Um Alquimista Preguiçoso Brasileira

Autor(a): Guilherme F. C.


Volume 1

Capítulo 96: Um objetivo maior.

Ao fim da disputa entre Qin Yanyu e Xu Guiren, os membros da Família Qin aplaudiram e comemoraram sem conter as vozes, apesar da vencedora sair antes mesmo de ser anunciado o resultado.

A partida não durou muito e isso deixou um gosto amargo na boca de alguns, em especial os membros dos Xus que se desapontaram com a performance desatenta apresentada pelo companheiro. No entanto, como o resultado final já era antecipado por muitos, a conclusão rápida foi bem-vinda pois assim a próxima batalha aconteceria logo e a segunda etapa, na qual os fortes começariam a lutar entre si, chegaria.

Os juízes se reuniram e em poucos segundos ficou decidido que quem julgaria a disputa seguinte seria um membro dos Xiaos.

O árbitro, de segunda camada do Reino Virtuoso, que em dias normais passava o tempo treinando  e protegendo o Salão dos Aprendizes, subiu no palco e anunciou:

― O próximo embate será entre Wu Lin e Zhan Cheng Gong.

Embora pudessem ver os nomes dos participantes na tabela estendida entre as pilastras de suporte do tablado, quando ouviram o pronunciamento oficializando a partida, o público aplaudiu e comemorou como se estivessem ouvindo uma novidade.

Os integrantes da Família Zhan representaram bem o seu grupo quando começaram a ovacionar e chamar pelo nome daquele que se responsabilizaria por trazer a vitória para o seu lado. Entretanto, foram os cidadãos comuns que mais se entusiasmaram. Era revigorante ter alguém sem origem privilegiada fazendo parte de um evento tão importante.

Ao serem convocados, o primeiro a chegar no palco foi Zhan Cheng Gong que estava esperando perto da arena. Sabia que sua luta seria a próxima, então desceu do tablado e ficou aguardando até que seu nome fosse anunciado.

Embora não fosse o mais forte de sua Família, ele tinha um papel importante nessa competição, pois era o mais jovem entre todos os selecionados para participar do Festival da Geração do Caos. Com seus quatorze anos de idade, caso conseguisse ganhar ao menos uma partida, seria citado e lembrado no futuro como uma promessa a se observar de perto.

Ele não era uma pessoa vaidosa, desesperada por atenção, mas entendia a importância que esse momento poderia ter em sua vida. Seu cultivo não se comparava aos seus veteranos que estavam a passos largos a sua frente, contudo, foi por ter um talento promissor que acabou sendo selecionado para representar os Zhans e era por isso também que seus atos estavam sendo observados de perto.

De rosto pueril, estatura mediana e corpo ainda em desenvolvimento, Zhan Cheng Gong se assemelhava a um garoto comum que embora não fosse um grande praticante de atividades físicas, também não era um sujeito esquelético. Dotado de olhos castanho-claros, cabelo curto, muito bem aparado, e roupas combinando, era possível notar um cuidado especial com a aparência por sua parte.

Parado no meio da arena de braços cruzados, ele, que não portava arma, aguardou pela chegada da adversária, mantendo uma pose confiante e não se deixando abalar pela opressão do público.

Wu Lin era uma das mais antigas integrantes da Fundação Quatro Pilares. Conseguiu entrar na instituição quando tinha treze anos, mas antes disso foi recusada duas vezes. Por já ter alcançado os dezoito anos de idade, essa era sua última chance de se provar e participar do Festival da Geração do Caos e era também a primeira vez que teve a oportunidade de ser escolhida como uma das representantes da Fundação.

Ela era uma garota simples e que para esse evento tão importante havia escolhido sua melhor peça de roupa, um conjunto amarelo-escuro com estampas floridas na parte das costas e desbotado nas pontas. Sem dinheiro para comprar armaduras refinadas ou sequer um pedaço de lata para proteger o busto, seu único armamento era uma espada vulgar, adquirida na instituição.

Wu Lin teve certa dificuldade para alcançar o palco devido ao amontoado de pessoas que se colocavam em sua frente, bloqueando o caminho. Quando subiu na arena, ela foi atravessando o piso e indo em direção ao oponente, com uma mão estendida, como se para cumprimentá-lo, mas ao notar o olhar estranho no rosto de Cheng Gong, meio sem jeito, abaixou o braço, retrocedeu alguns passos, mantendo distância entre os dois, e fingiu que nada tinha acontecido.

Havia visto Xu Guiren fazer o mesmo na partida anterior e pensou que era uma prática comum saudar o oponente antes da luta começar. Contudo, talvez estivesse errada.

Parada sobre o piso de madeira, ela olhou para baixo, mirando os próprios pés, depois para os lados, sentindo-se oprimida pelos milhares de olhos mirando aquela direção, e então, voltou a olhar para baixo, fingindo estar verificando o estado de sua espada. Com seus quase um metro e oitenta de altura, era difícil não reparar o nervosismo estampado em seu rosto.

Wu Lin olhava para os lados a todo instante e parecia não saber o que fazer com as mãos. Num primeiro momento, segurou o punho da espada, mas logo após começou a esfregar as mãos na roupa para secar o suor. Ao perceber o que estava fazendo, disfarçou, arrumando a camisa, fingindo que essa estava torta. A luta ainda não havia nem mesmo começado, mas ela se mostrava ofegante, piscando muito, inquieta.

O juiz, ainda em cima do palco, preparado para autorizar o começo da partida, olhou de um para o outro e perguntou:

― Vocês estão prontos?

Agindo sem pensar, Wu Lin puxou metade da espada para fora da bainha, expondo o fio gasto e repleto de pontas cegas no gume, mas assim que percebeu o seu erro, tornou a embainhar a arma. Por um instante, pensou que já tinha começado.

― É... Sim, eu... eu estou pronta. ― grunhiu ela, lutando para manter a compostura.

Por outro lado, Zhan Cheng Gong apenas balançou a cabeça, expressando sua resposta.

Recebendo a confirmação dos dois lados, o sujeito encarregado de fazer o julgamento deixou o palco e se posicionou a uma distância segura antes de declarar:

― A disputa entre Zhan Cheng Gong, 6ª Camada do Reino Mundano, e Wu Lin, 6ª Camada do Reino Mundano, começa agora.

No instante em que a autorização para o início da partida foi dada, ela, que representava a Fundação Quatro Pilares, sacou a espada da bainha, expondo o metal coberto por cicatrizes profundas que marcavam todo o seu corpo e exibindo as imperfeições e amassados. Seus braços tremiam, mas não por medo ou empolgação. O nervosismo era tamanho que os nervos pareciam se agitar, respondendo a sua ansiedade.

Zhan Cheng Gong também não perdeu tempo e logo no primeiro segundo iniciou seu ataque. Pretendia mostrar sua superioridade e sobrepujar a adversária de um modo esmagador e unilateral; só assim seria capaz de provar a grande promessa que era.

A outra parte podia ser mais velha, contudo, ele duvidava possuir a mesma experiência. Além do mais, tratando-se de cultivo, estavam quase empatados, tirando o fato de Wu Lin estar a um passo de avançar para a 7ª Camada do Reino Mundano ― ao menos, foi isso que ouviu antes de subir na arena.

― Farpas Penetrantes!

Cheng Gong bateu a sola do pé direito contra o piso da arena e a madeira que constituía o palco sólido ondulou feito uma substância maleável, passando a vaga impressão de ter perdido sua característica original. De repente, lascas com mais de dez centímetros de comprimento saíram do chão e dispararam contra a adversária como se fossem dardos sendo atiradas.

Embora tenha sacado sua arma e parecesse estar preparada para lutar, Wu Lin foi pega de surpresa pelo golpe. Segurando a espada com as duas mãos, seus braços vacilaram, hesitantes em agir, e quando percebeu que precisava fazer algo, as Farpas já estavam ao seu alcance.

Com um movimento rápido e desajeitado, que mais chegava a ser desespero do que uma tentativa real de se defender, ela balançou o corpo da espada de lado, tratando-a feito um bastão. O metal se chocou contra algumas das lascas que se partiram ao serem bloqueadas, mas a força apresentada pelos fragmentos de madeira era tamanha que a arma ricocheteou e quase escapou de suas mãos.

Wu Lin foi pega desprevenida e de alguma forma conseguiu defletir a maior parte das Farpas atiradas em sua direção, enquanto outras erraram o alvo, passando a poucos centímetros de sua posição. No entanto, quando perdeu o controle da espada, obrigando-a a segurar a empunhadura usando apenas uma das mãos, sua guarda foi aberta e ficou vulnerável.

Ela nem ao menos teve tempo de reagir quando três lascas a atingiram. Uma  delas perfurou logo abaixo de sua clavícula, do lado direito do tórax, e a outra atingiu sua perna esquerda, na canela, enquanto a terceira raspou na região externa do abdômen.

AHHHH!

Wu Lin gritou e, no susto de tentar se proteger e acabar sendo atingida, caiu de costas no chão. Foi um golpe de azar. Apesar de ter tentado se preparar, estava tão desatenta que acabou sendo pega por algo que podia ter evitado.

Ainda caída, ela levou a mão livre até o fragmento alojado abaixo da clavícula e, sem pensar muito no que estava fazendo, com um puxão o arrancou à força. Sangue escorreu do ferimento aberto, manchando sua melhor camisa. Não parecia ser algo grave, mas a dor pungente era legítima. E embora tenha extraído o pedaço de madeira, podia sentir restos de estilhaços penetrando o machucado, como se fossem agulhas devorando sua carne.

A ação tinha sido imprudente e talvez arriscada, visto que não conhecia a verdadeira essência da habilidade do oponente, no entanto, ainda assim, Wu Lin pretendia tirar a outra lasca presa na perna ― não podia lutar com aquilo fincado na canela. Porém, Zhan Cheng Gong tinha pressa em vencer e lançou o ataque seguinte.

Sabendo que se fosse atingido por aquilo poderia ser o seu fim, ela abandonou qualquer tentativa de se proteger ou defletir o golpe e rolou para o lado, evitando por pouco as Farpas Penetrantes. Sem se importar em manter a compostura ou qualquer coisa do tipo, levantou-se aos tropeços e saiu correndo na direção oposta de seu oponente, mantendo o máximo de distância possível.

A luta tinha acabado de começar, mas Wu Lin podia sentir um cansaço equivalente ao de uma maratona. Sua mente ansiosa e a pressão colocada em si mesma para vencer estava lhe afetando e sua desatenção era a maior prova disso. Precisava se concentrar e tomar o controle da situação. A derrota não era uma opção, pois se isso acontecesse, os esforços que a levaram a estar ali, sobre aquela arena, teriam sido em vão.

Estava determinada a conquistar a vitória e não aceitaria nada menos do que isso.

A empunhadura da espada de Wu Lin havia se quebrado há muito tempo e para consertar o dano ou ao menos tornar mais fácil de segurá-la, no lugar em que antes existiam dois pedaços de madeira polida fixadas no metal, foi enrolado um fio de barbante. Porém, empunhá-la continuava sendo uma tarefa difícil e dolorida devido ao mal acabamento da espiga que estava repleta de imperfeições, desnivelamentos e saliências cortantes.

É claro, poderia ter pagado um artesão para consertar o estrago ou comprado outra nova, mas não tinha dinheiro para tal. Além do mais, essa era a segunda espada que havia adquirido na Fundação Quatro Pilares e diferente do que acontece nas Famílias, não podia sair pegando quantas armas quisesse.

Se não fossem os diversos calos e a pele da mão tão dura quanto as de um homem em cuja vida foi dedicada ao trabalho braçal, sequer conseguiria empunhar a espada por mais do que alguns minutos.

Porém, já estava tão acostumada às imperfeições da espiga ou ao barbante mal enrolado que mais uma vez voltou a segurar o punho da arma com firmeza. Ela havia se ferido por causa de sua desatenção, mas agora se prenderia a sensação áspera esfolando sua pele e tentaria o seu melhor para ignorar a tensão que sentia e o nervosismo; sacrificaria o tanto quanto fosse necessário para alcançar o seu objetivo.

― Eu não tenho nada contra você, mas... ― disse Zhan Cheng Gong, cuja voz soou firme e decidida. ― Pretendo acabar com isso rápido.

Ele mais uma vez bateu o pé contra o chão e o piso da arena tremeu, criando pequenas ondulações que morreram após se espalhar por poucos centímetros do ponto de origem. Embora a madeira continuasse intacta, farpas surgiram de repente e dispararam contra o alvo.

Ao ver o ataque do oponente voando em sua direção, sem qualquer hesitação, Wu Lin arrancou a lasca presa na perna e brandiu a espada, preparando-se para interceptar a técnica. Ela balançou a lâmina, executando um movimento diagonal, e rugiu a plenos pulmões, agindo como se o  ato pudesse calar os anseios que perturbavam sua mente e o urro lhe desse a força necessária para vencer o obstáculo.

― Corte Espiritual!

Uma lâmina com aproximadamente trinta centímetros de envergadura e em formato de meia lua, que emitia um fraco brilho amarelado e cujo corpo passava uma vaga sensação de translucidez, saiu da espada e atravessou a arena, indo de encontro às Farpas.

As duas habilidades se colidiram e o Corte Espiritual avançou, destruindo parte das lascas que se opunham à sua trajetória. No entanto, a técnica se provou fraca e bastante volátil quando a lâmina começou a perder Energia e apresentar rachaduras ao longo do corpo semitransparente.

Antes de sequer percorrer metade do caminho até o rival, a habilidade usada por Wu Lin se despedaçou, expondo uma fraqueza preocupante em sua estrutura. Além do mais, as Farpas cobriam uma área significativa e a despeito do obstáculo que atrapalhou o avanço de algumas, muitas outras prosseguiram rumo ao alvo.

Wu Lin entendia a própria fraqueza e não ficou surpresa ao ver sua técnica sendo quebrada. Então, sem pensar duas vezes, lançou outro Corte Espiritual no mesmo sentido do primeiro e aproveitando a rota aberta pela segunda tentativa, avançou em direção ao adversário, conseguindo evitar com sucesso o corredor de lascas que se formou durante sua investida.

Seu ataque direto a permitiu seguir em linha reta enquanto fugia da trajetória tomada pela habilidade do oponente e isso lhe deu a vantagem de alcançar mais rápido o rival, dispensando maiores desvios, como seria o caso se precisasse se esquivar.

Quando a chuva de farpas passou, sem oferecer o menor risco, ela brandiu a arma e cortou em frente, tentando acertar Zhan Cheng Gong, o qual, por sua vez, não demonstrou medo ou surpresa ao ser confrontado pelo contra-ataque e conseguiu evitar o metal dentado meramente saltando para o lado.

Wu Lin não desistiu e deu início a uma sequência de golpes, balançando a arma não tão cortante assim para cima e para baixo, cortando na horizontal e na diagonal, enquanto mantinha a ofensiva, pressionando o oponente da melhor forma que sabia.

Entretanto, ela não possuía nenhuma maestria. Seus movimentos eram rudimentares e toda vez que exagerava na força, quase perdia o equilíbrio. Seus braços se mexiam desordenados e os pés avançavam sem qualquer critério, às vezes dando um passo maior do que deveria e em outras demorando para prosseguir. Ela era uma amadora, semelhante a uma criança que tenta imitar os gestos de um adulto empunhando um simples graveto.

Wu Lin possuía a força necessária para brandir a arma pesada e seguir atacando mesmo quando perdia o equilíbrio. Porém, faltava-lhe destreza, conhecimento e muita prática. O objeto que portava não cabia em suas mãos, carecia de familiaridade e uma intimidade que só pode ser obtida após anos de treinamento.

E foi justamente por causa desses aspectos apresentados pela adversária que Zhan Cheng Gong seguiu evitando os ataques sem precisar se preocupar ou manter uma maior atenção. Ele nem ao menos se deu ao trabalho de tentar se afastar, apenas balançava o corpo de um lado para o outro, assistindo a espada usada como bastão errando por uma margem significativa, enquanto aguardava pelo momento de executar o ataque final.

E essa oportunidade veio quando Wu Lin, aflita por não conseguir alcançar a outra parte, decidiu se arriscar e usar sua Técnica de Combate:

― Corte Espiritual! ― bradou.

Essa era uma habilidade tão básica que era usada pelas Famílias para treinar os discípulos imaturos que estavam dando os primeiros passos no caminho do cultivo. Crianças de dez anos a usam pois não existe qualquer risco mesmo se atingir outra pessoa. Apesar da Energia Espiritual criar uma “lâmina”, o gume não é capaz de cortar sequer uma folha de papel.

Porém, Wu Lin a usava como se fosse a habilidade mais poderosa do mundo e o motivo para isso era que em todos os seus anos na Fundação Quatro Pilares jamais aprendeu a usar outra técnica. Ela não possuía nenhum talento para cultivar, lutar ou aprender. Suas únicas qualidades, a qual lhe permitiu ser uma das selecionadas para participar do Festival da Geração do Caos, eram a determinação inabalável, a teimosia de não se render, a resistência anormal e o ânimo colocado em cada uma das tarefas a serem realizadas.

Entretanto, foi justamente o ânimo excessivo que a traiu naquele instante, quando se permitiu usar toda a força dos membros ao desferir o ataque.

Ao cortar em frente enquanto executava sua Técnica de Combate, Wu Lin exagerou na movimentação e não manteve o mínimo de prudência ou precaução ao balançar a espada, depositando todo peso do corpo naquele golpe, acreditando que isso poderia mudar o rumo dos acontecimentos.

A trajetória foi tão simples que Zhan Cheng Gong sequer precisou evadir ou aumentar a guarda. Tudo o que ele fez foi desviar um passo para o lado e o Corte Espiritual junto do metal sem fio atravessou o vazio, errando o alvo por uma margem significativa.

Wu Lin percebeu o erro tarde demais, quando o peso da espada puxou seu corpo para frente e a ponta da arma se chocou contra o chão da arena. Com o equilíbrio afetado e o flanco direito exposto, ela tentou se recuperar, retomando uma postura defensiva, mas para seu azar, não teve tempo.

Notando o descuido da adversária, Cheng Gong, que apesar de não ser um perito, sabia muito bem aproveitar uma oportunidade e então, no mesmo sem pensar muito na próxima ação, bateu o pé contra o piso e entoou:

― Solo Ondulante!

De repente, toda a arena começou a drapejar, tremulando feito uma bandeira erguida no alto de um mastro, exposta a temporais e ventanias descomunais. Como se tivesse sido alvo de um impacto profundo, o piso de madeira ondeava, sendo o ponto de origem o local em que o pé de Cheng Gong se chocou contra o chão e perdendo força à medida que se afastava.

Wu Lin, que estava próxima do rival quando o ataque desnorteante começou, teve a estabilidade abalada e, ainda segurando a espada com uma das mãos, caiu de costas numa postura bastante desajeitada; ficar de pé era como tentar andar na superfície de um lago furioso.

Foi um movimento simples, executado sem grande esforço, mas que bastou para subjugar e quebrar qualquer tentativa de conservação ou autopreservação da oponente. E então, finalizando a façanha, tirando proveito do momento que criou, Zhan Cheng Gong mais uma vez bateu o pé contra o piso de madeira e invocou suas Farpas Penetrantes.

A despeito do piso que se mantinha intacto, dezenas de pequenas lascas se manifestaram e todas voaram ao mesmo tempo contra a garota indefesa, caída no chão.

Sem ter muito o que fazer, Wu Lin ergueu os braços na frente do rosto e tentou se cobrir da melhor maneira possível. A curta distância entre o ataque e ela tornava impossível uma fuga e sua única escolha era torcer para resistir até o final.

As Farpas caíram feito chuva, penetrando sua pele desprotegida. Talvez, se estivesse usando uma armadura igual a tantos dos membros das Famílias, conseguiria se safar sem grandes problemas, afinal, não era uma técnica tão poderosa. Os espinhos adentravam apenas poucos centímetros em sua pele, nada que pudesse gerar um real perigo, mas a aflição por ser atingida por diversos pedaços irregulares de madeira era lancinante e os ferimentos se somavam, piorando o estado geral da situação.

Num primeiro momento, ela gritou de dor, como se o guincho fosse uma espécie de mantra capaz de abrandar o sofrimento e a impedisse de perder a consciência perante a impiedosa chuva. Porém, quando sua garganta passou a partilhar do sofrimento pungente, travou os dentes e buscou com todas as forças suportar a agonia.

Em um instante, aquela que era sua melhor roupa festiva foi coberta por rasgos e manchas vermelhas. Sangue escorria dos ferimentos abertos, maculando seus membros, e seu corpo foi revestido por lascas amarronzadas, deixando-a semelhante a um ouriço-terrestre.

Wu Lin ainda se mantinha desperta, mas seu estado era deplorável. Sua respiração estava pesada de uma maneira que se fazia possível ouvi-la arfando. Apesar de não ter perdido a consciência, sentada no chão, ela parecia paralisada com os braços cruzados erguidos na frente do rosto, como se temesse relaxar e acabar sendo alvo de outro ataque ou simplesmente estivesse sentindo dor demais para mexer os músculos.

Zhan Cheng Gong a olhou de cima, mantendo a postura e superioridade. Percebendo a difícil situação enfrentada pela oponente, bufou uma vez antes de se virar e começar a se afastar. Enquanto se distanciava, mirou o juiz responsável pela partida e falou:

― Essa disputa já acabou. Ela não aguenta mais lutar. ― declarou, falando no lugar da rival.

A princípio, o integrante dos Xiaos pareceu concordar, pois espiou a figura ensanguentada caída sobre a arena e ameaçou subir no palco para ter uma melhor noção do contexto. Porém, quando estava para avançar pelo pequeno lance de degraus, deteve-se e recuou.

A ação chamou a atenção de Cheng Gong que, franzindo o cenho, virou-se e olhou para trás.

Wu Lin estava de pé, segurando a espada em uma mão e lutando para manter a consciência. Com o corpo coberto por farpas, dando a impressão de ter caído num arbusto repleto de espinhos, ela se esforçava para se manter firme, mas o rosto tão pálido quanto o de um cadáver e o líquido espesso escorrendo através das numerosas feridas denunciava a fragilidade na qual se encontrava. Suas pernas tremiam e os braços se assemelhavam a brotos de bambu assolados por uma furiosa tormenta tropical. Os lábios haviam perdido a cor e o queixo batia, deixando a estranha ideia de uma pessoa atormentada por uma geada funesta.

O árbitro que ameaçou subir no palco e colocar fim à luta a encarou por um segundo, como se estivesse avaliando-a, tentando descobrir qual era a opção certa a seguir. Até que por fim, decidiu perguntar diretamente:

― Ainda consegue lutar?

Wu Lin não aparentava estar em condições de oferecer qualquer resposta, mesmo assim, abriu a boca e proferiu através de uma voz vacilante e pouco confiável:

― Es... estou. Eu ainda... consigo... ― As palavras escorregaram para fora de seus lábios, sem força para se impor ou passar maior confiabilidade.

E o juiz, um Virtuoso, percebeu que nem ela acreditava em si mesma, duvidava da própria capacidade de seguir lutando. Talvez, por ser a pessoa incumbida de zelar pela segurança dos jovens, devesse intervir e colocar um fim definitivo à disputa. No entanto, enquanto as duas partes não alcançarem uma situação preocupante, a desistência permanecia sendo uma escolha dos participantes. E embora Wu Lin aparentasse estar gravemente ferida, olhando com mais atenção, notava-se que ela se encontrava em um peculiar estado de choque, mas não existia risco de vida, era como se o medo fosse a única coisa a impedindo de se manter firme.

Assim sendo, concluiu:

― Muito bem, que a partida continue.

A declaração surpreendeu Zhan Cheng Gong, que num ato de descontentamento protestou contra a decisão:

Ei, você ficou maluco? ― ralhou, encarando o árbitro parado logo em frente a arena. ― Essa garota não tem a menor chance de continuar e eu não quero ser acusado de maltratar gente machucada. Se estiver tentando dar uma chance à ela, é melhor esquecer. Mesmo que me derrote com a sorte dos Deuses, duvido que conseguirá se recuperar a tempo da segunda rodada.

― Controle sua boca. ― ralhou o juiz, calando-o. ― Quem decide quando a luta acaba, sou eu! ― afirmou, em tom de bronca. Ele era o responsável pela decisão final e mesmo os líderes das demais organizações não podiam interferir em seu veredito. É claro, se agisse por imparcialidade, seria punido depois, mas, no presente, sua palavra era a única que representava alguma autoridade.

― Você não entende... ― nesse momento, a voz sussurrante e debilitada de Wu Lin soou, chamando a atenção de Cheng Gong, que se virou para encará-la. ― Para vocês das quatro Famílias, conseguir recursos, dinheiro, remédios e uma vida melhor é fácil, mas para o resto de nós, é tudo muito difícil. Eu tenho alguém que preciso cuidar e por isso não posso me render. Mesmo se eu não estiver em condições de disputar a segunda rodada, preciso vencer. Se ganhar essa batalha... essa única batalha, for o bastante para tornar a vida dele mais fácil, então continuarei lutando até ser a vencedora ou o meu coração parar.

Não havia firmeza em seu tom, mas suas palavras carregavam um peso marcante. Bastava olhar em seus olhos para perceber que ela não desistiria.

Depois da bronca que recebeu, Zhan Cheng Gong ouviu tudo do começo ao fim e quando o discurso terminou, bufou, antes de falar:

― Se assim quiser, então irei finalizar essa luta, agora!

Terminando de dizer isso, ele levantou a perna, ameaçando usar mais uma vez a técnica das Farpas Penetrantes.

E Wu Lin não podia deixar isso acontecer, pois caso fosse alvejada por outra chuva daquelas seria o seu fim e lhe faltava disposição para desviar e continuar atacando. Assim, sendo, numa tentativa de frear a movimentação do adversário, balançou a espada e usou o Corte Espiritual para obrigá-lo a parar.

Quando viu a lâmina de Energia voando em sua direção, Cheng Gong interrompeu o ataque e deu um passo para o lado. Mas quando fez isso, outra lâmina foi atirada, desta vez, na horizontal, e ele se abaixou para desviar.

Wu Lin urrou e iniciou uma série de ataques, gastando o pouco de ímpeto que lhe restava. Era uma sequência desesperada, que tentava acertar o alvo através de números ao invés de usar a precisão. Se antes ela já não possuía nenhum manejo com a espada, agora seus golpes eram afobados, nada mais do que uma garota balançando um pedaço de metal, o qual pesava em seus braços.

Embora desesperada, a ação suspendeu qualquer tentativa porca do rival de usar uma técnica ordinária e em meio a enxurrada de Cortes Espirituais, Zhan Cheng Gong foi pressionado a continuar se movendo, mudando de posição a todo instante, sem ter tempo de contra-atacar.

Ele se mantinha no controle da situação e isso se fazia perceptível pela maneira calma e controlada com que se esquivava. Contemplando a ansiedade e aflição da outra parte, ficava evidente que poderia vencer mesmo abrindo mão da ofensiva ― bastava esperar ela gastar a última fagulha de vigor que a impulsionava a seguir em frente para se consagrar o vencedor.

Porém, a sensação de quase vitória que experimentou um segundo atrás, seguida pela bronca do juiz, usurpou-lhe a prudência e apagou qualquer resquício de paciência. Queria colocar um fim em tudo isso o quanto antes.

Zhan Cheng Gong, determinado a encerrar a batalha, levantou o braço e rugiu:

― Estaca...

No entanto, antes que tivesse a chance de terminar, Wu Lin lançou dois ataques em sequência, os quais, diferente dos atirados avulsos anteriores, disponibilizou de precisão e potência.

A postura usada por ele era diferente de qualquer coisa usada antes e ela sentiu que algo novo estava para acontecer, e não podia deixar isso se realizar. A essa altura, não suportaria ser alvo de uma técnica distinta das usadas antes.

E então, num ato que mais poderia ser comparado à leviandade, atirou-se contra o adversário. Já havia usado a esgrima falha num momento anterior e sabia que em sua atual condição experimentaria da pura decepção caso voltasse a fazer outra tentativa. E foi por isso que manteve a ponta da espada abaixada e investiu usando o ombro.

Wu Lin jogou o corpo ensanguentado contra o rival, dispensando técnicas infrutíferas. Usou toda a robustez e peso de sua estatura elevada para criar uma chance. E a despeito da tentativa imprudente, Zhan Cheng Gong, que esperava por outro Corte Espiritual, foi surpreendido pela ação repentina.

Os dois se chocaram e ele, que não havia se preparado para a colisão, foi jogado para trás e caiu de bunda no piso da arena. A queda não o machucou, mas o levou a baixar a guarda.

E Wu Lin, que tanto esperou por esse momento, não pensou duas vezes quando brandiu a espada e desferiu um golpe pesado, segurando a empunhadura com as duas mãos.

A lâmina cega acertou bem na cabeça de Cheng Gong, que se curvou para frente numa postura desengonçada. Um timbre metálico ecoou e a espada fragilizada se partiu em duas.

Ai, ai, ai! Minha cabeça! minha cabeça! ― O novato membro da Família Zhan rolou pelo chão, pressionando a testa com as mãos enquanto uivava de dor. Um rasgo foi aberto logo abaixo do couro cabeludo e sangue verteu do ferimento.

O juiz, que havia aumentado a atenção depois de Wu Lin ter sido atingida por diversas farpas, adiantou-se e perguntou:

― Você está bem? consegue continuar?

Porém, o mais jovem participante do festival não ouviu a pergunta e continuou berrando em agonia e rolando de um lado para o outro.

― Você consegue continuar lutando? ― voltou a perguntar, elevando o tom, preparando-se para subir na arena.

― Minha cabeça dói muito! Eu me rendo! Eu me rendo! Está doendo muito! ― Em meio a choramingos e grunhidos, Zhan Cheng Gong declarou sua rendição.

E tão logo sua submissão foi anunciada, o árbitro proclamou:

― Vencedora, Wu Lin!

Muitos aplaudiram e celebraram a vitória da representante da Fundação Quatro Pilares. Entretanto, ela, a campeã, não apresentou qualquer reação a princípio. Estava atônita, paralisada, segurando o metal quebrado. E quando pareceu enfim tomar conhecimento do que estava acontecendo, murmurou, extasiada:

― Eu venci? ― perguntou, olhando ao redor, vendo as pessoas comemorando enquanto chamavam por seu nome. ― Eu venci? Eu venci? ― Embora repetisse para si mesma, ainda não acreditava no que tinha escutado. E foi apenas ao ver um dos árbitros subir no palco para averiguar o estado do rival derrotado que pareceu tomar conhecimento da realidade. E então, vibrou em euforia. ― Eu venci! Eu venci!

Como se a dor de ter sido perfurada por diversas farpas tivesse desaparecido apenas para lhe permitir usufruir daquele instante de júbilo, Wu Lin jogou a espada quebrada de lado e pulou enquanto balançava os braços exibindo uma alegria contagiante. Seu corpo ensanguentado, os espinhos cravados na pele e a roupa rasgada ficaram em segundo plano, pois nada se comparava à alegria de ter conquistado uma vitória no festival que cobiçou por tantos anos.

 


Niveis do Cultivo: Mundano; Despertar; Virtuoso; Espirituoso; Soberano do Despertar; Monarca Místico; Santo Místico; Sábio Místico; Erudito Místico.

 


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