Volume 1
Capítulo 30: Magatama Da Idolatria
[Incis Katulis]
Durante o meu pacífico banho após a longa viagem até Gilly, eu pude pelo menos respirar um pouco diante de tantos problemas.
A água quente e as pequenas ondulações permeando pela superfície translúcida cobriam minha pele trazendo aos meus músculos uma sensação revigorante, meu corpo inteiro relaxou em segundos.
Foi bom saber que mesmo depois de tanta coisa eu ainda podia tomar um banho como esses, apesar da água quente ser um luxo para nós da guilda que vivíamos em um tipo de sociedade indigente.
Com meus cabelos boiando sobre e superfície ondulante eu apenas recostei minhas costas na parte de trás da banheira espaçosa e descansei meus braços nas beiradas lisas com sabão.
“Os outros devem estar bem cansados também.”, ponderei ao me recordar das faces dos novos hospedes, Zakio, Renard e Akira.
Tudo parecia muito tranquilo e pra falar a verdade não havia tanta necessidade de eles terem vindo, acho que a coisa mais complicada que houve mesmo foi aquele duelo que Jack teve com Beatrice.
— Por que você tem que ser tão teimoso garoto? — cochichei em um suspiro ao olhar para o teto, tendo meus olhos banhados pela luz amarelada do cristal reluzente que pendia de um pequenino circuito, assim trazendo luz a todo o cômodo.
“Ele não estava em tanta vantagem, mas também não desistiu até o fim do duelo... será que os ataques de Beatrice doeram muito?”
E em poucos segundos eu estava preocupada novamente.
Comecei a pensar sobre a diferença entre Jack e Beatrice, não de um modo pessoal, mas de uma maneira mais técnica no geral.
De acordo com os fundamentos básicos de uma luta entre dois usuários de Vitalis, os seus Rankings são peças chaves para a vitória de um dos lados, porém esse não é o único fator relevante no caso de um combate até a morte ou um duelo.
“Também depende das capacidades cognitivas presentes em ambos os lados, a velocidade de reação, o planejamento para cada movimento e investida.”, pensativa eu levei minha mão ao queixo.
Basicamente, o seu Ranking realmente define o quão forte você pode ser, entretanto, dependendo da sua estratégia pode ser mais fácil perder para alguém de Ranking inferior do que vencer.
Um belo exemplo disso foi aquele último movimento que Jack fez, quando Beatrice iria lhe dar um golpe poderoso ele puxou a espada de madeira junto com alguns galhos e folhas para distraí-la por um breve segundo ao tapar o campo de visão dela.
Beatrice não tem um Vitalis, portanto não foi atribuído um Ranking específico pra ela no S.I.S, mas se for pra dizer apenas analisando todas as suas habilidades...
— Talvez ela seria de Ranking C. — concluí em voz alta ainda olhando pro teto e com a mão no queixo. A água abaixo do meu pescoço emanava um leve vapor.
“No estado atual de Jack ele ainda é um Ranking F e tem status bem fracos também, só que aquele movimento final foi bem impressionante pra alguém que a poucas semanas atrás mal conseguia manusear uma pequena adaga.”
Minha mente começou a se misturar com palavras criando por fim um novo compreendimento sobre combate e como Jack lidaria com situações tão perigosas assim.
— Mesmo assim ele não deveria sequer pensar em brandir uma espada, eu não quero ver ele em perigo, não quero ninguém aqui se pondo em risco por razões bobas. — murmurei a mim mesma franzindo as sobrancelhas em desconforto.
Puxei o ar para dentro dos meus pulmões de maneira ríspida e logo em seguida inspirei tudo pra fora numa tentativa de esquecer essa aflição novamente.
No fim, eu ainda não tinha certeza se havia conseguido convencer Jack em não entrar na guilda e também não havia achado meu pai ou resolvido o incidente em Leycrid.
A imagem daquela gigantesca cratera que a explosão causou no meio da cidade, as faces desamparadas dos sobreviventes, essas visões se ascenderam em minha mente como uma tocha.
— Ughn!
Um grunhido saiu de mim no que uma dor de cabeça súbita pulsou em minha testa, me recordando do desastre.
Levando a mão a testa eu fechei os olhos para no fim recostar a cabeça na parede.
“Droga... eu preciso... ajudar a todos. Eu não posso ser inútil, não agora.”, palavras solenes ecoaram em meu consciente.
[Akira Azath]
— Vigiando, Vigiando, Vigiandooo!
Eu cantarolava de maneira desafinada, porém bem animada enquanto marchava de um lado pro outro em frente a porta de mármore com uma maçaneta prateada, o quarto do meu ídolo número 1, Incis Katulis.
Minha mão sempre no punho da Katana embainhada, para caso algum xereta ou pervertido tentar entrar no quarto da melhor atiradora de Mythland.
Passo! Passo! Passo!
— Se alguém aparecer eu só vou... fatiar, fatiar, fatiar! Heeh! — finalizei a minha linda melodia balançando as mãos no ar como se estivesse empunhando a espada, meu sorriso sempre estampado.
Só que isso ainda era cansativo e chato... desculpe senhorita Incis, mas ainda sou uma garota normal de 15 anos.
“Não! Não posso pensar assim, eu estou dando desculpas pra não proteger a toda poderosa Incis Katulis!”, me reprimi mentalmente ao parar minha marcha.
— Hm... — meus olhos reviram o corredor cheio de portas, iluminado pela luz lunar passando entre o seguimento de janelas.
Por um segundo eu pensei ter escutado algo, tipo um impacto oco sobre alguma superfície dura... tá, isso foi específico, mas foi essa a impressão que me deu.
Um receio logo foi aflorando dentro de mim, talvez pudesse ser algum fantasma.
“Droga! Está tão silencioso aqui, agora que percebi.”, comecei a tremer imersa em pensamentos macabros.
— C-Cadê o capitão Zakio e vice comandante Renard? — pensei em voz alta com os lábios tremendo.
De qualquer modo eu segurei firme o punho da minha espada descansada na bainha.
Eu sabia que se algum ser sobrenatural viesse em minha reta essa espada poderia cortá-lo, sim, ela poderia retalhar tudo, até mesmo minha covardia... eu sabia disso... sabia!
Impacto!
Um som abrupto ressoou pelo corredor, os lustres com cristais brilhantes no teto balançaram com um pequeno tremor.
Em poucos segundos minhas pernas começaram a tremer e meu coração bateu rápido com o susto, fazendo meus olhos se arregalarem e minha saliva descer pela garganta inconscientemente.
O tremor e o som claramente vieram do andar acima, área onde os quartos dos hospedes feridos ficava.
“Mesmo com essa espada eu ainda sinto que posso morrer a qualquer hora se continuar assim, capitão Zakio por que você me deu uma tarefa tão difícil?!”, gritei internamente em pânico tentando abrir um sorriso contorcendo os lábios contra minha própria vontade.
Vuuush!
Meu coração disparou com um som ameaçador que rasgou os ares por trás de mim.
— AAH! — Meu grito de desespero permeou entre as paredes ecoando por todo o extenso corredor para no fim, meu corpo involuntariamente se jogar pro lado.
Batendo meus olhos na direção do som, eu vi um punho fechado detentor de várias garras saindo entre seus dedos, não, eram lâminas!
Haviam três pequenas facas de cozinha sendo firmemente presas entre os dedos do punho fechado que partiu o espaço vazio deixando uma distorção por alguns segundos.
— Gh! — Rangi os dentes ao bater meus quadris no chão logo antes de colidir com minhas costas no tapete carmesim.
Nessa fração de segundos o rastro metálico viajou em minha direção não deixando brecha alguma para eu sequer compreender o que houve.
Rápido demais, voraz e assustador demais!
Eu lancei espada embainhada na frente das afiadas lâminas, nem me importei com as lindas cintas que a prendia junto da minha cintura.
Tchink!
Faíscas estouraram com o impacto vibrante que tintalhou em eco.
“Eu não quero morrer agora! Não agora que estou protegendo a toda poderosa Incis.”, pensei quase chorando.
Com minhas mãos duas mãos segurando a Katana embainhada contra as “garras”, eu vislumbrei a figura por trás dessa investida feroz.
— Uma garotinha?! — arregalei os olhos incrédula.
A garotinha vestindo um macacão vermelho e uma camisa preta por trás das garras rangendo contra a bainha de metal, tinha uma doce face, porém... sangue escorria dos seus olhos que por ventura, estavam vazios, totalmente negros, como um abismo assustadoramente escuro.
Um arrepio sinistro percorreu minha pele fazendo cada pelo do meu corpo subir.
Em um movimento rápido eu joguei um chute por baixo dela enquanto forçava a minha espada para frente bloqueando uma das suas garras.
Um chute lento, porém, eficiente que pressionou contra seu abdômen jogando-a para trás usando um leve impacto.
Sem nem sequer se desequilibrar as sapatilhas prateadas da garotinha derraparam sobre o tapete e então ela parou sobre o chão de cerâmica.
Um rastro sujo foi deixado sob o tapete vermelho agora totalmente amarrotado sob as cerâmicas de cor opaca.
Eu me engasguei com minha própria saliva em um soluço ao perceber a coloração das mechas de cabelo dela que se dividiam entre turquesa e rubi.
“É a filha daquele ricaço, o dono da mansão!”
Minhas mãos tremendo, um suor frio descendo da minha testa e meu coração quase saindo pela minha garganta.
Ela levantou seu braço direito e abaixou o esquerdo girando o a uma das mãos para baixo suavemente.
Seus punhos sempre fechados e as lâminas presas firmemente entre seus dedos eram parecidos com as garras de um urso faminto.
A garotinha inclinou seu corpo para frente posicionando uma perna para frente e outra para trás, seus olhos vazios pareciam penetrar o fundo de minha alma.
— Po-Por que está fazendo isso menininha? E-eu interrompi seu sono? — Amedrontada eu me levantei do chão segurando minha espada.
Ventania!
Um vulto selvagem.
A menina avançou em minha direção com uma arrancada que fez suas sapatilhas soltarem um som rígido.
Suas duas garras se lançaram contra mim em um balançar de braços fluído em formato de X.
Zuuush!
Seus cabelos coloridos dançaram em meio ao movimento agressivo e seu macacão carmesim contorceu-se.
Nesse pequeno instante eu percebi que... não tinha como, eu tinha que usar isso, até por que eu estava protegendo a senhorita Incis, minha vida não importava aqui!
Com os ventos sendo partidos em minha direção, prestes a ser rasgada no meio pelas lâminas impiedosas eu puxei a Katana da minha bainha negra.
O movimento avulso jogou um som estridente pelo ar.
A lâmina escorregando do seu encaixe e rapidamente se livrando da prisão e do escuro que limitava o que ela poderia cortar, o que ela poderia proteger e ditar.
Raios de energia eclodiram ao redor da linda espada sendo revelada.
Tribais roxos ascenderam-se sob minha pele se sobrepondo no tecido escuro do meu terno e por fim projetando-se sob meus braços e rosto.
—『 Me salve Magatama Kritias!』
O fio afiado da lâmina sendo liberta reluziu em energia purpura no que os ventos explodiram para fora da bainha escura soltando um vapor roxo que envolveu meu corpo engolindo meu grito por ajuda.