Solstice Noir Brasileira

Autor(a): Oyasumi Ene | Norman It is


Volume 1: A TRÍADE

Capítulo 1: O breu, Fear e Solstice Noir

A TRÍADE DO SOL

O Breu, Fear e Solstice Noir

 

 

No mundo em que conhecia, houve três grandes incidentes em massa que mudaram o curso da história. Os dois primeiros ficaram conhecidos como "O Breu" e "Fear". A humanidade tentou se recuperar de suas feridas, mas a tranquilidade era apenas uma ilusão passageira. A terceira grande explosão, chamada "Solstice Noir", chegou como um golpe final — uma força avassaladora que redefiniu nossa compreensão do apocalipse.

No dia da explosão, esferas escuras se ergueram sobre as cidades, obscurecendo o céu e engolindo o seu brilho. O horizonte, antes claro, transformou-se em uma massa impenetrável de escuridão. As ruas, outrora cheias de vida, ficaram desertas e silenciosas, enquanto os poucos sobreviventes buscavam refúgio em qualquer abrigo que encontrassem.

O fulgor do sol mal conseguia penetrar a densa nuvem de poeira, criando uma atmosfera de pesadelo. A esperança tornava-se um conceito distante, soterrado sob escombros. Aqueles que ousavam sair encontravam o devastador rastro da destruição: o silêncio ensurdecedor interrompido por gemidos de dor e o eco de passos hesitantes.

As notícias que chegavam das áreas mais afetadas eram aterrorizantes: comunidades inteiras haviam desaparecido, e os sobreviventes estavam à mercê de sua própria sorte, sem abrigo e sem ajuda. O medo se espalhava como uma sombra, minando a coragem dos que ainda tinham ânimo para continuar. Olhares perdidos e rostos pálidos refletiam a perda da normalidade, agora ofuscada pela insegurança e pela angústia.

À medida que a noite caía, o breu envolvia tudo, transformando cada ruína em um labirinto de incertezas. Silhuetas se moviam na penumbra, e o sussurro do vento trazia lembranças de um passado remoto. Uma sensação de opressão pairava no ar, como se a própria terra estivesse sofrendo, absorvendo a dor e a desesperança dos que ainda permaneciam. A esperança, agora um sussurro quase inaudível, parecia ser uma visão turva do que um dia foi, perdida em um mundo que se tornaria um campo de batalha contra os temores que apavorava cada sobrevivente.

I

 

KYOTO, JAPÃO

13.07.2015

7:45 AM

 

O sol nascia normalmente sobre a cidade de Kyoto, lançando seus raios dourados sobre o pico do Monte Fuji. No entanto, essa visão foi ofuscada pelas notícias daquela manhã, que trouxeram o medo pelas janelas da modesta casa japonesa onde eu morava na minha adolescência. 

Um homem surgiu à porta, sua figura envolta em uma aura de mistério. Vestia um terno preto, desbotado e amarrotado, como se houvesse sido esquecido em algum canto empoeirado por muito tempo. Seus sapatos, opacos e sem brilho, mal faziam barulho no chão, contribuindo para a paz inquietante que o cercava. O semblante era impassível, com as pupilas que pareciam refletir não apenas a luz do dia, mas também os segredos que tinha na sua própria bagagem. Ao bater na porta, seus movimentos eram metódicos, quase como se estivesse marcando o tempo em um relógio que só ele podia ouvir. O eco das batidas reverberou pelos corredores, prenunciando a chegada de algo inevitável e trágico.

O senhor de cabelos brancos e olheiras cansadas, que abriu a porta, mostrou um olhar calmo, como se já esperasse a visita daquele homem.

Então, o homem disse:

— Será que devo começar a conversa com um "bom dia" ou ir direto ao assunto, pai?

— Melhor começarmos com um "bom dia", Renji. Entre! — respondeu o velho, resmungando. 

Renji entrou, tentando esconder o nervosismo com um sorriso forçado. O velho levantou-se lentamente, num gesto que misturava carinho e leve desapontamento. Ajustou os óculos no nariz e fez um sinal para que seu filho se sentasse na cadeira oposta. A sala estava repleta de fotos emolduradas e recordações do passado, criando um ambiente que era, ao mesmo tempo, acolhedor e nostálgico. Sentando-se, buscou equilibrar a formalidade com a naturalidade, enquanto o velho se preparava para ouvir o que estava por vir. 

— Não atendeu minhas ligações. Andava fazendo birra de novo? — perguntou Renji, com um tom de irritação.

— Achei que era alguma cobrança do conserto do encanamento, já que não vejo sua cara desde o seu divórcio. — disse o velho com uma ponta de amargura na voz. 

O comentário soou como uma faca afiada, cortando o ambiente com uma mistura de ressentimento e frustração. Renji desviou o olhar por um instante, sentindo o volume das palavras bater como um soco no estômago. Ele sabia que aquela alfinetada tinha raízes mais intensas, mas preferiu não morder a isca.

— Acho justo não ter atendido mesmo — disse Renji, com um olhar isolado. Com um semblante fechado e um olhar que parecia atravessar o tempo, soltou um suspiro. Inclinou-se ligeiramente para frente, com as mãos entrelaçadas sobre a mesa.

O velho arrancou um longo suspiro, como se quisesse soltar anos de mágoa acumulada. As rugas em seu rosto, que antes pareciam apenas marcas do tempo, agora se aprofundaram, revelando a mistura de exaustão e amargura que ele carregava. Recostou-se na cadeira calmamente, a atenção era apenas em Renji, mas sem realmente encará-lo. Havia um vazio entre eles, uma distância que não se media apenas em formas não ditas.

O silêncio que se instalou era denso, quase sufocante. O velho parecia escolher as frases com extremo cuidado, como se qualquer movimento brusco pudesse quebrar algo frágil. A respiração entrecortada denunciava a luta interna: ele queria falar, abrir as portas para um entendimento, mas o medo de reabrir antigas feridas o fazia hesitar.

II

— Você veio aqui por causa das notícias que rolaram na madrugada? — perguntou o velho, enquanto pegava duas xícaras. Renji desviou o olhar, seus dedos brincando nervosamente com a borda da mesa. O retraimento entre eles transportava um peso implícito. Ele evitou o olhar inquisidor do pai, mas as reportagens ainda o amarguravam.

As manchetes eram sobre pessoas desaparecidas, cidades em caos, famílias devastadas. Renji se lembrou da sua ex-esposa à beira das lágrimas, segurando a foto do seu filho mais velho, e aquela sensação de impotência o perseguia como uma sombra persistente.

— Na verdade, não era só por isso — respondeu Renji, hesitando, com sinceridade. O velho, com uma expressão séria, despejava o café nas xícaras, a mão trêmula revelando a tensão oculta. O aroma do café preenchia o ar, mas Renji não conseguia se concentrar nele. Sua mente estava presa às notícias da madrugada.

O clima na sala parecia lotada de nostalgia e tensão, como uma tempestade prestes a estourar. Cada gesto, cada palavra, era cuidadosamente medido, como se o tempo tivesse parado. O cheiro do café, denso e reconfortante, contrastava com o ambiente pesado. O velho aguardava tranquilamente, a visão concentrada em seu filho. Ele sabia que o que viria a seguir poderia mudar tudo entre eles.

Os desaparecimentos mexiam com a cabeça dele. Ele se lembrava de rostos conhecidos, pessoas que agora eram poeiras, perdidas em uma cidade tomada pelo medo. O impacto dessas memórias tornava difícil encontrar as sentenças certas.

— A mãe do Reiko não parava de me ligar, quase em desespero, só queria saber se ele estava bem. — Renji suspirou, a inquietude visível em seu rosto. — Eu mandei um recado para Mei, avisando que ele estava seguro e que nenhuma bomba levou mais um da nossa família.

O velho respondeu com um gesto nervoso, as mãos trêmulas traçando um padrão no ar, como se tentasse acalmar o temporal dentro de si. Sua voz, normalmente firme, vacilou, revelando a preocupação que o atormentava.

— Melhor assim para acalmar aquela mulher.

— E ele, está melhor dos pesadelos? — perguntou Renji, com uma expressão preocupada.

O velho olhou para Renji, seu semblante suavizando-se um pouco ao perceber o abalo do filho. Ele se ajeitou na cadeira, os olhos passando por um momento de reflexão antes de responder:

— Melhorou um pouco, mas ainda tem noites difíceis. É como se os pesadelos não quisessem deixá-lo em paz — disse o velho, soltando um suspiro longo e cansado. Sua voz buscava a força de quem compartilha o sofrimento alheio, marcada pelo cansaço e pela empatia. As linhas em seu rosto pareciam mais sérias, esculpidas por noites de aflição incessante. Ele sabia que, por mais que quisesse ajudar, não podia afastar as trevas que atormentavam aqueles sonhos. A impotência de não poder tocar, entender o que o afligia ou consumia, tornando cada dia mais desafiador.

Renji franziu a testa, o desconforto claramente refletido em sua feição. Ele se curvou na cadeira, o corpo tenso, tentando processar a informação. Sua inquietação era notável; o olhar perdido, como se sua mente vagasse em busca de uma solução, ou ao menos alguma forma de consolo. Ele apertou os punhos involuntariamente, lutando contra a sensação de desamparo. O sentimento que se instalou era pesada, e Renji forçava-se a encontrar expressões, embora nenhuma parecesse à altura da gravidade da situação.

A sala estava envolta em uma aura de ansiedade mútua. Ambos buscavam resoluções, enquanto lidavam com os desafios que afetavam não apenas Reiko, mas também a dinâmica familiar.

— O Reiko não disse mais nada depois do último pesadelo com o Nichi. Parecia que ele queria guardar isso para si, e por isso respeitei sua decisão — respondeu o avô, olhando para Renji.

— Às vezes, sinto que ele está lutando contra algo que nem mesmo consegue entender — continuou o velho, o olhar fixo no filho. — Não quero forçá-lo a falar, mas também não quero que ele carregue esse fardo sozinho.

Renji escutou atentamente, seu rosto refletindo uma empatia inabalável. Ele cedeu um pouco para frente, e murmurou:

— Entendo, pai. Às vezes, a gente só precisa estar lá, mesmo sem saber exatamente o que dizer.

O velho assentiu tranquilamente, parecendo aliviado por encontrar alguém que dividia sua sensibilidade de impotência. A sala estava impregnada de um ruído discreto, ambos reconhecendo a dificuldade de lidar com o sofrimento de alguém amado sem ter todas as respostas.

Então, o pai de Renji começou a falar sobre o que aconteceu naquela noite. Enquanto a conversa rolava, Reiko estava preso em seu próprio pesadelo no quarto acima da cozinha.

“Nichi?”

“Eu me sentia exausto, parecia que não pertencia a nada e que ao nada permaneceria.”

“Eu estava… Morrendo?”

Então, me encontrei naquela sala branca, com a visão embaçada, como se tivesse despertado de um desmaio súbito. A confusão girava em minha mente, e, à medida que os contornos começavam a se definir, uma figura familiar emergia. Era meu irmão, a primeira figura que reconheci, mas seu semblante estava tão diferente, quase etéreo, como se ele fosse uma lembrança flutuante em meio à neblina da minha consciência. A angústia no meu peito cresceu ao vê-lo. 

— Irmão, sinto tanta saudade de você — Disse com a voz abafada por soluços profundos. As lágrimas se acumulavam em seus olhos, até que começaram a escorregar pelo seu rosto, como se fossem o único testemunho da dor que me atingia.

 Eu abracei os meus próprios braços, como se estivesse tentando me proteger da ausência que sentia.

— Seus fantasmas são reais. Consigo senti-los se alinhando em seus pulmões, recusando-se a serem expurgados. Vejo a luta que você enfrenta, Reiko; a depressão que você possui é evidente em cada contorno do seu rosto, como uma névoa densa que oculta sua essência. Mas, honestamente, isso não me surpreende. Você sempre foi fraco, um completo inútil, uma vértebra torta na nossa família. 

— Nichi, o que isso significa? Você nunca foi cruel comigo, muito menos agiria dessa forma que me corta — perguntei com a voz tremendo de desespero. Meus olhos estavam arregalados, cheios de uma mistura de medo e urgência, como se cada segundo sem soluções fosse um golpe mais profundo em meu coração. Em um ato perdido, avancei um passo, estendendo as mãos para frente, esperando que o gesto de proximidade pudesse trazer algum esclarecimento. A minha respiração estava acelerada, cada parte do meu corpo implorando por uma justificativa que pudesse, de alguma forma, acalmar a mim mesmo.

A falta de esclarecimentos dominou a sala branca em que eu e Nichi estávamos, preenchendo o ambiente com uma sensação inibidora. A quietude parecia se estender interminavelmente, até que um chiado perturbador começou a surgir. O som era agudo e constante, penetrando meus ouvidos com uma intensidade dolorosa. Cada nota do zumbido parecia aumentar a sensação de mal-estar, ressoando na minha cabeça e tornando o vazio anterior uma lembrança fria. A sala, antes tão imaculada e serena, agora parecia um cenário de confusão e desassossego, com o alvoroço incomodando como um grito invisível na escuridão.

— Irmão, que barulho é esse? — perguntei, com a voz carregada. O barulho parecia expandir a cada segundo, como uma presença desconfortável que crescia ao nosso redor. O sofrimento era sufocante. Minhas pupilas varreram o ambiente, tentando desesperadamente encontrar a origem daquela ressonância estranha e perturbante, que agora era impossível ignorar. Algo estava errado, e eu podia sentir isso no ar, como um carro que se aproximava rapidamente.

— Nichi? Me responda! — gritei, com a voz repleta de desespero e frustração. A necessidade de uma resposta estava clara em cada palavra que proferia, e o encarei intensamente, esperando uma reação ou explicação.

Me senti paralisado, em alguns segundos vi o corpo do meu irmão mais velho sendo desintegrado até mostrar seu esqueleto por completo, como se uma bomba atômica atingisse o solo daquele quarto. No entanto, eu me encontrava intacto, sem arranhão algum. Apenas via meu irmão sendo levado repetidamente, como na primeira vez em Kyoto, na minha infância.

A calmaria agora era a maior companhia que me consolava naquele momento. Meu irmão não estava mais ali; apenas o vazio que ficava comigo.

Naquela manhã, acordei de um pesadelo que não sabia como distinguir; apenas permaneci olhando para o teto por 30 minutos.

Após esse período, finalmente consegui formular uma frase completa.

“Todas as minhas tristezas tinham ido embora ao ver você.”



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