Um Alquimista Preguiçoso Brasileira

Volume 1

Capítulo 79: Uma conversa em segredo

Ao se deparar com Xiao Ning e os outros, Xu Xia congelou no lugar em que estava. Seu rosto alegre de um momento atrás, transformou-se numa carranca severa. Demorou poucos segundos para perceber o próprio assombro e recobrar parte de seus movimentos, ainda rígidos pela surpresa. Ela caminhou para o lado de sua tia, mas sempre mantendo um olhar fixo naquele que um dia foi seu noivo por decisão dos pais, como se para não perdê-lo de vista.

Outra pessoa que mudou a expressão foi Xiao Shui. Quando notou a chegada de Xu Xia, encarou-a como se fosse uma inimiga mortal. Esqueceu-se até mesmo da bronca que estava dando no preguiçoso pelo seu modo sem vergonha de se comportar.

Com o retorno de sua sobrinha, Cuifen aproveitou a oportunidade para se afastar de Xiao Ning, recuando alguns passos. Embora estivesse tentando manter a compostura, não podia negar que a abordagem agressiva do jovem a deixou desconcertada.

― Qual o problema? Conseguiu o que queria? ― Ao retornar para o lado de sua jovem companheira, a senhorita da Família Xu notou que o olhar da sobrinha direcionado ao ex-noivo estava sendo pouco discreto, revelando em excesso suas intenções. Sabia muito bem o que levava Xu Xia a se comportar dessa maneira; conhecia todos os segredos dela. Porém, essa sinceridade em sua expressão poderia acabar gerando algum tipo de problema. Portanto, tentou chamar sua atenção para outro assunto, na esperança de fazê-la tomar conhecimento das próprias ações.

Porém, a jovem da 1ª Camada do Reino do Despertar parecia não partilhar das boas intenções de sua tia em tentar preservar a discrição. Seu olhar severo fitou o preguiçoso, possuidor de muitos boatos, como se estivesse vendo uma pessoa odiosa, do tipo que não suportava ficar próxima por muito tempo. Sem ao menos levar em consideração os esforços de Cuifen para tentar impedir que uma possível discussão aconteça, ela bufou com aspereza:

― O que você está fazendo aqui? ― perguntou, olhando para Xiao Ning. Sua voz não era nada amigável, porém, mais intimidador ainda, era a expressão afiada em seu rosto.

O preguiçoso, que pareceu não se importar com o tom grosseiro usado para se referir a ele, abriu a boca para dizer algo. Entretanto, quem respondeu primeiro foi Xiao Shui.

― E o que isso tem a ver com você? ― disse ela, ríspida em cada palavra.

Ser confrontada pela filha do 9º Ancião dos Xiaos, a qual retribuiu seu olhar áspero, pegou Xu Xia de surpresa. Não lembrava de ter qualquer rixa com ela, mas seu tom grosseiro ao se intrometer no assunto, parecia indicar o contrário.

Xiao Ning também ficou confuso. Não sabia que existia uma inimizade entre as duas. Entretanto, pareceu não dar muita importância para isso. E assim, respondendo à pergunta feita à ele, narrou da maneira mais bajuladora possível:

― A quanto tempo não nos encontramos, pequena Xia. Vejo que você está bem e se tornando cada vez mais forte. Eu estava apenas conversando com a sua bela tia. De fato, estava planejando convidá-la para passar este lindo festival ao meu lado.

― Passar o festival ao seu lado? Eu pensei que você representaria a Família Xiao nas disputas de hoje à noite. ― proferiu Cuifen, sugerindo discretamente uma recusa. ― Isso é algo de maior importância. A honra da sua Família pode ser afetada por suas escolhas.

― Como algumas batalhas sem sentido poderiam ser mais importantes do que desfrutar de sua companhia? ― retrucou Xiao Ning de imediato.

― Minha tia tem coisas mais importantes para fazer do que sair com um moleque. ― ralhou Xu Xia, intrometendo-se na conversa.

― Ora, não seja assim, pequena Xia. Se você pensar bem, essa pode ser a chance de nos tornarmos grandes amigos. ― disse Ning, exibindo um largo sorriso. Por mais que as palavras dela tenham sido rudes, ele demonstrava não se importar nem um pouco. Não achava que ela era uma garota ruim, apenas não possuía delicadeza em seu modo de agir.

― Já falei para não me chamar de pequena Xia. Não gosto disso. ― informou Xu Xia, áspera em cada aspecto. Parecia pronta para dizer mais algumas coisas, porém, conteve-se. Seus olhos miraram o ex-noivo como se estivesse matutando algo de extrema importância, um assunto que ia além da tentativa boba do desavergonhado de namorar com sua tia ou de sua própria implicância.

Não fazia muito tempo que a notícia a respeito dos Xiaos terem se filiado a um Alquimista se espalhou. Desde aquele dia, sua Família parecia determinada a descobrir a identidade de tal entidade. Entretanto, para ela, o mais importante estava no fato de que depois do ocorrido, seu avô, além de dar início a um comportamento frio direcionado a neta, também vinha a pressionando quanto ao assunto envolvendo o término do casamento.

Na Família Xu, existia uma pequena suspeita de que Xiao Ning estava, de certa forma, relacionado a tal figura proeminente. O tempo entre seu pedido de um Caldeirão Encantado e o surgimento de um Alquimista era coincidente demais para ser ignorado. A teoria que parecia ser mais aceita entre os Anciões dos Xu era a de que Ning, de alguma maneira, conseguiu se aproximar dessa entidade capaz de abalar o equilíbrio de poder. Por esse motivo, pediu um Caldeirão como compensação pelo término.

Alguns especulavam que ele poderia até mesmo ter se tornado o aprendiz de um Alquimista, permitindo assim, aos Xiaos conseguirem um grande aliado. É claro, tudo não passava de suposições, afinal, existiam muitas coisas que não faziam sentido. Como, por exemplo, por que Xiao Ning pediu a eles um Caldeirão Encantado e não a sua própria Família? Foi esse deslize que os permitiu se aproximar da verdade ou algo próximo à ela.

Outro ponto importante que vale destacar, é o motivo pelo qual um estimado Alquimista tomaria alguém conhecido pelo descompromisso como um discípulo. O garoto era um imprestável e todos sabiam disso. Mesmo o seu atual avanço no cultivo sendo surpreendente, não se mostrava o bastante para apagar uma vida de negligência. Até porque, pelo que sabiam, esse progresso repentino poderia muito bem ser resultado de tal afiliação. Pensando dessa maneira, seria mais vantajoso tomar como seguidor alguém cujo cultivo se mostrou promissor desde jovem, tipo, Xiao Bai.

Independente de qual seja a verdade por trás dos boatos e especulações, desde o ocorrido, seu avô vinha a evitando. Sentia-se culpado por ter sido precipitado e colocado fim a um acordo de casamento ― algo que não deveria ser tratado com leviandade ― e, acima de tudo, temia que suas escolhas pudessem ter custado o futuro da Família.

Xu Xia não se importava muito com a exclusão apresentada por seu avô. A pessoa mais próxima dela sempre foi sua tia, a qual confidenciava todos os segredos. Entretanto, se as coisas continuassem da maneira em que estão, a sua Família poderia acabar voltando atrás no cancelamento e tentar reatar o compromisso uma vez firmado. E ela não podia deixar isso acontecer, não depois de ter se esforçado tanto para desfazê-lo.

Ela não detestava Xiao Ning. Sequer o conhecia direito para assumir tal posição. Embora agisse de maneira grosseira e ríspida ao se dirigir a ele, era apenas o seu jeito de ser. O ex-noivo havia por muito tempo roubado o seu sono e personificado um receio que por muito tempo corroeu seu coração. Por esse motivo, acabava se exaltando ao encontrá-lo. Apenas vê-lo, fazia despertar certos pesadelos que temia se tornar realidade.

Ainda assim, a despeito de seus sentimentos conflitantes, não nutria qualquer ódio ou rancor voltado especificamente para sua pessoa.

Todavia, independente do que sentia ou deixava de sentir, Xu Xia precisava aproveitar essa chance. Não era todo dia que conseguia encontrar aquele possuidor de tantos rumores. Tiraria vantagem dessa chance para descobrir a verdade e depois, quando soubesse de tudo, pensaria em algo para escapar da situação.

Após um breve momento de reflexão, enquanto mantinha um olhar resoluto, focado em Xiao Ning, ela decidiu abrir a boca:

― Eu quero te perguntar algo. ― disse sem enrolações. ― Podemos conversar?

― Ele não tem nada para conversar com você! ― Entretanto, mais uma vez, Xiao Shui tomou a frente da narrativa, passando um braço em frente ao preguiçoso, como se estivesse o protegendo.

Ela parecia determinada a ir contra Xu Xia e seu olhar rigoroso confirmava isso.

Achando seu comportamento estranho, Xiao Ning resolveu perguntar:

― Por que você está comprando briga com ela? ― Nunca tinha ouvido falar que aquelas duas possuíam algum tipo de desentendimento e a julgar pela expressão confusa de Xu Xia, ela também não.

― Como assim, por que? ― retrucou Xiao Shui, que parecia pronta para começar uma briga. ― Essa garota te humilhou quando terminou o noivado. Algumas pessoas falam disso, você sabia? Ficam fazendo piadas sobre você nas Arenas de Treinamento e Combate. A questão é, por que você não está bravo?

A resposta dela pegou Xiao Ning de surpresa. Mesmo o tio Chang não esperava por isso. Sabia o quão superprotetora sua filha podia ser em determinados momentos; tinha o péssimo hábito de arranjar briga com quem falava mal das pessoas que gostava. Porém, não esperava que a relação entre os dois já tivesse evoluído a esse ponto.

― Oh, então você está fazendo isso por mim? Mas que fofura da sua parte! ― brincou Xiao Ning, dando um sorriso provocativo. ― Isso quer dizer que agora vai me chamar de Gege também?

― O meu Gege é muito mais incrível! ― ralhou Xiao Shui em um tom áspero, sentindo-se injustiçada. Estava tentando ajudá-lo e ele debochava de sua compaixão. O quão ingrato era isso?

― Ahah! Se isso acontecer, você terá tempos difíceis. ― zombou Xiao Chan, dando uma risada divertida.

― O que você quer dizer com isso? ― bufou Shui, virando-se para encarar o irmão, que logo parou de sorrir.

Xiao Ning não fazia ideia de que existia pessoas zombando e falando dele pelas costas devido ao fim do casamento, embora isso já fosse esperado, afinal, esse tipo de compromisso era muito importante não apenas no Império Dourado, mas em todo o Continente Central. Porém, não se importava nem um pouco com tais falatórios, mesmo se estivessem sendo ditos em sua frente.

Gostava de ver Shui tentando protegê-lo ― tal atitude mostrava que ela, da sua própria maneira peculiar, estava começando a se apegar a ele. Entretanto, não via motivos para ela ser tão severa diante de uma questão que considerava pequena.

E foi por isso que ele disse para não se importar muito com a fofoca das outras pessoas e se virou para encarar a ex-noiva.

― O que você quer saber? Responderei tudo para a sobrinha da linda Cuifen. ― proclamou, tentando parecer o mais gentil possível.

― Não aqui. É... uma pergunta particular. ― disse Xu Xia, olhando em volta, para o grande número de pessoas transitando. ― Me siga. ― pediu, dando meia volta e se afastando.

Xiao Ning se preparou para segui-la, quando, de repente, sentiu o tio Chang tocar seu ombro.

― Não vá muito longe. ― avisou, expressando um olhar cheio de significados. Não poderia falar que era perigoso para o afilhado se afastar, pois isso acabaria fazendo Xu Cuifen suspeitar ainda mais de que havia algo acontecendo.

― Não se preocupe. Qualquer coisa, eu grito. ― disse Xiao Ning, que não tinha a menor intenção de se meter em uma situação perigosa. Depois do último atentado, sabia que os agressores não tentariam matá-lo mesmo se voltassem a atacar, porém, ainda assim, não desejava ser sequestrado.

Por sorte, Xu Xia também não pretendia ir muito longe. Ela apenas deu a volta por trás das barraquinhas que estavam coladas umas nas outras, com a parte da frente voltada para o público geral e o fundo próximo às paredes das casas e lojas, ocupando, dessa maneira, o menor espaço possível.

Graças a isso, não existiam muitas pessoas transitando entre os pequenos corredores do fundo formados pelas filas de tendas improvisadas, montadas exclusivamente para o evento de hoje.

Quando enfim ficaram sozinhos, tendo apenas a companhia de uma ou outra pessoa tentando adentrar na multidão formada do outro lado, Xu Xia começou a falar. Foi direto ao ponto. Não queria saber de enrolação. Entretanto, antes de dizer qualquer coisa, checou os arredores uma terceira vez para ter certeza de que não havia ninguém escutando. Parecia bastante cautelosa.

― Há alguns dias, chegou uma notícia na Família Xu de que os Xiaos se aliaram a um Alquimista. Isso é verdade? ― Embora estivesse pronunciando cada palavra por meio de um tom grave, demonstrando o quão delicado era aquele assunto para ela, sua voz era baixa e controlada, tomando o devido cuidado para que a conversa não fosse ouvida por bisbilhoteiros.

A despeito de seu modo curto e direto de falar, ela esperava alguma cautela de Ning ao abordar um assunto que provavelmente deveria ser um segredo para a Família Xiao. No entanto, mesmo se isso acontecesse, estava preparada para estudar as linhas formadas em seu rosto e julgar a verdade.

Porém, ao contrário de todas as suas expectativas, a resposta foi tão direta quanto a pergunta.

― É mais ou menos isso. ― informou Xiao Ning, simplista em suas palavras, como se a revelação não fosse nada demais, um mero detalhe. Nunca foi uma pessoa de ficar guardando segredos, por isso não procurava mentir, quando confrontado por uma questão.

Xu Xia não estava esperando ser respondida com tanta facilidade e isso fez o choque que recebeu ao confirmar a veracidade dos boatos ser ainda maior. Naquele instante, seu rosto ficou pálido e conforme estremecia, sentiu um arrepio atravessar todo o corpo como se fosse o despertar de um mau presságio.

Ela queria a todo custo evitar esse casamento, por mais que já tivesse sido desmarcado. Porém, se os Anciões recebessem uma confirmação envolvendo a presença de um Alquimista, eles poderiam tentar voltar atrás em sua decisão. Em especial, o avô, que prezava pelos interesses da Família acima de tudo, até mesmo do próprio sangue. Ainda que Xiao Ning não possuísse qualquer ligação com tal entidade, isso era algo que poderia acontecer.

Casamentos, no geral, são usados para formar alianças com outras Famílias e Seitas, e isso, na maioria das ocasiões, permite aos dois lados gozar de alguns benefícios proporcionados pela outra parte, tipo, proteção e recursos. Por exemplo, quando uma Família mais fraca precisa de ajuda em algo, não é incomum ela propor um compromisso, pois assim, eles estariam ligados por um laço sagrado.

Ao longo dos anos, muitos casamentos haviam sido feitos entre as quatro Famílias que governavam sobre a Cidade da Fronteira do Caos. A própria mãe de Xu Xia era originalmente uma integrante dos Qin.

E mesmo ainda existindo laços entre os Xiaos e os Xu, ela sabia que caso fosse provado o apoio de um Alquimista, seu avô e os outros tentariam reatar o compromisso, pois existia uma grande diferença no casamento feito entre membros comuns e a neta de um Ancião.

Independentemente de Xiao Ning possuir alguma ligação direta com essa entidade capaz de abalar o império, se a conciliação ocorresse, o vínculo entre as duas Famílias seria mais forte e os benefícios colhidos, maior.

Sabendo de tudo isso, Xu Xia temia a resposta de sua próxima pergunta, pois dependendo de qual fosse, ninguém daria a mínima importância para seus sentimentos e tentariam reatar o noivado.

― Você... ― ela parou e respirou fundo ― os Anciões da minha Família acreditam que você possa ter alguma ligação com esse Alquimista. É verdade? Você é discípulo dele ou algo do tipo?

E mais uma vez, Xiao Ning, que não fazia questão de guardar segredos, respondeu usando toda a sinceridade:

― Ahaha! Eu não sou discípulo de ninguém. ― disse ele, achando divertido tal hipótese. Nunca em toda a sua vida teve um mestre Alquimista. Sempre aprendeu tudo sozinho. E nesse momento, foi possível notar um traço de alívio percorrer o rosto de Xu Xia. Se esse fosse o caso, talvez, apenas talvez, teria alguma chance de escapar dessa situação. ― Eu sou o Alquimista! ― declarou, parecendo orgulhoso de si mesmo.

Por outro lado, ao ouvir a segunda parte, Xu Xia parecia ter levado um tapa na cara. Sua respiração ficou ofegante e seus pensamentos se perderam em um turbilhão de desolação. Seu semblante sempre firme e resoluto ruiu, deixando para trás uma expressão amarga e taciturna. Os lábios tremeram e os olhos perderam o brilho.

Se os Anciões descobrissem...

Ela era uma garota obstinada e que não mentia para si mesma. Não voltaria atrás em sua decisão de acabar com o noivado, mesmo se fosse obrigada pelos líderes de sua Família. E por se conhecer tão bem, sabia que uma vez que a identidade de Ning fosse revelada, a relação com seu avô e todo o resto, acabaria.

Por mais que estivesse determinada a seguir o próprio caminho, Xu Xia amava estar perto dos Xu, mesmo sabendo que seria rejeitada ao contar quem de fato era. E por saber do inevitável fim, sentiu-se desolada. Seu coração apertou e a sensação era a de que o chão havia desmoronado sob seus pés.

― Sabe, o tio Chang e os outros pediram para não contar a ninguém sobre isso, mas eu acho uma droga essa coisa de ficar guardando segredo. ― continuou Xiao Ning, falando com a maior naturalidade. ― É muito cansativo ficar guardando segredo, você entende?

― Não conte a ninguém... ― A voz de Xu Xia saiu fraca, feito um mero sussurro sendo soprado.

Ouvindo seu tom abatido, Ning pareceu enfim notar seu semblante abatido. Ela parecia perdida, aflita, a um passo do desespero; os olhos úmidos, como se estivesse prestes a se entregar as lágrimas, conforme as mãos tremiam, fazendo lembrar o estado deteriorante de alguém acometido por uma enfermidade. Ele estava para perguntar o motivo, quando mais uma vez o sussurro soou.

― Por favor, eu imploro, não conte a ninguém. ― pediu em um tom de súplica. ― Não conte a ninguém que você é um Alquimista.

― Por que? ― questionou Xiao Ning, com estranheza. Não conseguiu entender o motivo de ser tão importante para ela manter isso em segredo. O tio Chang e o Patriarca ele entendia. Esse tipo de coisa poderia trazer diversas complicações para a Família. Mas o que a motivava?

― Se meu avô descobrir sobre isso, ele tentará desfazer nosso rompimento e... eu não posso... não posso me casar com você. ― proferiu Xu Xia, bastante emocional, pronunciando cada palavra por meio de uma voz fraca e abatida. ― O problema não é você... eu não te odeio... é verdade... eu que sou... eu... ― tentou se justificar, mas não sabia como. Não tinha coragem de dizer. Parecia tão errado.

― Sim, eu sei que você não me odeia. ― disse Xiao Ning, dando um sorriso caloroso. ― Você pode fazer todas aquelas caretas e ser bem rude às vezes, mas de onde vejo, não é uma pirralha ruim. E quanto ao casamento, não se preocupe, eu também não tenho o menor interesse em me casar. Nunca! ― declarou. ― Se o seu avô tentar reatar o acordo, eu assumo a culpa e invento alguma desculpa.

Xu Xia ficou impressionada com a postura assumida pelo ex-noivo. Depois de tudo que fez, não o culparia se ele decidisse odiá-la e desprezá-la. Mas ao invés disso, Xiao Ning parecia disposto a assumir toda a culpa apenas para acobertá-la, mesmo sem saber seus motivos. Só podia agradecê-lo por ser tão compreensível.

Entretanto, a despeito de suas boas intenções, a Família Xu ainda a culparia pelo término, quando a verdade fosse revelada. Porém, talvez, essa seja a melhor saída.

No final, só havia uma coisa que podia dizer a ele.

― Obrigada! ― agradeceu do fundo do coração.

Depois de algumas coisas terem sido esclarecidas, Xu Xia e Xiao Ning voltaram para o lugar em que o tio Chang e os outros estavam aguardando.

Xiao Shui esperava ao lado do irmão, que não parava de encarar Cuifen com um sorriso abobalhado. A irmã mais nova tinha uma expressão fechada, acompanhada por um olhar de desaprovação, mas não parecia ser nada relacionado ao preguiçoso. O foco de seu semblante severo era a tia de Xu Xia, a qual se mantinha calma, embora olhasse a todo instante para o lugar em que a sobrinha havia se enfiado.

Quando os dois retornaram, o tio Chang pareceu se acalmar um pouco. Desde a partida do afilhado, que não durou mais do que poucos minutos, ele redobrou sua atenção, espiando cada rosto suspeito passando pela multidão. Se algo acontecesse, precisaria agir de imediato, sem se importar com as consequências. Por sorte, seu protegido já estava voltando para o seu lado.

A primeira coisa que o grupo reparou ao vê-los retornando foi a expressão claramente abalada no rosto de Xu Xia. Enquanto Ning aparentava ser o mesmo de sempre, a jovem prodígio da Família Xu parecia ter levado um choque, com seu olhar desnorteado, perdido.

Ao ver o semblante abatido de sua sobrinha, Xu Cuifen logo correu ao seu encontro e segurou-a pelo braço, em um gesto carinhoso, enquanto perguntava por meio de uma voz que apenas as duas podiam ouvir:

― O que aconteceu?

O tio Chang também ficou intrigado com o semblante esmorecido da garota e perguntou quando o afilhado se aproximou:

― O que aconteceu?

― Nada demais, apenas respondi as perguntas dela. ― respondeu Xiao Ning, com sinceridade.

Quando Xu Xia chamou o afilhado para conversar, o tio Chang imaginou que o assunto poderia estar relacionado ao rompimento do noivado, por esse motivo não interferiu. Os dois nunca foram muito próximos, mas esse era o tipo de coisa da qual se leva para a vida. Imaginando ter ficado algo pendente, concluiu que a jovem desejava por um encerramento em toda a história.

Porém, julgando por sua aparência desolada, Xiao Chang chegou à conclusão de que as coisas não haviam terminado bem. Rompimentos em acordos estabelecidos pelos pais não era algo comum, mas sempre que acontecia, rancor e humilhação nasciam entre as duas partes. De fato, ele julgava a maneira de Ning se portar perante toda a situação bastante controlada.

Muito embora, talvez, desta vez ele tenha usado essa oportunidade para extravasar seus sentimentos. Seja como for, não insistiria num assunto particular.

Como não queria dar mais oportunidade a Xu Cuifen de continuar sondando a situação dos Xiaos, o 9º Ancião rapidamente se despediu, tirando proveito da situação desconfortante.

― Nós iremos desfrutar do festival um pouco mais antes das apresentações começarem, então deixarei a Srta. Cuifen voltar para os seus assuntos. ― Guindo os filhos para o lado oposto, Xiao Chang começou a se afastar antes mesmo de receber uma resposta.

No entanto, Xiao Ning era uma pessoa que conseguia ser insistente quando queria e antes de seguir o tio, despediu-se em um tom meloso. Aproximando-se de Cuifen e segurando sua mão, falou:

― É uma pena termos que nos despedir tão cedo, mas vejo que sua doce sobrinha precisa de seus conselhos. Com o coração partido, eu me despeço por hoje, porém, prometo que no futuro nos reencontraremos e enfim poderemos dedicar um tempo somente a nós dois.

Ensaiando a relutância de um homem em partir de um lugar querido, Xiao Ning se virou e caminhou a passos lentos de encontro ao tio Chang. Quando voltou a se juntar ao grupo, foi recebido por um olhar implicante de Shui, que não fazia a menor questão de esconder sua desaprovação.

― Por que insiste tanto com aquela mulher? Você também quer ser o marido dela? ― bufou, usando um tom áspero para expressar seu descontentamento.

― Marido? Quem falou em casar? Eu não quero me casar com ninguém! ― respondeu Xiao Ning, que sentiu um arrepio só de pensar na possibilidade.

― Francamente, você é muito desavergonhado, sabia? ― queixou-se Xiao Shui, franzindo o cenho. ― Primeiro foi a Anciã Ah-kum e agora aquela mulher. Existem muitas garotas bonitas na Cidade da Fronteira do Caos, porque não procura alguém da sua idade?

― Eu não tenho interesse em pirralhas. ― respondeu o preguiçoso, com toda a franqueza. Não havia maneira de alguém igual a ele, cuja idade passava dos cinco mil anos, ter algum interesse nessas pirralhas inexperientes.

― hunf! Você é igual ao Gege! ― arquejou Xiao Shui, lançando um olhar de reprovação em direção ao irmão.

E falando nele, enquanto se afastava, Xiao Chan continuava olhando para trás com a boca meia aberta. Chegou até mesmo a tropeçar algumas vezes, por não olhar o caminho pelo qual estava passando. E então, quando enfim perdeu Xu Cuifen de vista, ainda segurando o espeto de carne, correu de encontro ao parceiro de degustação.

― Você é mesmo incrível! ― declarou, repleto de admiração. ― Além daquela coisa ― preferiu não falar a palavra “Alquimia” perto de tantas pessoas ―, não acredito que você também teve coragem de chamar a Srta. Cuifen para sair.

O olhar de censura da irmã foi instantâneo. Por outro lado, Xiao Ning ficou curioso.

― Você gosta dela?

― Ahaha! ― Para sua pergunta, o tio Chang deu uma gargalhada divertida e falou. ― Antes de ir para a Seita Waidanshu, ele vivia invadindo o território da Família Xu para espiar a Srta. Cuifen. Certa vez, quase morreu ao ser confundido com um inimigo. ― lembrou, tomado por nostalgia, o dia em que o filho voltou correndo para casa tão assustado quanto um pequeno coelho que parecia ter conseguido escapar por pura sorte de uma Besta Demoníaca faminta. ― Ele se trancou no quarto e passou o resto do dia se escondendo.

― Foi assustador. Eu fui perseguido por dois cultivadores bastante determinados a me dar uma lição. Achei que ia morrer. ― admitiu Xiao Chan, que lembrava bem daquele dia. ― Mas não me arrependo!

― Entendo, entendo. Você gosta dela, não é garoto. ― disse Xiao Ning, divertindo-se com as histórias desastrosas de uma paixão adolescente. ― Nesse caso, acho que terei de desistir. Hehe!

― Francamente, não entendo o que vocês veem naquela mulher. Ela nem mesmo se dedica ao cultivo. ― Shui sempre ovacionou os feitos do irmão, porém, essa era uma das poucas coisas que reprovava. Seu Gege podia encontrar uma esposa melhor, uma cultivadora poderosa. ― Você também, pai.

― Por que eu? ― exclamou o tio Chang, surpreso com a acusação.

― Eu ainda me lembro do dia que encontrei vocês dois sozinhos.

― Mas eu já falei que ela só estava me fazendo uma visita em nome do 4° Ancião Gan. ― Mais uma vez, ele se viu obrigado a se justificar por algo ocorrido há muito tempo.

E apesar de seu pai estar dizendo a verdade, o olhar de censura no rosto da filha mostrava que ela não acreditava nem um pouco na história.

Não querendo se alongar mais nesse assunto, pois as coisas poderiam acabar se complicando para o seu lado, o tio Chang convidou a todos para irem até o centro da cidade. Logo os principais eventos da noite começariam e não queria perder nenhum deles.

 

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