72 SEASONS
Capítulo 1: Aqueles ao meu Redor
A vasta terra de La Serva é dominada por vampiros, uma raça de origem até agora incerta cuja hierarquia se divide em: Originais — Descendentes — Transformados — Vagantes e Indulgentes. Apesar das classes, todos eles apresentam grande perigo para os humanos, e o alvo principal desta vez é...
Norte de La Serva, Sede da Igreja…
O tempo costumeiramente nublado trazia consigo uma brisa gelada, esta que ainda assim perdia para a atmosfera no interior da maior catedral da região.
Equivalente à um coliseu em questão de tamanho, a sede da Igreja Ghost se colocava imponente mesmo nos tempos mais apocalípticos. Muitos se perguntavam como que, nestes tempos onde os Vampiros correm soltos, tal magnífica estrutura se mantinha de pé. Um branco tão limpo que nem a chuva mais ácida poderia contaminar.
Uma estrutura megalomaníaca de base retangular. Rente a parede frontal haviam os pulares a sustentar o teto, estátuas representando homens com livros sagrados e mãos em reza revezavam o espaço com figuras divinas, dotadas de grandes asas, tocando os mais variados instrumentos — guitarra e bateria incluídos. A frase "Hey, Rockers!" escrita na base de algumas, a motivar a fé alheia.
A enorme porta dupla era feita de ouro, com imagens semelhantes às estátuas destacadas em sua superfície. A diferença principal da imagem jazia na presença de um destacável par de olhos no topo da porta. Atrás deste, uma notável representação da Torre Divina.
Escondida no meio desta entrada magnífica de mais ou menos vinte metros de altura estava a verdadeira porta, disfarçada, feita de ouro falso — para facilitar sua abertura — com apenas dois metros de altura. Passando por esta, os olhos a visitar podiam contemplar o interior.
Vazio. O que o exterior tinha de magnífico, o interior havia de depressivo, isento de decorações, altares, estátuas ou qualquer outra coisa. Um espaço branco que, quando no escuro, dava a impressão de um espaço infinito. No caso, existia um bom espaço ente cada uma das lâmpadas de led no chão.
No centro de tal cenário não havia sequer uma mesa, como normalmente se esperaria. De tal forma, as quatro figuras presentes estavam todas de pé, formando um círculo no centro do salão, o local perfeito para que mesmo seus sussurros ecoassem de forma conveniente a ouvidos alheios, parecia até planejado. Mantinham uma distância de três metros uma do outro, todos vestidos num grande manto cinza com simples faixas douradas nas barras, sem mais detalhes.
Sendo todos eles curiosamente da mesma altura, com a mesma roupa e, ainda por cima, calvos, era impossível diferenciá-los.
— E então? Nenhum sinal dele?
— O exército do Sul trabalhou em conjunto com o Oeste em busca de qualquer rastro, mas não encontraram nada que indicasse a atual localização daquele príncipe.
— Aff! Eu digo isso desde que começamos este assunto vários meses atrás e vou repetir: qual a necessidade de se preocupar com alguém que todos chamam de "príncipe pobre"?
— Ele é um Amaldiçoado! Pode causar um estrago severo dependendo de suas intenções e de onde estiver no momento.
— Bem, ele não voltou para o castelo, então creio que já podemos pressupor a morte pela Maldição. Dito isto, já não é hora de agirmos?
— Não! A morte de um Original é algo complicado para se lidar. Você devia saber disso mais do que ninguém, já que é você quem conversa diretamente com o líder.
— Você só não se esqueça que esse aí é o quinto que foi colocado no cargo de mensageiro do líder apenas nesta semana…
O tom cômico do outro foi incapaz de evitar o riso forçado do resto. Engoliram seco, lembrando do destino dos outros quatro homens. A infelicidade de vê-los, miseráveis, os corpos atravessados por estacas de madeira, expostos em praça pública até que os corvos devorassem seus cadáveres por completo.
Enquanto discutiam um pouco mais, cada palavra dita na roda ecoava até o expectador da conversa, este imerso em pensamentos.
"O príncipe de Von Legurn está desaparecido há um bom tempo. Vai fazer três meses agora, não é? Faz anos desde a última vez que o vi, como será que ele está agora?"
— Certo… Então, creio que não fará mal aguardarmos mais alguns dias até que o líder tome uma decisão. — Tossiu seco, girando a cabeça até encontrar uma outra figura mais afastada. — Agora, que tal conversarmos sobre você, meu jovem?
"Mas por qual motivo eles estão tão preocupados com a presença do príncipe? Ele nem é um contribuinte da Ghost, e ainda por cima contrataram as forças especiais do Sul, que não são nada baratas…"
Jovem! O grito tirou-lhe do devaneio, pensaria sobre o assunto depois.
Saindo das sombras, dez metros afastado do círculo, estava o dito cujo, um homem de 23 anos.
Olhos azuis, cabelo preto e liso — bem cuidado — na altura dos ombros, pele de bebê e um olhar de um playboy classe média cansado de não ter nada para reclamar. Rumores de que cuidava da higiene pessoal o tornava sem dúvidas em alguém digno de olhares suspeitos, mas tirando isso ele não se tornava muito diferente dos outros.
Por onde quer que fosse, vestia sempre a mesma roupa — pessoas que invadiram sua casa já haviam confirmado que ele possuía vários conjuntos idênticos no armário. Uma batina preta de bordas douradas — dizem ser ouro —, o colarinho destacado pelo bordado de quatro discos, sendo que um maior abrigava dentro de si os outros três, centralizado com o pescoço. Nas costas o desenho de um grande pentagrama isento de detalhes menores. Por último, mas não menos importante, usava brincos na forma do que ele chamava de "selos secretos" feitos de prata, círculos repletos de símbolos estranhos. Um verdadeiro ritual ambulante.
— Então você é o rapaz de que tanto se fala… — Analisaram-no dos pés à cabeça, mas desviando o olhar logo em seguida, assustados.
Com permissão, o rapaz se aproximou e, após breve reverência para todo o grupo, fez a apresentação.
— Isso mesmo! Eu sou Rag Forge, o próximo na fila para se tornar um Cardeal.
Rag viu cada um dos homens se contorcer ao ouvir sua declaração, uma reação que compreendia até certo ponto.
De uns anos para cá, a Ghost havia alterado em muito sua estrutura hierárquica. Haviam apenas seis posições atualmente: Padre, Bispo, Arcebispo, Cardeal, Patriarca e Papa. A diferença de uma para a outra era apenas o nível de soberania exercido para com os outros.
Todos os carecas aqui reunidos, entre 30 e 40 anos de idade, eram Cardeais formados, enquanto Rag, sendo ainda apenas um aspirante para tal cargo, se encontrava na posição de Arcebispo. Obviamente ficariam desconfortáveis ao ver alguém tão jovem ameaçando se tornar um Cardeal. Era uma ofensa ao esforço e anos dedicados de suas vidas para alcançar esta conquista.
Porém, idade estava longe de ser o maior dos motivos para existir uma clara repulsa no olhar de cada um deles.
— E para quando está planejado seu teste de promoção, meu jovem?
— Em dois dias. Estou usando meu tempo livre para manter a segurança dos fiéis nas igrejas desta cidade…
O teste ao qual se referiam era bastante simples, mas necessário para absolutamente qualquer um que almejasse o cargo de Cardeal. Rag acrescentou:
— A quantidade de vampiros aumentou recentemente. Será que planejam atacar o Corredor Sagrado?
Este era o local de teste. Não havia exatamente um motivo para os Vampiros o destruírem, mas era impossível prever o que tais criaturas fariam. Eram como grávidas, de repente tomados por um desejo específico impossível de ignorar.
Uma intensa pressão suprimiu a voz dos homens, tornando seus olhos na única ferramenta capaz de indicar a origem de sua opressão.
Rag seguiu o olhar como se soubesse onde iria parar, no livro que carregava em mãos. De capa dura e negra, com linhas sinuosas bordadas de forma a imitar as veias de uma criatura adormecida, se entrelaçando ao redor do coração escuro no centro da capa.
Eles estão aqui...
A voz colocou os velhos em posição defensiva. O portador do livro, por sua vez, aguardou o dono desta se revelar e perguntou: — Onde?
Do tamanho de um bebê recém-nascido, a silhueta humana era notável apesar da nuvem negra que rodeava esta figura. Em destaque, o par de olhos amarelos e uma boca completamente branca, como se o criador de tal aberração tivesse esquecido de desenhar seu interior.
Na pequena praça com uma fonte. Tem apenas um.
— Ótimo!
Rag deu as costas aos homens e se retirou sem interrupções. Cada um dos velhos tremendo dos pés à cabeça após serem, mais uma vez, obrigados a presenciar tamanha blasfêmia.
Com a saída do rapaz, a voz enojada de um deles ecoou, alta e clara.
— Maldito Amaldiçoado!
***
Na praça — uma área média determinada por um vazio completo exceto pela presença de uma pequena fonte seca no centro —, as pessoas isoladamente reunidas ao redor observavam, com falsa normalidade em seus rostos, a situação nada exótica se desenvolver.
Perto da fonte, mais de trinta crianças estavam atiradas ao chão, sem sinal aparente de vida. Entre elas, um adulto caminhava, esquelético, com roupas surradas sobre a pele cadavérica. Da boca, alguns fios de sangue escorriam para pingar no chão.
— Tsc! Será que nenhum deles conseguiu? Que frangos...
Os olhos vermelhos caíram à distância, as pessoas que receberam o encarar se afastaram tão rápido que deixaram rastros de poeira para trás.
Resmungou, voltando a atenção para aqueles que estavam caídos por perto.
— Que molengas… Ei! É melhor mostrarem as mudanças se quiserem viver! Vou matar vocês uma segunda vez se ousarem morrer só com isto!
Apesar da clara vontade em sua voz de que o plano funcionasse, o semblante apresentava somente a sede imparável por sangue.
Os civis feridos misturados aos mortos, uns usando os corpos para se esconder e outros somente a encarar os parentes perdidos. Uns poucos se contorciam no chão, imitando as formigas ao redor, esmagadas de mal jeito.
Andando entre os humanos, o vampiro acabou por avistar um que até então esteve escondido. Se encolhia atrás de sua mãe, uma criança de no máximo oito anos. Agarrou-se à mulher ao ser encarado pelos olhos sedentos.
— Ho! Então ainda resta uma cobaia! — Sorriu largamente. — Vem cá, moleque!
Um agarrar no pescoço do pequeno serviu para o roubar dos braços da mulher e erguê-lo no ar.
A mãe buscava clamar para que sua cria fosse poupada, mas, assim como todos os adultos, estava ferida. O corte na garganta tornava bolhas de sangue as substitutas das palavras, de encontro ao chão numa poça rubra, refletindo sua própria incapacidade.
— Será que vai funcionar se o ferimento for mais grave? Talvez se for algo diferente de um dano direto… — questionou-se, a alisar o pequeno rosto com a mão livre. — Acho que vou arrancar seus olhos para descobrir.
As longas unhas côncavas não perderam tempo. O cuidado foi tanto que o par de pás afiadas penetrou no espaço abaixo dos olhos sem causar um único arranhão sequer na pele, para que então colhesse os dois globos de uma só vez. Duas uvas penduradas no rosto, firmemente conectadas ao fio de carne que nunca deveria ficar exposto.
O garotinho se contorceu de todas as formas possíveis, quase virando a própria pele do avesso na esperança de cessar a dor inédita. Os órgãos de seu rosto pendentes no ar, colidindo como bolinhas de bate-bate à medida que se mexia. A agonia da gravidade puxando seus tendões para baixo e a dor da colisão dos olhos ao se mexer lhe colocaram num ciclo interminável.
Em meio ao seu esperneio, o vampiro coçou o queixo e declarou:
— É, parece que isso não influencia no resultado. Que pena…
Finalizou com um deslizar da mão, um corte que usou das unhas para acabar com o sofrimento do garoto. Os tendões de carne foram cortados, e os olhos foram de encontro ao chão. O garotinho parou de chorar na mesma hora, tanto pelo choque da escuridão que o dominou quanto pelo fato do cérebro se recusar a processar a dor por completo.
Decepcionado, o vampiro jogou seu brinquedo quebrado no chão. O coitado arrastou-se com dificuldade para os braços da mãe, ambos com o semblante paralisado.
— Tsc! Que perda de tempo. Sério que eu vim de tão longe para nada? — Batia o pé, impaciente. Um alto ronco vindo do centro de seu ser a criar uma ideia. — Bem, depois de tanto trabalho, faz sentido eu estar com tanta fome.
Lambeu os beiços, mais do que pronto para saltar nos pescoços mais próximos. Três crianças e duas mulheres seriam a entrada. Isto é, se um vush logo atrás não tivesse lhe distraído.
Ao olhar, havia um indivíduo vestido de preto, curiosamente divino devido aos detalhes da vestimenta. Um demônio crente, praticamente. Entretanto, a curiosidade do vampiro ia para como ele havia aparecido. Era uma certeza que a presença surgiu sem explicação, como o spawn de um monstro num video-game.
— Quem é você? Tá atrapalhando meu almoço.
Rag encarou a criatura fixamente, afogando-a no azul de seus olhos por um momento. Ao redor, as pessoas menos feridas já sorriam como quem vê o próprio salvador.
— Não sou ninguém que precise saber... — O olhar estreitou, analisando a aura.
Vampiro Vagante
Força 15/100
Agilidade 12/100
Inteligência 7/100
— Afinal os mortos não contam histórias.
A mão direita foi para o interior do manto, buscando alguma coisa. O vampiro, por sua vez, focou brevemente no estranho livro que havia na mão esquerda. Um sagrado, ele pensou, já esperando que o homem sacasse um terço ou algo semelhante.
— Você parece ser da igreja. Estranho, me disseram que vocês eram bem mansos, mas tanto faz. — Deu um forte pisão à frente, confiante. — O que veio fazer aqui? Me benzer? Kaakakkaka!
Rag puxou uma pequena cruz de madeira, não hesitando antes de jogá-la para o alto de forma intensa. Ante os movimentos suspeitos, o vampiro reconsiderou:
"Não, espera… Ele surgiu do nada, será que é um Amaldiçoado!?" Seus olhos travados no objeto à metros de altura e ainda subindo. "Droga, se for isto, então pode ser perigoso! O que aquela cruz vai fazer? É a condição para ativar a habilidade? Seja o que for, tenho que me preparar para…"
Dois disparos atravessaram a cabeça do vampiro. Rag, com um pistola em mãos, recolheu sua cruz assim que ela caiu, guardando ela e a arma de volta no manto.
"Ainda bem que esses blefes funcionam, seria complicado se a luta se estendesse", suspirou, aliviado.
Três disparos certeiros que negaram qualquer reação, tanto do público quanto do próprio vampiro, cujo corpo agora jazia seco de alma no chão, já evaporando. Num tom costumeiro, disse:
— E então, não vai pegar este?
A criatura raquítica surgiu do livro outra vez, esfregando as mãos como uma mosca preparada para o banquete.
Ele é bem fraco, mas é melhor do que nada. Hora do rango!
O projeto de gremlin saltou sobre o cadáver a evaporar, abocanhando ferozmente a carne restante. Mas diferente da criatura, Rag, apesar da vitória, era incapaz de expressar qualquer felicidade ante a cena que restou.
Os feridos não comemoravam. Apesar de tê-los salvados, havia chegado tarde. Crianças e adultos jogados por cima dos cadáveres de seus entes queridos, dominados por lamentos intermináveis. Um péssimo cenário que servia como sua recepção.
"Sinto muito..." Não interromperia a despedida de ninguém, se limitando à pessoa mais próxima.
O garotinho nos braços da mãe ainda estava paralisado, num esforço imenso para não chorar ou lamentar, atos estes que poderiam acelerar sua morte por hemorragia.
Assim que Rag se ajoelhou ao lado dos dois, o raciocínio rápido da moça a permitiu agir de imediato, entregando o filho para o homem após um abraço forte.
Com um assentir de cabeça, ele trouxe o rapaz para perto de si. A mão direita sobre a cabeça do pequeno, enquanto a esquerda buscou por uma página específica em seu livro.
Viu o olhar esperançoso da mãe. Me desculpe, disse em mente, faltando a coragem para fazê-lo de fato. Era outra vez a mesma situação. Outra vez… não foi forte o suficiente; não era.
Respirou fundo e, ao fechar os olhos, rezou em voz alta para que todos os ainda vivos na praça ouvissem. A esperança de que ao menos sua presença apaziguasse um pouco o sufocante desespero.
Logo, sem direito a efeitos especiais ou qualquer outra coisa, Rag fechou seu livro e afastou sua mão. Insatisfeito, mas era o máximo que podia fazer nesta ocasião.
— Não se preocupe, eu fiz um exame e posso garantir que seu filho não irá morrer.
O rapazinho continuou paralisado, por ora ficaria abraçado à mão, agoniado demais com a falta dos olhos para sequer abrir as pálpebras.
A mulher buscava ao menos agradecer pela prece, mas além de estar isenta de voz, Rag também não escutaria ou veria seja lá o que ela fizesse. Por favor, me desculpe…
Quando a moça o encarou, viu, ajoelhado logo à sua frente, o rapaz que acabava de derrotar um vampiro. Os olhos perderam as pupilas e uma espuma branca transbordava de sua boca. Outra vez, lhe faltou força.
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