Relaxaaa — disse ela, dando de ombros. — O único segurança vai embora às dez da noite. Não tem a menor chance de sermos pegos. Confia em mim.

— Espera, sério? Eles simplesmente não se importam com invasores ou...? Quer saber, esquece. Mas, mesmo que a gente não seja pego, isso ainda é super ilegal, né?

Akari parou no meio do caminho e se virou para me encarar.

— Não pense nisso como algo ilegal, pense como uma aventura! Você não quer viver uma aventura comigo, Kanae-kun...? — ela murmurou, fazendo beicinho.

Não... Não os olhinhos de cachorrinho... Qualquer coisa, menos isso...

— Tá bom, tá bom... Você venceu — suspirei, derrotado. — Pelo menos não estamos machucando ninguém.

— Yaaay! Vamos lá!

O rosto de Akari se iluminou de alegria enquanto ela girava nos calcanhares e corria para o prédio da escola. Não havia mais volta — eu teria que acompanhá-la nessa.

Depois de cruzarmos o campo, começamos a contornar o perímetro do edifício principal. Quando chegamos mais ou menos na metade do caminho, Akari parou de repente diante de uma janela de vidro fosco deslizante.

Eu nem queria imaginar como ela pretendia entrar, mas, sem hesitar, ela agarrou as laterais da janela e começou a sacudi-la no batente.

— Hum... O que exatamente você está tentando fazer? — perguntei.

— Ei, não me olha assim — ela fez bico. — Se você parar pra pensar, a culpa é deles por nunca consertarem essa fechadura.

— Uau. Então dá pra abrir desse lado, assim, fácil?

— Ué, sim? Você já não sabia disso?

Agora eu estava completamente perdido. Como eu poderia saber? Nunca estudei aqui.

— Ah, pera — Akari exclamou, batendo na própria testa como se tivesse tido uma epifania. — Desculpa, que burrice a minha — claro que você ainda não saberia disso. Dã.

Por um momento, um enorme ponto de interrogação surgiu na minha cabeça, mas logo entendi. Pelo tom dela, parecia que, em algum momento nos últimos dias, ela havia me falado sobre a trava quebrada da janela, mas era algo que eu ainda não tinha vivenciado. Nesse caso, fazia sentido ela achar que já tinha me contado, enquanto eu não fazia ideia do que ela estava falando. Percebendo o engano, Akari começou a explicar.

— Então, basicamente, todas essas janelas têm trincos, mas essa aqui tá meio esquisita. A alavanca não gira completamente e a trava não encaixa. Se você mexer um pouco assim e aplicar um pouco de pressão horizontal… — Ela disse enquanto demonstrava. Dito e feito, a janela se abriu com facilidade, e ela me lançou um sorriso convencido. — E voilà! Viu? Moleza.

— Uau, estou impressionado. Você realmente conhece esse lugar como a palma da mão.

— Bom, eu espero que sim! Já faz dois anos que estudo aqui.

Akari se impulsionou para cima do parapeito da janela e pulou para dentro. Ainda parecia um pouco invasivo demais para o meu gosto, mas a segui mesmo assim. Assim que entrei, percebi que estávamos no banheiro feminino. O lugar estava completamente vazio, mas mesmo assim me senti um intruso ali, então saí rapidamente para o corredor principal.

— Uau… Isso é bem legal — murmurei para mim mesmo — embora até isso tenha ecoado pelo corredor vazio.

O luar suave entrando pelas janelas oferecia alguma iluminação, mas a escola ainda estava bem escura. Olhei para o final do corredor, onde a única coisa visível era o brilho fantasmagórico da lâmpada vermelha do alarme de incêndio. Mesmo sendo alguém que não se importava em vagar por partes abandonadas da cidade, tive que admitir que o ambiente era um pouco assustador. Por outro lado, também era emocionante — essa era a primeira vez que eu invadia uma escola à noite. Comecei a caminhar hesitante pelo corredor, até que um pensamento preocupante me atingiu.

— Ah, droga. Esqueci de tirar os sapatos.

— Não se preocupa com isso — disse Akari, saindo do banheiro feminino no momento em que eu me ajoelhava para desamarrar os tênis. — Aqui a gente pode usar calçado de rua, não tem problema.

— Sério? Eu não fazia ideia. Nunca pisei no Colégio Sodeshima antes.

— Então permita-me te apresentar o grande tour!

Akari seguiu pelo corredor, e eu fui atrás. Ela não demonstrava nem um pingo de hesitação — pelo contrário, parecia até confortável ali.

— Ei, Akari. Vai com calma — falei, alcançando-a. — Você não tá com medo, não?

— Ah, por favor. Isso aqui é fichinha comparado a ontem. Além do mais, você tá comigo, não tá? O que eu teria pra temer?

— Bom, se você diz…

Não soube o que responder. Só queria que ela parasse de dizer coisas que soavam como flerte, porque eu nunca sabia como reagir. E o que era isso sobre ontem? Será que realmente tínhamos feito algo ainda mais assustador do que invadir a escola à noite? Nem conseguia imaginar o que poderia ser.

— Por quê? Você tá com medo, Kanae-kun?

— Quem, eu? Pff, imagina. Só tremendo um pouquinho na base, só isso.

— Então tá apavorado. Entendi — ela debochou, parando diante de um par de portas duplas. — Ah, olha só, aqui é a biblioteca. Quer dar uma olhada?

— Será que a gente consegue entrar?

— Vamos descobrir — disse ela, puxando as maçanetas com força. Mas as portas não se moveram. — Bom, droga. Tá trancado.

— É, sem surpresa — comentei com um sorriso torto, enquanto Akari coçava a bochecha e ria sem jeito. Passamos pela biblioteca e logo chegamos à escada principal.

— Você passava um tempão na biblioteca, né, Kanae-kun? Ainda lê bastante? — ela perguntou enquanto subíamos.

— Nem tanto ultimamente… Estudar consome todo o meu tempo livre.

— Nossa, tá tão puxado assim?

— Eu tô me esforçando só pra conseguir acompanhar. Se eu não tomar cuidado, posso acabar repetindo o ano.

— Sério? Isso me surpreende. Você sempre teve notas boas no fundamental.

— É, talvez pelos padrões de Sodeshima — suspirei ao chegarmos no segundo andar. Continuei desabafando enquanto seguia Akari pelo corredor principal. — Não me entenda mal, eu também achava que era um aluno brilhante naquela época. Mas quando cheguei em Tóquio, as coisas mudaram completamente. A concorrência lá é absurda, sabe? Você tem que se destacar muito pra ser notado. É… sufocante, pra ser sincero.

Só depois de falar percebi que estava basicamente desabafando. Me senti mal. Akari não era minha terapeuta, e ouvir minhas reclamações não devia ser muito divertido pra ela.

— Desculpa. Não queria ficar me lamentando.

— Que nada. Todo mundo tem seus problemas. Bom saber que não sou a única… Ah, olha só. Chegamos — ela disse, parando em frente a uma sala com uma placa enorme indicando o SEGUNDO ANO. — É aí que eu sentava até um mês atrás! Meio louco pensar nisso.

Ela apontou com orgulho para a janela da sala, enquanto eu encostava a testa no vidro para tentar enxergar melhor. Para o tamanho da sala, não havia tantas carteiras — talvez umas trinta no máximo.

—Quer entrar? — ela perguntou com um sorriso travesso.

— Se trancaram a biblioteca, aposto que trancam as salas de aula também.

—Você não tá errado. Mas olha só — deixaram a janelinha acima da porta bem aberta pra gente.

— Essa escola precisa melhorar a segurança.

Enquanto eu balançava a cabeça em descrença, ouvi um "Hup!" animado e me virei para ver Akari já escalando o peitoril da janela ao lado, tentando se enfiar pela pequena abertura acima da porta. Quando estava quase passando, soltou um grito súbito de dor.

— Ei, você está bem? — perguntei quando ela voltou a se abaixar no corredor.

— Sim, desculpa… — Ela fez uma careta enquanto massageava um dos lados da parte inferior das costas e da cintura. — Achei que já estaria completamente curada, mas ainda dói de vez em quando.

— Curada? Você se machucou recentemente ou algo assim?

— Ah, hm… Mais ou menos. Mas já estou tipo noventa e nove por cento boa, então não se preocupa. Não é nada demais.

— Tem certeza…?

Akari assentiu, mas com uma expressão um tanto melancólica. Fosse o que fosse, estava claro que ela não queria falar sobre o assunto, então resolvi deixar pra lá e mudar de assunto.

— Certo, que tal eu entrar primeiro e destrancar a porta pra você por dentro? — sugeri.

— Seria ótimo, obrigada.

Subi no parapeito da janela ao lado, assim como Akari havia feito, e me esgueirei para dentro da sala de aula pela janela mais alta, acima da porta. Lá dentro, o ambiente parecia ainda mais espaçoso do que do lado de fora. O cheiro de madeira e cera fresca encheu meus pulmões enquanto eu observava as fileiras organizadas de carteiras vazias. O pálido brilho azul da lua, filtrado pelas vidraças, banhava os tampos das mesas com uma luz suave.

Destranquei a porta para Akari, e ela entrou, passando por mim. Depois de dar uma boa olhada no local, caminhou até uma carteira perto da janela e se sentou.

— Sim, esse era o meu lugar. Senta aí, Kanae-kun — disse, indicando a carteira à sua frente enquanto deslizava a mão sobre a superfície lisa de madeira.

Senti um pouco de desconforto em me sentar no lugar de um estranho qualquer, mas acabei cedendo.

— Nossa, isso traz muitas lembranças, né?

— Pois é, nem me fale — concordei. — Parece que voltamos pro fundamental.

— Eu preferia voltar pro primário, pra falar a verdade.

— Sério? …Bom, até dá pra entender.

Agora que ela mencionou, percebi que quase não tinha boas lembranças dos anos do ensino fundamental. Eu sempre era tratado como um pária pelos colegas, sofria provocações e, quando achava que tinha feito amigos, acabava traído. Foi um período horrível. Ainda assim, eu valorizava todo o tempo que passei com Akari naquela época.

— Se pudesse voltar pro primário, o que faria diferente? — Akari perguntou, apoiando o cotovelo na carteira.

— Boa pergunta — respondi. — Provavelmente estudaria pra valer desde o primeiro dia e tentaria entrar na Universidade de Tóquio.

— Só isso? Que chato.

— Ah, é? E você, então?

— Eu? Hm… — Ela cruzou os braços, pensativa. Não achei que fosse uma pergunta tão profunda, mas esperei pacientemente pela resposta, até que ela teve um estalo. — Eu queria ter ido a mais excursões!

Depois de tanto suspense, a resposta foi inesperadamente anticlimática. Não consegui segurar a risada.

— Você sabe que excursão não é exclusividade do primário, né?

— Sim, mas a gente tinha muito mais passeios naquela época, lembra? Só que sempre acabavam cancelados por causa da chuva ou algo assim.

— Ah, é verdade. Parecia até que o clima tinha alguma rixa com a nossa turma — sempre esperava até a manhã do passeio pra virar um temporal.

— Como é que chama isso mesmo? Lei de Murphy? — murmurou Akari.

(N/SLAG: A lei de Murphy diz que se algo pode dar errado, vai dar errado.)

— Acho que sim — confirmei.

— Kanae-kun… Você se lembra daquela excursão na quinta série?

— Quinta série? Você tá falando daquela vez em que caiu de cara numa poça de lama gigante?

— Essa mesma!

Isso trouxe uma enxurrada de memórias. Nossa turma tinha feito uma excursão para subir uma pequena montanha no continente. Fazia tempo que não saíamos juntos, então todos estavam animados, Akari incluída — pelo menos até escorregar e cair direto na lama. Jamais esquecerei a mudança repentina na expressão dela, de pura empolgação para completo desespero.

— Mas aí você caiu logo em seguida também, lembra? Como foi isso mesmo? — Akari perguntou, e só então percebi que tinha esquecido desse detalhe. Depois que ela escorregou, eu praticamente mergulhei na lama logo atrás.

— Ah, é… Acho que tropecei numa pedra ou algo assim.

— Acho — Akari estreitou os olhos, desconfiada.

Na verdade, eu tinha me jogado de propósito. Não queria ficar parado vendo todo mundo rindo da Akari coberta de lama, então decidi cair junto para tentar desviar um pouco da atenção dela. Mas meu plano saiu pela culatra — em vez de parar de rir, a turma achou ainda mais engraçado ver nós dois naquela situação. Ainda assim, depois de todos esses anos, eu não me sentia confortável em contar a verdade, então tentei disfarçar com uma desculpa fraca.

— Bom, faz tanto tempo… Difícil lembrar exatamente.

— Ah, é meeesmo…? Bom, tudo bem. Ei, isso me lembrou — falando em excursões…

Akari e eu continuamos conversando e relembrando o passado por um bom tempo. Lá estava eu, sozinho numa sala de aula vazia no meio da noite, com a garota por quem tive sentimentos intensos — embora não correspondidos — no passado. Alguém poderia imaginar que eu estivesse nervoso ou ansioso, mas, naquele momento, eu estava apenas aproveitando a conversa.

Só quando o pequeno relógio na parede acima do quadro marcou 3 da manhã que um grande bocejo escapou da minha boca.

— Ficando com sono? — ela perguntou.

— Ah... Nem tanto — menti, decidido a ficar aqui e conversar com ela só mais um pouco. A verdade é que eu estava extremamente cansado, e nossa conversa estava morrendo — então forcei minha mente em busca de outro assunto antes que ela sugerisse que talvez devêssemos encerrar a noite.

— Ah, é? O que foi?

— É sobre a noite em que Akito morreu. Você tem ideia do que eu estava fazendo ou onde eu estava depois que me despedi de você lá no quebra-mar?

Assim que a pergunta saiu da minha boca, os olhos da Akari se arregalaram, como se eu a tivesse pego em uma situação comprometedora. Ela parecia genuinamente chocada; sua boca se abriu levemente, mas nenhuma palavra saiu. Tudo o que ouvi foi uma respiração longa e superficial. Preocupado, chamei seu nome de novo, e desta vez ela saiu do transe. Então, sua expressão se transformou em um sorriso descaradamente forçado.

— D-Desculpa, desculpa. Você está falando do dia 1º de abril, certo?

— Sim. Minha avó disse que eu passei a noite na casa de um amigo, mas eu não conseguia pensar em nenhum amigo que faria isso por mim. Fiquei me perguntando se você sabia de algo.

— Ahm... Não, desculpa. Eu só te vi aquela vez no quebra-mar naquele dia, então não faço ideia do que você fez depois disso...

— Entendi... Bem, de qualquer forma, obrigado.

Isso não levou a nada. Se Akari não sabia, então eu não fazia ideia de quem mais perguntar. Nem Eri nem minha avó pareciam saber também. Eu tentava pensar em outras formas de investigar quando ouvi Akari soltar um pequeno suspiro ao meu lado. Me virei para ela e vi que cobria a boca com uma das mãos, o que dificultava ver sua expressão.

— O que foi? — perguntei, e ela se virou para mim lentamente, com um olhar temeroso. Sua testa estava franzida, como se tivesse percebido um erro grave. Depois de alguns momentos de silêncio, ela abaixou a mão e forçou um sorriso fraco, tentando me tranquilizar.

— Não é nada, desculpa — disse. — Só tive um mau pressentimento porque não lembro se tranquei a porta ao sair.

— Ah, entendi... Sim, isso acontece comigo o tempo todo — concordei, embora achasse sua reação um tanto exagerada. Reforcei. — Então, tem certeza de que está tudo bem?

— Sim. Pensei melhor e agora tenho uns noventa e nove por cento de certeza de que tranquei a porta, na verdade. Então tá tudo certo.

Ela me deu um sorriso descontraído, que finalmente me convenceu de que não era nada demais — mesmo que sua reação inicial ainda me parecesse estranha. Provavelmente era só coisa da minha cabeça. Akari se levantou da cadeira e se espreguiçou.

— Certo, já tá bem tarde. Ou cedo, eu acho. Que tal irmos pra casa?

— Provavelmente uma boa ideia.

Mesmo sem querer me despedir, eu sabia que não podíamos ficar ali para sempre. Levantei-me também. Deixei Akari sair da sala primeiro para que eu pudesse trancar a porta por dentro e depois saí pela janela alta, do mesmo jeito que entrei.

— Bom, acho que esse é o fim do tour, né? — brinquei enquanto caminhávamos pelo corredor.

— É, não tem muito mais pra ver — Akari assentiu. — Além disso, todas as outras salas já devem estar trancadas... Ah, mas na verdade tem um lugar que eu ainda quero te mostrar antes de irmos. Vem cá rapidinho.

Segui Akari escada acima, passando pelo terceiro andar, até a área de acesso ao telhado. Lá, só havia algumas pilhas de carteiras estudantis fora de uso e a porta que levava ao lado de fora, trancada com um cadeado comum — o que significava que não podíamos sair.

— Era isso que você queria me mostrar? — perguntei.

— Claro que não. Me dá um pouco mais de crédito, vai? Tá do outro lado dessa porta.

Akari puxou dois fios pequenos de dentro de uma carteira próxima. Pareciam grampos de cabelo que haviam sido entortados até ficarem relativamente retos. Antes que eu pudesse processar o que ela estava prestes a fazer, ela já tinha enfiado os fios no cadeado e começado a mexer neles. Em questão de segundos, o cadeado foi destrancado.

— Aí está! — ela exclamou. — E então? Bem legal, né?

— Legal uma ova! Onde diabos você aprendeu a fazer isso?

— Eu costumava vir aqui sempre que queria um tempo sozinha. E, bom… sempre via esse cadeado aqui, e eventualmente comecei a me perguntar o quão difícil seria quebrá-lo, sabe? Então comecei a praticar só por tédio, basicamente, mas acabei pegando o jeito rapidinho.

— Você tem tempo de sobra, né, garota.

— O que posso dizer? Sou uma mulher simples. Vejo uma porta, quero abrir.

Akari fez exatamente isso, e uma rajada de vento gelado entrou pela porta recém-aberta. Atravessei a entrada e parei por um momento para recuperar o fôlego. Uma lua cheia brilhava no céu noturno sem nuvens. Abaixo dela, pontos de luz esporádicos dos barcos de pesca espalhavam-se pelo oceano e, no horizonte distante, as luzes da cidade podiam ser vistas. A vista era deslumbrante. Parecia que estávamos no centro de uma pintura impressionista panorâmica.

— Caramba… Isso sim é bonito — eu disse, impressionado.

— É, uau… É a minha primeira vez aqui à noite, mas nem eu esperava que fosse tão incrível — Akari concordou. Então, ainda olhando para o céu, começou a andar lentamente em direção à borda do telhado. A cerca de proteção ao redor tinha apenas a altura da cintura, o que não ajudava muito a aliviar minha preocupação. A escola ficava em um ponto tão elevado da ilha que nada ao redor bloqueava os ventos fortes. Mas Akari não parecia se importar. Ela segurou o corrimão e inclinou o corpo para frente, ultrapassando a borda.

— Ei, toma cuidado aí — eu avisei.

— Ah, eu vou ficar beeem — ela respondeu. — Ei, vem cá, Kanae-kun — insistiu, mas eu já estava indo. Tomei meu lugar ao lado dela, apoiando-me no corrimão e deixando meus olhos absorverem a paisagem noturna à nossa frente. Por mais linda que fosse, eu hesitava toda vez que olhava para baixo daquela altura. Estava tão escuro que eu nem conseguia ver o chão. Tudo que via era um abismo negro e profundo. Estremeci.

— O que foi? Tem medo de altura? — Akari perguntou.

— Não — eu resmunguei. — Só estou com um pouco de frio, só isso.

— Ah, é meeesmo — ela murmurou, me olhando com suspeita. Um instante depois, abriu um sorriso travesso, como se tivesse acabado de bolar um novo jeito de me provocar. Sem dizer nada, se inclinou e encostou o ombro no meu. Por um segundo, fiquei completamente desconcertado. Mas então decidi bancar o indiferente e agir como se aquilo não me afetasse. Eu não ia dar esse gostinho a ela. O cheiro do shampoo dela flutuou no ar entre nós, fazendo cócegas no meu nariz.

— Sabe, este é o meu lugar favorito em toda Sodeshima — ela sussurrou no meu ouvido. — Durante o dia também é lindo. Dá pra ver o oceano, a ilha inteira e até o continente ao longe.

— Uau, é… Parece incrível.

— Não é? …Olha, ali está o Grande Carro — ela disse, apontando para o céu e traçando as estrelas com o dedo.

— Caramba. As constelações são tão visíveis daqui.

— Não dá pra ver muitas estrelas em Tóquio?

— Você ficaria surpresa, na verdade. A poluição luminosa não atrapalha tanto quanto as pessoas acham.

— Sério?

— Sim. E a paisagem noturna também é linda, claro. De certa forma, é como se o céu estrelado e as luzes da cidade se juntassem para formar um grande e harmonioso degradê.

— Nossa… Você falando assim faz parecer ainda mais legal — ela disse e, em seguida, abaixou o olhar de volta para o oceano. Estendeu a mão na direção do continente distante e sussurrou para si mesma

— Eu adoraria morar lá um dia.

— Então vá.

— Não sei se conseguiria me virar na cidade grande como você.

— Claro que conseguiria. Só precisa se arriscar — eu disse. — E, se não der certo, você sempre pode morar comigo, sabe.

Akari me olhou, surpresa. E eu não podia culpá-la — nem eu acreditava no que acabara de dizer. Basicamente, eu tinha acabado de pedir ela em casamento. Levou alguns segundos até a ficha cair completamente, mas quando caiu, meu rosto inteiro ficou vermelho. Tentei me retratar.

— E-Er, foi mal. Não quis dizer de um jeito estranho nem nada…

Minha mente girava num turbilhão de emoções, metade constrangimento, metade arrependimento. Eu queria sumir. Mas antes que eu pudesse considerar pular o corrimão e acabar com minha vergonha de uma vez, algo aconteceu.

Akari me abraçou. Sem aviso, sem hesitação. Fiquei tão surpreso que congelei no lugar, incapaz até de retribuir o abraço. Com as mãos agarradas na parte de trás do meu moletom, ela apoiou a cabeça no meu ombro. A combinação do toque suave e do perfume doce deve ter fritado meu cérebro, porque, por um momento, esqueci até de respirar. Fiquei ali, sem pensar em nada, apenas deixando-me ser envolvido por Akari — incapaz de surtar e estragar o momento.

Então, depois de um tempo, senti sua respiração quente atravessando o tecido do meu moletom. Ela tentava dizer algo.

— Por favor, nunca me odeie — ela implorou.

Sua voz era frágil e assustada, como a de uma criança perdida que foi deixada para trás pelos pais. Eu não conseguia entender exatamente o significado dessas palavras, nem se havia algo mais por trás delas. Mas sabia que só havia uma resposta possível.

— É claro que não — respondi. — Como eu poderia te odiar?

Finalmente consegui envolver minhas mãos trêmulas ao redor das costas de Akari. A tensão ainda prendia cada centímetro do meu corpo, mas, de alguma forma, consegui forçar meus braços a abraçá-la. Eu sabia que era a coisa certa a fazer. Ficamos ali assim por alguns segundos – ou talvez minutos – até que, por fim, Akari se afastou delicadamente. Agora, suas bochechas levemente coradas estavam a meros centímetros do meu rosto, e eu pude ver seus olhos enevoados brilhando sob a suave luz da lua.

— Vamos para casa — disse ela baixinho.

No caminho de volta para a casa de Akari, continuamos conversando sobre coisas triviais, como se o abraço no terraço não tivesse passado de um delírio febril. Falávamos com a mesma naturalidade de antes, como na sala de aula, cerca de uma hora atrás, revezando-nos ao relembrar memórias que nos faziam rir ou nos deixavam surpresos. Era tudo tão espontâneo que, por um momento, comecei a me perguntar se o que aconteceu no terraço não teria sido apenas fruto da minha imaginação.

Ainda assim, não consegui parar de me questionar sobre o motivo de ela ter sido tão assertiva ao me abraçar daquele jeito. Obviamente, foi uma demonstração de afeto — o que eu não conseguia entender era que tipo de afeto. Pelo que sabia, aquilo poderia significar qualquer coisa, desde um simples gesto de gratidão momentânea até uma declaração de amor. Sem saber onde exatamente essa demonstração se encaixava nesse espectro, não fazia ideia do nível adequado de carinho para retribuir.

— Ei, Kanae-kun — ela chamou, quebrando o silêncio.

— O quê? — respondi, minha voz falhando.

— Obrigada por sair comigo hoje à noite. Algo me diz que agora vou conseguir dormir bem.

— Ah... Que bom. Sempre que precisar conversar, pode me chamar.

— Ótimo. Acho que vou aceitar essa oferta.

Akari sorriu para mim — e só isso foi suficiente para uma onda de euforia percorrer meu corpo. Foi então que percebi que não importava se eu não conseguia entender o que se passava na cabeça dela; eu estava grato por receber qualquer demonstração de afeto dela, independentemente da forma.

Decidi, naquele momento, parar de analisar demais seus sentimentos. A partir de agora, eu apenas aceitaria o carinho que ela achasse que eu merecia. Porém, nossa noite de sonho estava chegando ao fim. Logo, o prédio onde Akari morava surgiu diante de nós.

— Quer se encontrar amanhã também? — sugeri, metade por preocupação com ela, metade por querer passar mais tempo ao seu lado.

— Desculpa, acho que não vou ter tempo. Tenho que me preparar para o velório e tudo mais.

— O velório...? Mas isso foi... Ah, é mesmo.

O velório de Akito aconteceu na noite do dia 5. Como eu estava passando pelos dias ao contrário, já o havia vivenciado, mas, para Akari, isso ainda não tinha acontecido.

— Sim, desculpa. Estamos nos desdobrando nos últimos dias para organizar tudo para o funeral... E não posso deixar minha mãe lidar com isso sozinha, sabe?

— Ei, não precisa se desculpar. Você já tem muita coisa na cabeça, eu entendo.

— Obrigada por compreender...

Seu semblante entristeceu, e ela abaixou um pouco a cabeça. Cerrei os dentes, me amaldiçoando por ter estragado o clima ao perguntar sobre o dia seguinte. Determinado a salvar a conversa e terminá-la em um tom positivo, forcei um tom animado e tentei tranquilizá-la.

— Ei, não fica assim! Eu vou voltar no tempo e salvar o Akito, lembra? Assim, tudo voltará ao normal.

— É, eu sei.

— Eu sei que consigo. Só preciso garantir que ele não saia para beber naquela noite.

— Certo.

Isso não pareceu animá-la muito — na verdade, ela ficou ainda mais abatida. De alguma forma, minha tentativa de animá-la saiu pela culatra, e comecei a entrar em pânico internamente. O único irmão dela tinha morrido há poucos dias. Eu deveria ter evitado falar sobre ele a todo custo.

Eu estava me repreendendo mentalmente por essa falha crítica de julgamento quando Akari me surpreendeu ao continuar deliberadamente a conversa sobre ele.

— Qual era sua opinião sobre o meu irmão, Kanae-kun? — perguntou, ainda olhando para o chão. — Você ainda o admira, mesmo agora?

— Essa é difícil... Obviamente, ele foi meu herói quando eu era criança, mas hoje em dia? Não sei se eu ainda o 'idolatro', para ser sincero. Não que eu tenha perdido o respeito por ele! Pelo contrário. Como eu poderia, depois que ele me salvou daqueles valentões na escola?

— Ah, é... Eu tinha esquecido disso.

— Sobre minha impressão dele... Bem, ele sempre me pareceu meio desajeitado quando se tratava de expressar sentimentos.

— Como assim? — Akari perguntou.

— Bom, lembro que uma vez, acho que foi na terceira série... Ele veio falar comigo naquela lojinha de doces da cidade e disse algo tipo: "Ei, você é amigo da Akari, né? Me faz um favor, pode ser?"

— Que favor?

— Ele basicamente pediu para eu cuidar de você, ser um bom amigo para você e tal. Porque ele achava que não estava sendo um irmão mais velho muito bom... E que a única coisa em que era realmente bom era no beisebol.

Akari parou no meio do caminho e se virou para mim.

— Espera aí. Ele realmente disse tudo isso?

— Bom, talvez não com essas palavras exatamente, mas sim. Eu lembro especificamente dele me pedindo para ficar de olho no seu equilíbrio, porque ele disse que você costumava tropeçar e cair muito. Ele definitivamente se importava com você, à maneira dele.

Eu me lembrava bem desse encontro. Akito já era conhecido por suas habilidades no beisebol naquela época — ele treinava com o time da escola secundária mesmo ainda estando no ensino fundamental e até jogava como rebatedor reserva no time amador de adultos da ilha. Um ídolo local como ele me abordar do nada para pedir esse tipo de favor foi uma surpresa marcante.

— Mas acho que é assim que os irmãos mais velhos são, né? Sempre cuidando dos mais novos, mas orgulhosos demais para admitir. Eu e a Eri somos assim também. Às vezes parece que tudo o que fazemos é implicar um com o outro! Cara, a gente brigou feio poucos minutos depois que cheguei em casa outro dia — comentei, rindo da minha própria infantilidade. Mas então percebi algo: Akari não estava rindo junto. Pelo contrário, sua expressão parecia incrivelmente séria.

— Meu irmão realmente disse isso sobre mim...? — ela perguntou, a voz trêmula. Algo estava claramente errado ali, mas antes que eu pudesse perguntar o que havia de errado, ela saiu correndo em direção ao prédio de apartamentos o mais rápido que pôde.

— Ei, espera! Para onde você tá indo?! — gritei, correndo atrás dela em desespero. Consegui alcançá-la bem antes de ela chegar às escadas, segurei seu braço e a virei para me encarar. — Qual é o seu problema, Akari?! Por que saiu correndo assim do na...

Minhas palavras ficaram presas na garganta quando vi que ela estava chorando copiosamente.

— Me desculpa... Me desculpa mesmo — ela murmurou.

Um calafrio percorreu meu corpo inteiro, e soltei seu braço imediatamente. Akari disparou escada acima e entrou no apartamento com uma velocidade quase instintiva, como se estivesse apavorada com a ideia de ser vista naquele estado e quisesse escapar do meu olhar a qualquer custo. Mesmo depois de ouvir a porta bater no andar de cima, permaneci parado na base da escada por um tempo, completamente congelado.

Depois de entrar pela porta dos fundos, subi as escadas em silêncio e me enfiei no meu quarto, desabando na cama sem nem trocar de roupa. Puxei as cobertas até cobrir minha cabeça, tentando me desligar do mundo. Eu deveria estar exausto o suficiente para dormir sem esforço, mas o sono simplesmente não vinha. A imagem do rosto encharcado de lágrimas da Akari queimava no fundo da minha mente; por mais que tentasse, não conseguia afastá-la. 

É claro que eu tinha meus palpites sobre o motivo de ela ter desabado daquele jeito. Estávamos falando sobre o irmão dela, que havia falecido recentemente, e eu acabei revelando uma lembrança que mostrava um lado carinhoso dele que talvez ela não tivesse visto com frequência. Fazia sentido que ela ficasse emotiva com isso — e provavelmente só fugiu porque não queria que eu a visse chorar. Eu sabia, racionalmente, que provavelmente não tinha sido nada do que eu disse ou fiz… mas ainda assim parecia que eu tinha machucado seus sentimentos.

— Cara, eu sou um idiota...

Eu não devia ter mencionado o Akito de jeito nenhum. Akari pode até ter continuado o assunto, mas fui eu quem trouxe ele à tona primeiro. Decidi que ligaria para ela no dia seguinte para pedir desculpas.

Com esses pensamentos finalmente organizados, o cansaço me envolveu como um ladrão na noite. Fechei os olhos e mergulhei em um sono profundo e sem sonhos.

Dormi profundamente até o meio-dia. Depois de me arrastar para fora da cama, desci para almoçar com a Eri e minha avó, e depois voltei para o quarto. Meu despertador marcava mais de 13h, e a data continuava sendo 5 de abril, como esperado. Sentei-me na cama, peguei o celular do bolso e liguei para Akari, como havia prometido a mim mesmo na noite anterior. Depois de rediscá-la duas, três vezes, ela finalmente atendeu na quarta tentativa.

— Alô?

— Oi, sou eu. Tem um minuto?

— Uhh… Claro, o que foi? Mas não posso falar por muito tempo. Estamos correndo para organizar as coisas para o velório de hoje à noite.

— Ah, tranquilo. Vai ser rápido — garanti, fazendo uma pausa para reunir coragem. — Eu só queria me desculpar por ontem à noite. Eu… sei que falei algumas coisas que talvez tenham sido insensíveis, considerando tudo o que você já tá passando.

— O quê? Não, não — você não fez nada de errado, Kanae-kun. Se alguém tem que pedir desculpas, sou eu… Relembrar meu irmão daquele jeito foi um pouco… demais para mim ontem à noite, só isso.

Então eu estava certo.

— Entendo. Tudo bem. Como você tá se sentindo hoje?

— Ah, me sinto bem melhor depois de dormir um pouco. É só que…

— Só que o quê?

Ouvi Akari engolir em seco do outro lado da linha.

— Às vezes, parece que meu coração não aguenta mais… Só isso.

Fiquei sem palavras — era como se a dor dela atravessasse o telefone e me atingisse diretamente. Nenhuma das frases vazias de consolo que passaram pela minha mente pareciam suficientes para preencher aquele vazio. Eu precisava pensar em algo mais significativo, mais pessoal do que meras palavras… mas antes que pudesse dizer qualquer coisa, Akari se apressou em arranjar uma desculpa para encerrar a ligação e esconder sua tristeza.

— Desculpa, preciso voltar ao trabalho. A gente se fala depois, tá?

— Ei, espera um segundo! — Eu soltei sem nem pensar no que diria em seguida; não suportava deixá-la tão abatida. Depois de um momento de hesitação, reuni a voz mais firme que consegui e disse.

— Não se torture com isso, tá bom? Eu prometo que vou encontrar uma solução. Vou dar um jeito de usar o Rollback para que você nunca tenha que passar por toda essa dor. Deixa comigo… e tenta aguentar firme por enquanto, certo?

Por mais que eu tentasse, minhas palavras soavam apenas como promessas vazias. Mas era tudo o que eu podia oferecer a ela naquele momento. Tudo o que eu queria era dar-lhe algum tipo de esperança, uma luz no fim do túnel. Não sabia se esse sentimento havia chegado até ela, mas, depois de um tempo, ouvi do outro lado da linha um som que parecia um riso fraco e desanimado, abafado e levemente nasal.

— Obrigada, Kanae-kun. A gente se fala depois.

Ela desligou. Caí de costas na cama. Ainda não tinha certeza se aquilo realmente era um riso, mas talvez eu tivesse conseguido animar Akari, nem que fosse um pouco. Não que eu esperasse que o efeito durasse muito — ela ainda estava perdida e sozinha em um vazio de tristeza cuja verdadeira profundidade eu não conseguia compreender.

Mas eu queria. Queria entender o quão fundo ia sua dor, para então mergulhar e resgatá-la — custasse o que custasse. Então, o que eu deveria fazer? A resposta era óbvia: eu precisava voltar ainda mais no passado e salvar a vida de Akito. 

Tudo o que eu precisava fazer era desfazer a causa de todo o seu sofrimento, e assim ela voltaria a ser a garota feliz de antes. Ou melhor, nunca teria que passar pela dor de perder o irmão. De repente, senti algo quente e borbulhante crescer dentro do meu peito — um senso de dever, um propósito. Agora, eu tinha uma chama de motivação queimando dentro de mim, me impulsionando a salvar o irmão dela a qualquer custo.

— Eu vou conseguir, Akari. Você vai ver.

Levantei da cama e comecei a pensar em quais seriam meus primeiros passos.

Certo, eu ainda precisava fazer uma boa e velha investigação. Eu ainda não tinha descoberto onde estava e o que estava fazendo na noite de 1º de abril, quando Akito morreu — minha noite anterior havia apagado completamente meu plano de investigar isso hoje. Mas como eu deveria procurar essa informação?

Já tinha perguntado para minha avó e para Akari, mas nenhuma das duas sabia de nada. Eri era uma opção, mas, pelo que minha avó me contou, era improvável que ela soubesse algo também. Não conseguia pensar em mais ninguém que pudesse me ajudar — minha rede de contatos era, admitidamente, bem pequena.

Talvez um pouco de ar fresco me ajudasse a pensar. Desci as escadas e calcei os sapatos, mas, antes que pudesse sair, minha avó me chamou.

— Onde você vai, Kanae?

— Só dar uma volta rápida.

— Bem, não se esqueça de que o velório do menino Hoshina é hoje à noite. Certifique-se de estar em casa para o jantar, está bem?

— Pode deixar, vó — respondi, fechando a porta atrás de mim. 

Eu sabia que andar por aí sem um objetivo definido seria perda de tempo, então meu plano era visitar dois lugares diretamente ligados à morte de Akito: o bar onde ele estava bebendo naquela noite e o terreno baldio atrás da tabacaria onde seu corpo foi encontrado. Eu sabia exatamente onde ambos ficavam, então fazia sentido começar dando uma olhada com meus próprios olhos.

Segui pela rota que levava ao porto até finalmente chegar à Taverna Asuka — apenas para encontrar uma placa na porta deslizante anunciando que estavam

FECHADO HOJE.

Achei que ainda poderia haver alguém trabalhando lá dentro (fazendo inventário ou limpeza, por exemplo), então parecia uma boa ideia ao menos verificar se tinha alguém a quem eu pudesse perguntar sobre aquela noite. Infelizmente, a porta estava trancada, então fiquei sem sorte. Olhei para a placa ao lado da porta e vi que as únicas folgas do bar eram às quintas-feiras — nos outros dias, abriam às 17h. Eu teria que tentar novamente amanhã.

Sem outra opção, deixei o bar para trás e segui para o terreno baldio onde encontraram o corpo de Akito.

Demorei cerca de quinze minutos para chegar. Flores e outras oferendas haviam sido deixadas em homenagem ao falecido: alguns buquês, algumas garrafas de suco. Agora não restavam dúvidas — aquele era o local da morte de Akito. Mas, para um homem que já foi a pessoa mais famosa da ilha inteira, essas homenagens me pareciam um tanto escassas.

O terreno em si estava tão coberto de ervas daninhas que mal dava para ver o chão. Se você se aventurasse um pouco mais para dentro, no entanto, veria um pequeno espaço onde a vegetação tinha sido afastada — provavelmente o local exato onde o corpo foi encontrado. 

Não, esqueça o "provavelmente". Tinha que ser ali. O lugar onde Akito caiu, intoxicado pelo álcool, e encontrou seu fim.

Imaginei seus últimos momentos — seu coração parando, toda a cor esvaindo-se de sua pele — e um calafrio percorreu minha espinha.

Por um instante, pensei se deveria comprar algo para deixar ali como oferenda, mas descartei a ideia tão rápido quanto surgiu. Isso seria o mesmo que aceitar sua morte, e eu não tinha a menor intenção de fazer isso. Na verdade, senti que seria um mau presságio. Além disso, uma perda de tempo. Meu foco agora precisava ser reunir mais informações sobre a noite de 1º de abril.

Deixei o terreno para trás. 

Passei cerca de mais uma hora vagando pela ilha, mas, no fim das contas, não consegui obter nenhuma informação útil. E não era surpresa, considerando que eu nem sequer tentei perguntar às pessoas que encontrei na rua sobre isso. Quem poderia me culpar? Quero dizer, imagine um estranho aleatório abordando você em público, perguntando se você se lembrava de onde ele estava há quatro noites — qualquer um pensaria que ele era maluco. Então, em vez disso, fiquei perambulando pela ilha por um tempo, tentando, sem sucesso, encontrar uma maneira de investigar isso sem precisar abordar desconhecidos do nada. No fim, falhei e desisti.

Sentei-me no muro de contenção e fiquei observando o oceano enquanto pensava no que fazer a seguir. O céu da tarde já estava pintado em tons profundos de vermelho e laranja.

— Bom, vamos ver. Se hoje é dia 5... então isso significa que só tenho mais três rollbacks antes de chegar ao dia 1º de abril, certo?

Isso queria dizer que eu tinha apenas mais dois dias para reunir informações antes de reviver a noite da morte de Akito — e precisava aproveitá-los ao máximo.

Fiquei olhando distraidamente o sol se pôr no horizonte, tentando decidir como usar melhor o tempo que me restava, quando, de repente, um pensamento me ocorreu.

— Espera um segundo.

Não tinha nada a ver com impedir a morte de Akito, mas ainda assim era uma ideia interessante — uma maneira de tirar proveito do fenômeno do rollback no tempo que parecia tão óbvia que eu não conseguia acreditar que ainda não tinha pensado nisso. Se eu estava voltando ao passado, poderia levar comigo todo tipo de informação — eu poderia até "prever" o futuro, de certa forma. E como eu poderia usar essa informação?

Bem, uma das respostas mais óbvias era ganhar muito dinheiro.

É uma das primeiras coisas que a maioria das pessoas diria se perguntadas o que fariam se pudessem voltar no tempo. Apostariam tudo em corridas de cavalos ou comprariam um monte de ações de uma empresa antes dela ficar famosa. Havia muitas oportunidades de apostas de alto risco assim. O único problema era que eu não fazia ideia de como comprar ações ou fazer apostas.

Havia apenas uma opção viável para alguém da minha idade: a loteria.

Eu sabia jogar na loteria, pelo menos, já tinha comprado alguns bilhetes antes. O rollback tornaria ganhar o prêmio principal algo ridiculamente fácil: tudo o que eu precisava fazer era ver os números vencedores mais recentes agora e então apostar nesses mesmos números depois de mais um ou dois rollbacks. Pronto, dinheiro garantido.

...Caramba. Isso pode realmente dar certo.

Engoli em seco. Só a ideia já fez meu coração disparar. Peguei meu celular para conferir os diferentes tipos de loteria disponíveis, só para referência. Eu precisava encontrar uma em que a data limite para apostas e a data do anúncio dos números vencedores estivessem dentro do período do rollback — caso contrário, o plano não funcionaria. Por sorte, encontrei uma que anunciaria os números vencedores hoje — e a data limite para apostas havia sido há apenas três dias, dentro do alcance do rollback. 

Era um jogo simples: bastava escolher cinco números diferentes, e se acertasse todos, o prêmio era de três milhões de ienes. Dinheiro suficiente para comprar um carro bem bacana, e certamente mais do que suficiente para um estudante como eu viver por alguns anos.

Rolei a tela ansioso para ver os números sorteados. Tudo o que eu precisava era memorizar cinco pequenos números, e então poderia garantir uma pequena fortuna para mim. Era mais dinheiro do que eu conseguia imaginar; minhas mãos tremiam enquanto eu lia os números em voz alta várias vezes, tentando fixá-los na memória. Então, de repente, parei.

Será que eu realmente deveria fazer isso?

Uma sensação de vergonha e culpa começou a borbulhar dentro de mim. No fundo, eu sabia que o que estava pensando em fazer não era ético. Sim, seria um jeito fácil de ficar rico rapidamente — mas era certo eu estar pensando em ganho pessoal agora, quando a vida de Akito estava em jogo? Algo me dizia que não. A menos que... talvez isso fosse apenas uma questão de perspectiva moral. Afinal, eu nunca pedi para ser arrastado para esse fenômeno sobrenatural maluco. Então, por que não tentar tirar algum proveito disso...?

Olhei novamente para os números sorteados, mas a culpa já era tão forte que eles nem sequer se registraram na minha mente. E foi exatamente nesse momento, enquanto meus desejos mais egoístas travavam uma luta contra minha consciência, que ouvi uma voz me chamar por trás.

Mesmo que eu não estivesse fazendo nada ilegal, aquilo me assustou tanto que quase deixei meu celular cair no oceano. Virei-me num pulo — era o policial da ilha.

— Uau, que reação exagerada, garoto. Não me diga que tava vendo vídeo impróprio nesse celular, hm? — ele brincou, apoiando o pé no chão e descendo da bicicleta antes de se aproximar.

— Meu Deus, você me deu um susto — reclamei, girando o corpo para que minhas pernas ficassem de volta sobre o chão firme, viradas para a ilha. — Qual é a sua?

— Hahaha... Foi mal, garoto. Não queria te assustar nem nada. Só te vi sentado aí e achei que seria bom bater um papo.

Estalei a língua, frustrado. Como alguém podia ter um timing tão perfeitamente ruim? Era até impressionante.

— Você não devia estar trabalhando? — perguntei.

— Ah, qual é. Conversar com os moradores pra saber como estão faz parte do meu trabalho. Tem certeza de que não tá ressentido por causa do outro dia?

— Não sei do que tá falando.

— Sabe sim. O jeito que aquele detetive do continente ficou te pressionando. Aposto que não foi nada agradável ser tratado como suspeito. Eu queria ter falado algo em sua defesa, mas você sabe como é.

— Espera, quando foi isso?

— Como assim "quando foi"? Foi no dia em que você encontrou o corpo, lembra?

Pelo que constava nas anotações que deixei para mim mesmo no celular, isso devia ter acontecido... na noite do dia 2, certo?

Ou seja, era algo que eu ainda não tinha vivido — faltavam alguns dias para acontecer. Mas eu não queria levantar suspeitas, então fingi que sabia do que ele estava falando e tentei mudar de assunto.

— Certo, claro. Desculpa, tem sido uma semana infernal, sabe? Tudo meio que se mistura — ri, tentando disfarçar. O policial ergueu uma sobrancelha, desconfiado, mas logo aceitou minha desculpa e assentiu.

— Com certeza. Imagino que aquele dia em especial deve ter sido bem traumático pra você, né? Encontrar o corpo dele daquele jeito e ainda ser massacrado com perguntas depois — comentou com um pequeno suspiro. — Ah, e você ficou sabendo que já saíram os resultados da autópsia?

— Sim. Intoxicação aguda por álcool, certo?

— Isso mesmo. Então, a lição aqui, garoto, é sempre conhecer seus limites. Se você for beber até desmaiar e cair na rua nessa época do ano, o frio vai te matar, mesmo que o álcool não mate.

— Ainda bem que eu não bebo, então... Ainda sou menor de idade, caso tenha esquecido — rebati, enquanto olhava casualmente para o celular. Já estava quase dando seis da tarde. Precisava encerrar essa conversa logo e me preparar para o próximo rollback.

— Ah, e mais uma coisa que eu queria te dizer, garoto: faça um favor pra mim e não fique encontrando a irmã do Akito depois que escurecer, tá? Dessa vez eu deixei passar, mas não quero pegar vocês dois quebrando o toque de recolher de novo. Entendido?

Droga. Ele deve ter nos visto, eu e a Akari.

— Er... sim, desculpa por isso. Ela precisava muito conversar ontem à noite...

— Pera aí — vocês se encontraram de novo ontem? Ah, qual é, garoto. Agora você tá querendo causar escândalo.

— Espera. Como assim de novo?

— Vocês também estavam juntos até tarde no domingo à noite, não estavam? — Por um instante, achei que tinha escutado errado.

— Desculpa, você disse domingo à noite? Tipo... 1º de abril? — perguntei, confirmando.

— Sim. Vi vocês dois juntos enquanto fazia a ronda, mas resolvi ignorar. Era por volta da uma da manhã, acho.

Isso não fazia sentido. A própria Akari me disse que não me viu naquela noite depois que nos despedimos no quebra-mar. 

— E você tem certeza de que eram eu e a Akari?

— Bom, não tenho uma foto pra provar, se é isso que quer saber... Mas por quê? Tá querendo me dizer que não era você?

Ele devia estar enganado. Se eu aceitasse o depoimento dele como verdade, isso significaria que a Akari mentiu para mim — e eu sabia que ela jamais faria isso. O mais provável era que o policial tivesse confundido as coisas... e ainda assim, por algum motivo, eu não conseguia dizer isso a ele com total certeza.

Lembrei de como, na noite anterior, perguntei à Akari se ela sabia onde eu estava na noite do dia 1º e de como ela ficou visivelmente abalada com a pergunta. Isso não era uma prova incontestável de que ela estava mentindo, mas me deixou em dúvida sobre em quem acreditar. Antes que pudesse organizar meus pensamentos, o sino das seis horas começou a tocar. 

Greensleeves.

Isso era ruim. Perdi a noção do tempo e deixei a conversa se estender até o limite — e agora, estava prestes a sofrer um Rollback bem na frente de alguém.

Desesperado, tentei me preparar para o que estava por vir — se hoje era dia 5, então eu estava prestes a ser enviado de volta para a noite do dia 3, certo?

— Ei, qual é o problema, garoto? Por que esse pânico todo de repente? — perguntou o policial.

Mas já era tarde demais.

 


Este Capítulo foi traduzido pela Mahou Scan entre no nosso Discord para apoiar nosso trabalho!


 

 



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