Volume 2
Capítulo 174: Alta velocidade
A água turbulenta que ameaçava virar a embarcação continuou até que eles enfim atravessassem o enorme penhasco que se estendia por mais de trezentos metros. Foi nesse momento que o pequeno grupo vindo da distante Cidade da Fronteira do Caos avistou a praia pela qual haviam passado no dia anterior ― que na época contava com banhistas ―, pouco antes de entrar em Falésia.
Então, quando as ondas revoltas se acalmaram, o navio virou e apontou a proa em direção às águas mais profundas. À medida que o sol levantava, derramando uma luz dourada sobre o continente, o veleiro ganhava velocidade, instigado por poderosas rajadas que eram “dobradas” por duas praticantes.
Agora que as coisas haviam se acalmado, Xiao Shui pensou que seria o momento perfeito para tirar o excesso de água que ficou grudado no corpo. Ali mesmo, sobre o convés, ela torceu o cabelo como se fosse uma peça de roupa ― um gesto que também foi repetido por Corina. E quando as gotas pararam de escorrer de seus fios azuis, a jovem se preparou para encontrar uma cabine onde pudesse trocar de roupa.
Mas antes que ela se afastasse, Ning a chamou:
― Olha, pequena Shui! ― disse ele, apontando para o mar. ― Estamos passando ao lado dos corais, como eu pensei.
Aquilo a fez esquecer do corpo encharcado e ela decidiu se juntar a ele para contemplar a paisagem próxima. Algo que foi copiado por Corina que, ao escutar o sussurro abafado do colega, decidiu andar até a beira do navio.
Nenhuma das duas tinha a menor ideia do que seria um “coral”, mas suas mentes estavam borbulhando de possibilidades, imaginando as belezas que o tão falado oceano guardava.
Ainda assim, a imaginação de ambas foi pobre, comparada a grandiosa apresentação que abriu diante de seus olhos, revelada pela luz áurea vinda do alto.
O que se mostrou foi um enorme agrupamento do que, para as meninas, pareceu serem pedras pontudas, de formatos diversos e cores tão vivas que daria inveja a um arco-íris, repleto de amarelo, laranja, rosa e outras tonalidades. A formação se estendia por centenas, talvez milhares de metros, ao ponto de que mesmo os olhos treinados das jovens praticantes não conseguiam enxergar o fim.
Como havia sido dito por Ning mais cedo, o coral formava uma gigantesca baia que, curiosamente, parecia ser ainda mais azul do que o resto do oceano, um azul profundo, escuro e perigoso.
A imponente visão fez as meninas temerem o que se escondia além do cinturão de pedra, pois elas escutaram o amigo falar sobre os monstros nefastos que tinha por ali.
Neste momento, ambas as praticantes rivais estavam penduradas na beira da embarcação, com metade do corpo curvado para baixo, assistindo a variedade extraordinária de peixinhos que nadavam entre os corais, sem o medo aparente de um terrível predador aparecer a qualquer instante.
As duas, apesar de preservarem certa distância entre si, exibiam a mesma expressão de divertimento e fascínio. É claro que, com pequenas mudanças. Enquanto Shui ria e apontava à vontade, Corina era um pouco mais contida. Porém, ainda assim, os peixes coloridos as faziam rir igualmente. E também, ambas prestavam extrema atenção no que Ning tinha a dizer, já que ele parecia saber mais.
― Você sabia ― começou o Alquimista, usando um tom didático ― que na verdade esses corais são seres vivos?
― Sério?! ― Xiao Shui olhou com surpresa para o colega. Um gesto que foi repetido por Corina, que ficou de queixo caído. ― Mas eles não estão se mexendo.
― Sim, sério. Eles são formados por pequenos animais que costumam formar colônias. Ah! E está vendo aquele peixe ali? Aquele pequenininho, vermelho e que tem um “chifre” em forma de raio?
As duas olharam para a água e procuraram até encontrar o animal que batia com a descrição. E quando enfim encontrou, Shui falou:
― Estou! ― Mas Corina ainda continuava pendurada, tentando encontrar o pequenino terrível.
― Então. Ele pode parecer inofensivo e até bonitinho, mas é mais perigoso e perverso do que uma Besta Demoníaca. Ele usa o chifre para entrar nos pés dos banhistas e, de lá, nadam através da perna até os rins e os devora.
― Que horror! ― Xiao Shui se afastou da borda do barco num sobressalto, quase como se estivesse com medo do animal saltar para dentro do barco e pegá-la. ― Isso acontece de verdade?
― Não! Mas devia ver sua cara. Parecia uma pirralha assustada. Ahahaha! ― Xiao Ning caiu na gargalhada.
Por outro lado, a rígida filha do 9º Ancião exibiu uma expressão severa, com os lábios estufados e os olhos estreitos. Ela colocou as mãos sobre a cintura, de uma maneira a aumentar sua presença, bufou algumas vezes, e falou:
― Isso não teve graça!
―Ahahah! ― Porém, isso só serviu para Ning se divertir mais com sua reação. ― Pelo menos a parte do coral era verdadeira ― disse ele, ainda exibindo um sorriso. ― Ei, Corina! Junte-se a nós.
― Eu... estou bem aqui ― respondeu a jovem de cabelo dourado, preferindo se manter em isolamento.
O Grã-alquimista não insistiu, pois preferiu respeitar a decisão da nova integrante. Seja como for, nas horas seguintes ele continuou apontando para o oceano, contando curiosidades e histórias. Mas que dessa vez foram acompanhadas por desconfiança e muita suspeita.
Seja como for, o navio continuou rumando em direção ao enorme “Vazio” que marcava o fim do mundo.
Enquanto isso, do outro lado do continente central, em uma cidade cercada pela perigosa Floresta das Mil Perdições e vizinha da monumental Montanha Ancestral de Jade...
O tio Chang e o Patriarca Enlai estavam no salão de reuniões que ficava na casa do Ancião, sentados um de frente para o outro em profundo silêncio.
O novo ano já havia entrado em seu segundo mês e a recuperação do tio Chang após os ferimentos que recebeu e a cirurgia que passou estava quase completa. Tanto que, apesar de ainda estar mais magro do que o normal, ele não apresentava mais o rosto pálido e a expressão abatida. Mostrava-se tão desperto e firme quanto costumava ser.
Neste momento, enquanto os dois contemplavam o silêncio, uma mulher de cabelo curto e expressão rígida, cujo rosto se fazia marcado por rugas de severidade, trajando roupas sem brilho ou charme pessoal, entrou na sala.
― O que aconteceu, Patriarca, para você me chamar tão cedo? ― perguntou a 7ª Anciã Huo, cujo cultivo de 2ª Camada apresentava traços fortes de uma personalidade pouco flexível. ― Aliás, por que estamos nos reunindo aqui de novo?
― Verdade ― comentou o Tio Chang com um tom ranzinza. ― Vão para outro lugar!
Mas o Patriarca decidiu ignorá-lo.
― O chá daqui é bom ― respondeu o grandioso Líder, que pegou uma xícara sobre a mesa em sua frente e bebericou o líquido fumegante no interior. ― Mais importante do que isso. Precisamos discutir sobre a colheita na montanha que vai acontecer semana que vem. Eu pensei em esperar pelo retorno de Ning, mas parece que as coisas mudaram. Na verdade, recebi uma carta bastante curiosa de Qiao.
E então, Enlai contou o que estava escrito no manuscrito. E quando terminou, a raiva e frustração da Anciã preencheu a sala.
― Aquele irresponsável! ― praguejou ela. ― Por isso fui contra em deixá-lo responsável pelo Alquimista. Eu deveria ter ido. ― A mulher de baixa estatura e, no momento, rosto vermelho, achou um tremendo absurdo a atitude do colega em tomar uma decisão tão importante por conta própria. Algo que deixou bem claro por suas acusações e ameaças finais. ― Vou falar para a mulher dele. Ah, se vou! Do que o marido anda aprontando.
Ela reclamou e protestou por alguns instantes. E quando finalmente começou a se acalmar, Chang achou que seria um bom momento para apresentar sua contraditória opinião.
― Bem, se o que ele falou for verdade, talvez essa seja uma chance excelente para a Família.
― Está de acordo com isso? ― grunhiu a 7ª Anciã. ― Você já deve ter ouvido que a situação naquele reino não é das melhores. E sua filha está com aqueles dois irresponsáveis. Deveríamos enviar uma equipe para trazê-los de volta.
― É claro que estou preocupado! ― retrucou o tio Chang, demonstrando leves traços de irritabilidade. ― Mas confio em Qiao e sei que ele irá recuar se as coisas ficarem complicadas. E não é tão fácil para uma equipe se infiltrar num lugar igual aquele.
― Seja como for ― o Patriarca achou melhor se intrometer ―, não há muito que possamos fazer no momento, a não ser torcer pelo retorno de ambos em segurança. Mas por hora, precisamos discutir sobre a colheita de Ervas Espirituais...
E apenas quando o assunto parecia que voltaria para o tópico principal, outra pessoa surgiu na entrada do recinto, roubando a atenção do grupo. Tratava-se de uma jovem de cabelos ruivos e sardas no rosto, que carregava um punhado de livros nos braços. Seus olhos eram claros e sua postura um tanto quanto apagada.
― O que foi, Camila? ― perguntou o tio Chang, interrompendo a conversa. ― Posso ajudar em algo?
― Na verdade... ― sua voz saiu falha e hesitante. Mesmo estando sob a “proteção” do maior prodígio da Família, ainda não se sentia confiante o bastante para se impor na presença daquelas figuras ilustres. ― Eu ouvi que o Patriarca e os Anciões estavam fazendo uma reunião aqui e... pensei em pedir uma coisa.
― Pode falar ― disse Enlai de maneira receptiva.
― Bem... eu soube que estão se preparando para as colheitas de começo de ano e pensei em perguntar se poderiam guardar algumas Ervas Espirituais caso o Xiao Ning não consiga voltar a tempo? Ele estava bastante ansioso para participar desse evento e subir a montanha. Disse que queria encontrar algumas Ervas para tentar Composições novas.
― Ah! Na verdade, é sobre isso que estávamos para discutir ― comentou o Patriarca.
Mas antes que ele pudesse continuar, a Anciã Huo o interrompeu.
― Esses livros aí, são coisas dele? ― perguntou à Camila.
― Sim! ― respondeu a jovem Mundana. ― Ele disse que vai fazer novas Composições para ajudar a aumentar o cultivo da Família e me falou para ler alguns livros sobre Ervas Espirituais e plantas. Só é uma pena que não tenha muita coisa na biblioteca. Ah! Quer dizer... eu não estou reclamando...
― É bom saber que ele está tão dedicado ― comentou o Patriarca, interrompendo-a. ― Por isso tenho pensado em guardar a maior parte das colheitas deste ano. Pelo menos 70%.
A informação pegou as pessoas na sala de surpresa. Xiao Huo olhou para o grande líder dos Xiao com olhos bem abertos e perguntou:
― Você tem certeza? Isso pode chegar a valer metade das nossas rendas anuais. Com as dívidas que temos, não acho que seria sábio fazer isso.
― No momento, precisamos pensar no futuro ― retrucou Enlai. ― Xiao Ning é, sem dúvida, nossa melhor chance de prosperar. Se ele precisar dessas Ervas no futuro, precisaremos comprá-las de qualquer jeito. Então, vamos deixar para ele julgar o que é e o que não é útil para sua Alquimia. E mesmo que seja por um preço mais baixo, poderemos vender o que sobrar depois. Além do mais, se eles conseguirem retornar em segurança e obterem sucesso em sua empreitada, não precisaremos nos preocupar com as dívidas.
Os argumentos do Patriarca, tornou difícil para Huo retrucar. Mas ainda existiam muitos detalhes que eles precisavam debater.
Independentemente disso, o debate entre os maiores nomes dos Xiao estava para ganhar uma nova fase e Camila, percebendo isso, achou que seria melhor sair dali. Dessa forma, despediu-se, com respeito, de cada um presente e se preparou para partir. Mas quando se virou, o Tio Chang percebeu algo que o obrigou a pará-la.
― O que você quis dizer com: “subir a montanha”?
― Como? ― A jovem olhou para ele de maneira confusa.
― Você disse que Ning estava ansioso para “subir a montanha”. O que isso quer dizer? É só uma forma de falar ou ele estava planejando algo a mais?
― Não... você sabe... ― Camila ficou instantaneamente mais nervosa. ― É só jeito de falar. ― Sua respiração ficou mais pesada à medida que olhava para os lados. ― Ele vai subir... ou ia subir quando fosse pegar as Ervas.
― Camila... ― disse o tio Chang com uma voz arrastada e um tom pesado, como se simplesmente mencionar o nome da moça em sua frente fosse uma bronca.
E aquilo surtiu efeito, pois a jovem de sardas no rosto se encolheu toda antes de continuar.
― Se eu falar, ele vai ficar com raiva de mim ― justificou ela, tentando se defender. Tinha falado demais e agora era tarde para fingir inocência.
― Eu vou ficar com raiva se você não falar ― contrapôs o 9º Ancião.
Apesar da fala do chefe da casa, Camila ainda hesitou. Mas quando viu aqueles três olhares pesados a mirando, ela não conseguiu mais resistir e abriu a boca:
― Ele... ele falou que quer chegar no topo da montanha para descobrir a origem dos raios verdes.
― Aquele imbecil! ― ralhou o Tio Chang, que desejou estar na presença do afilhado para lhe dar uma boa bronca.
― Francamente. Aquele menino não teme pela própria vida? Quanta irresponsabilidade! ― comentou Xiao Huo.
A conversa parecia pronta para ganhar um novo rumo. Mas antes disso acontecer, o Patriarca resolveu se manifestar.
― A gente pode tratar desse assunto quando ele retornar, mas por enquanto vamos focar no que de fato importa. ― Em seguida, ele olhou para Camila e falou: ― Se você souber de alguma Erva Espiritual que Ning deseje, por favor, conte-nos.
― Eu farei isso ― prometeu a ajudante do Alquimista, percebendo que essa era sua chance de fugir dali antes que fosse mais comprometida.
Assim sendo, ela se despediu outra vez e saiu a passos largos. Por outro lado, os três líderes permaneceram no local para discutir os termos da colheita de começo de ano.
Niveis do Cultivo: Mundano; Despertar; Virtuoso; Espirituoso; Soberano do Despertar; Monarca Místico; Santo Místico; Sábio Místico; Erudito Místico.