Volume 1
Capítulo 70: Vastidão Simétrica
Pouco antes dos eventos relacionados a Bleu, na hospedagem que Alaric havia reservado, encontrava-se Dolbrian. Ele permanecera para trás devido à sua recuperação de seu ferimento, cujo custo terrível ainda se fazia presente, apesar de estar curado.
Seu corpo repousava sobre a cama de solteiro, envolto por um cobertor grosso que alcançava até o peito.
— ...Odeio ser um fardo... — Um longo suspiro seguiu essas palavras. Dolbrian sempre foi um homem simples e reservado, sentir-se apenas como um peso para seus netos o deixava extremamente desconfortável. — Esta ferida...
Ele deslizou sua mão por baixo do cobertor e das roupas até chegar ao ferimento, localizado logo abaixo do peito. Seus dedos exploraram a textura da enorme cicatriz que marcava seu corpo.
"Ah, será que ainda está aqui?" Retirando a mão da cicatriz, ele a levou até o bolso e explorou-o por alguns segundos, revirando-o até sentir o frio gélido do metal. "Achei!"
Ao retirar a mão do bolso com o objeto, vislumbrou aquilo que guardava com tanto carinho: o colar de Vithória. Lembrava-se nitidamente de quando Santica apareceu em sua porta grávida de Gideon, usando esse colar no pescoço para provar sua ligação com o passado.
— Será que deveria tê-lo entregado a ele? — Enquanto admirava o colar, refletia sobre se deveria ter entregado ao seu neto, afinal, no fim das contas, pertencia a ele. — Vou fazer isso assim que possível!
Sua alma estremeceu; uma sensação de perigo percorreu seu corpo como um aviso em meio a uma tempestade iminente, que se formava no céu.
— Alaric! Gideon! — Saltou da cama, ignorando qualquer ferimento ou recomendação de descanso, e correu em direção ao perigo. — Não importa o que seja, irei lhes proteger com minha vida!
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Após Bleu entoar a invocação de seu domínio inerte, a planície outrora verdejante deu lugar a uma paisagem azul. O solo gramado foi substituído por pisos brancos, polidos até reluzirem, que estendiam-se em todas as direções, formando padrões repetitivos que se encontravam harmoniosamente no horizonte. Ao fundo, peças quadradas organizavam-se em pirâmides, enquanto bolas de circunferências impecáveis pendiam no alto. O céu, com seu azul profundo e sereno, ecoava a ordem e a precisão que reinavam neste domínio.
— Bem-vindo ao mundo simétrico! — Com os braços abertos e girando como um pião, Bleu apresentava seu maior trunfo e motivo de orgulho. — Este é o domínio da Vastidão Simétrica!
Dolbrian estava confuso; em um instante, toda a paisagem mudou. Mas ele já estava familiarizado com esse fenômeno, tendo enfrentado outros domínios antes, mesmo que raramente, devido à raridade e ao alto custo energético dessa técnica.
Enquanto sua visão percorria o domínio, sua mente trabalhava incessantemente para descobrir quais poderes ou técnicas aquele lugar poderia empregar.
“O aumento de força e agilidade são óbvios, mas e os especiais?” O aumento de força e agilidade era comum, mas Dolbrian se perguntava sobre os poderes que realmente representavam um perigo verdadeiro.
— Está tendo descobrir quais as técnicas daqui? — perguntou, com um sorriso prepotente. — Logo, logo, você irá descobrir.
Dolbrian sentiu um perigo iminente e saltou, evitando por pouco uma rajada de energia que se dissipou ao tocar o solo, fornecendo algumas respostas.
— Cortes? — Ele sentiu uma satisfação ao desvendar a provável técnica do domínio. No entanto, em meio à sua glória, algo chamou sua atenção: dois corpos no chão. — Gideon!? Alaric!?
Para azar do ancião, os dois estavam no raio do domínio e foram pegos por ele, agora expostos ao perigo. De forma abrupta, ele avançou até os dois e se colocou à frente de seus corpos. Mesmo que os cortes o ferissem, não importava; ele suportaria tudo por seus netos.
— Relaxa, não irei machucá-los. — Com um singelo estalar de dedos, dois blocos retangulares emergiram abaixo deles, elevando seus corpos inconscientes até a hipotética segurança. — Agora, não posso dizer o mesmo de você…
"Ele não quer machucá-los?" O ancião sentiu-se confuso diante daquelas palavras. No fim, o que aquele demônio realmente queria?
As respostas teriam que esperar, pois outra rajada de energia, em forma de corte, avançava em sua direção. Girando o corpo, desferiu um soco direto nela, dissipando-a.
“Os punhos suportam esse tipo de energia… ainda bem…” O alívio invadiu seu coração, pois ele não sabia se seus punhos seriam capazes de dissipar a energia ou se seriam cortados, até a acertar.
— Seus punhos são realmente poderosos — alçando voo, começou a rodear o velho, quase se tornando um borrão azul. — Mas e sua velocidade? Será suficiente?
Dolbrian lutava para acompanhá-lo com os olhos, mas a tarefa estava se tornando árdua. Tão rápido quanto seu pescoço girava em seu próprio eixo, o primordial voava, provavelmente dando cem voltas em menos de um minuto.
Se fosse apenas esse demônio rodopiando como um idiota, estaria tudo tranquilo. Mas o problema apareceu quando, por onde ele passava, cortes começavam emergir, e em uma única volta, centenas de cortes voavam em direção a um único alvo: o ancião.
Dolbrian não teve outra opção senão lutar por sua vida, dissipando cada corte. Ele girava, pulava, desferia socos; seus punhos eram apenas um borrão que avançava e recuava em preparações para novos golpes. Os cortes, por mais numerosos que fossem, não transpassavam daqueles punhos cerrados.
— Você é realmente poderoso... — elogiou Bleu que cessou o movimento, e sua expressão desdenhosa se fixou no velho, que começava a mostrar sinais de cansaço. — Mas… seu corpo já não é como antes, é o problema dos mortais...
A velhice alcançava a todos, e Dolbrian, mesmo sendo um ex-escolhido, não escapava dessa triste verdade. Apesar de seus instintos afiados, sua ampla gama de movimentos de luta e sua grande força física, seu vigor diminuiu. Isso já era evidente pelo suor em sua testa e seus socos cada vez mais lentos, menos vigorosos.
E em meio a esse cansaço, um corte perfurou a proteção de seus socos; sua única reação foi desviar para o lado, e o corte passou arrancando um pedaço do seu ombro.
— Argh! — Apesar da dor infernal, não podia se deixar desconcentrar; só lhe restava ignorar as dores da carne e continuar socando.
Os cortes começaram a diminuir até cessarem por completo, e o ancião, com a respiração tão pesada quanto a de alguém com crise de asma, sentiu um alívio momentâneo. Ao examinar seus punhos, notou os cortes e arranhões; mesmo com toda sua dureza, estavam começando a ser feridos devido à quantidade massiva de cortes que vieram.
— Por que tudo isso? — indagava Dolbrian, levando a mão até o ombro ferido; ao toque, uma ardência percorreu a região, fazendo-o fazer caretas dolorosas. — Por que atacou meus netos!?
Bleu, que havia aterrissado no chão, pouco se importou com a indagação; outra coisa o estava incomodando como uma farpa.
— Tsc… O corte foi completamente assimétrico. — Em um movimento ascendente com a katana, lançou um corte que pegou Dolbrian desprevenido, cortando um pedaço do outro ombro. — Melhor, agora está mais simétrico.
O ancião vacilou e suas pernas tragicamente perderam as forças, derrubando-o sentado no chão. Ao olhar para o ombro que há segundos estava íntegro, viu apenas sua carne. O corte foi perfeito, sem uma única falha, até o ponto onde os dois ombros foram cortados, tudo era igual.
Ao voltar sua atenção para o algoz, deparou-se com um espaço vazio, onde o demônio deveria estar. "Cadê ele!?"
Foi então que sentiu a sede de sangue vindo de cima, ao inclinar a cabeça. Seu olhar encontrou os olhos azuis do primordial, que vinha em um mergulho com a katana preparada para fincar-se no ancião. Quando estava próximo de atingi-lo...
Boomm!
Um som de explosão, proveniente do encontro do demônio com o chão, e pairando no céu estava Dolbrian, que havia conseguido fugir da zona de impacto.
Sem tempo para reagir, Dolbrian sentiu algo maciço acertar suas costas, arrastando-o pelo ar. Usando toda a força que tinha, girou o corpo na direção daquilo que o empurrava, encontrando-se com um retângulo azul que parecia não ter fim.
Jogando suas pernas contra o retângulo, impulsionou-se para frente, preparando o punho. Quando a peça geométrica se aproximou, desferiu um murro que estremeceu todo o local. O impacto fez o peça rachar, e dessas rachaduras surgiram outras, despedaçando o retângulo em milhares de pedaços.
Os fragmentos começaram a cair do céu, formando uma chuva geométrica. Dolbrian desviou o olhar para baixo e, para seu desespero, viu Bleu parado, observando-o de soslaio.
Um fragmento obstruiu sua visão, ocultando o corpo do demônio. Quando finalmente desobstruiu, o primordial já não estava mais lá. Seus olhos estreitaram, movendo-se de um lado para o outro em busca de Bleu.
— Em cima... — Ao virar na direção da voz, o ancião viu o demônio se aproximando. Este desferiu dois golpes, o primeiro vertical em seguida horizontal. Dolbrian os defendeu com os punhos outra vez, porém não conseguiu se proteger do chute que o lançou em direção ao solo mais uma vez. — É incrível que você ainda esteja vivo…
— Argh! — Seu encontro com o chão foi doloroso, sentiu que alguns ossos haviam se quebrado. Mas ele não podia desistir, não podia se deixar vencer, seus netos dependiam dele. — Mais uma vez, porque está atrás deles!?
Bleu pousou diante dele, com um semblante sereno que contrastava com o embate iminente. Balançou sua katana e apontou-a para o velho.
— Ordens de alguém mais poderoso do que qualquer ser no inferno, exceto Pandora, ou no mundo terreno.
"Ordens?" Quem teria dado a ele essa ordem, alguém mais forte do que quase todos no inferno? Dolbrian começou a ponderar, eliminando possibilidades até chegar a três nomes.
— O Primordial Branco e o Primordial Preto? — Seus ombros estavam tingidos de sangue, sua boca já exibia sinais de vermelhidão. — E… Pandora?
— Talvez, mas chega de palavras vazias — disse, avançando na direção de Dolbrian, pronto para dividi-lo ao meio.
— Realmente, chega de palavras vazias — O ancião assumiu uma posição de combate, ajustando a base e estendendo um punho à frente. Um sorriso, que até então não havia aparecido em seus lábios ensanguentados, surgiu. — Projeção Punhal!
Bleu não compreendia o significado dessas palavras, mas logo percebeu. Do punho estendido do velho, uma aura se expandiu, e quando estava próximo, o demônio viu aquele punho projetar outro, com o tamanho de um gigante.
Frear já não era mais uma opção, e assim o primordial recebeu o golpe em cheio. Como era um punho imenso, seu corpo inteiro foi atingido. Foi como ser atropelado por mamutes. Seu corpo se contorceu, seus ossos quebraram, e assim ele voou centenas de metros.
Enquanto ainda lutava para manter a consciência no ar, suportando a dor de ter vários de seus ossos destroçados, o demônio viu o ancião surgir acima dele.
— Barragem de Murros! — E assim seus punhos projetaram vários do mesmo tamanho, que juntos desferiram golpes impiedosos, como uma barragem sem fim. Cada soco era mais doloroso que o anterior, e eram centenas, culminando no golpe final: — Projeção Punhal: Vórtice Perfurante!
Combinando a projeção punhal, que criava uma projeção gigante de seu punho, com o vórtice perfurante, que gerava uma espiral no golpe, o ancião lançou esse poder para trás, preparou-se e um sorriso confiante surgiu em seu rosto.
Enquanto o demônio ainda estava atordoado após a barragem, seus olhos refletiam o golpe que o destroçaria. Então, o ancião enviou o golpe, o punho projetado viajou e, no meio do percurso, girou no próprio eixo, acertando em cheio o corpo do demônio. O vórtice torceu seu corpo, transformando-o em uma espiral bizarra de carne, ossos e músculos, que atingiu o solo.
— Acho que isso encerra de uma vez por todas sua vida — afirmou Dolbrian, pousando no chão ainda gravemente ferido, seu corpo já esgotado. — Você até que er-
Suas palavras travaram em sua garganta, sua boca se abriu, e seu corpo quis retroceder ao presenciar a aberração diante de si. A pilha de carne torcida começou a se mover, os músculos se endireitaram, os tendões se reconstituíram, os ossos se uniram novamente.
Em uma visão grotesca, aquela massa disforme que ninguém diria ser um ser humanoide, voltou ao normal. Foi uma regeneração além de qualquer coisa divina, muito além de tudo o que o ancião já havia presenciado em sua vida.
— Você... — Bleu mantinha a cabeça baixa, sua mão pressionava o cabo da arma com tanta força que poderia partir um homem ao meio. — Você me torceu e retorceu, me deixou assimétrico... você!
Sua aura se expandiu por todo o domínio, suas feições tornaram-se animalescas, um ódio que ultrapassava qualquer medida. Seus dentes rangiam uns contra os outros, ameaçando se esfarelar.
“Isso é loucura...” Antes que pudesse reagir, sentiu a leve brisa e sua visão escureceu, ou melhor, avermelhou, pois o primordial estava à sua frente, olhando-o de cima.
Sem hesitar, Dolbrian lançou um poderoso soco em seu estômago, mas o primordial firmou os pés, então quando o murro o atingiu, ecoou seco e seu corpo permaneceu imóvel. No entanto, o golpe foi feito com tanto ímpeto que o punho do ancião acabou atravessando-o de fora a fora, levando alguns de seus órgãos pelo caminho.
— Ainda não entendeu que sou imortal? — Ao ouvir o ancião, tentou recuar o braço, mas o demônio flexionou os músculos, mantendo-o parado. Ergueu sua katana e, sem piedade, a desceu em direção ao braço preso do velho, partindo-o ao meio.
Dolbrian deu dois passos hesitantes para trás, seu sangue estava tão quente e a adrenalina tão alta que a dor não veio imediatamente. Só percebeu que seu braço havia sido decepado ao olhar para onde deveria estar sua mão e ver que até a junção de seu cotovelo não existia mais nada. O sangue irrompeu, espirrando pelo ferimento e manchando o solo branco, impecável.
— Aaaaaaaaah!! — Quando a dor finalmente veio, foi algo indescritível em palavras. Seu coração parecia prestes a saltar do peito, suas pupilas dilataram como nunca, em um instante ele perdeu um membro tão precioso quanto seu braço, uma de suas armas.
Apertando os dentes, tentou conter seus gritos, mas era difícil; a dor era lancinante. Seus passos tornaram-se desengonçados, sua atenção vacilante. Sua vida estava cada vez mais próxima do fim. Aproveitando o momento vulnerável do velho, Bleu estalou os dedos e dois blocos azuis emergiram das paredes, prensando o ancião ao meio, mantendo-o imóvel.
— Se seus seus braços são suas armas, então seus braços irei arrancar. — O primordial parecia mais tranquilo, apesar de ainda estar incomodado por ter ficado assimétrico por alguns instantes. Mas causar dor, torturar, o acalmava. — Mas acontece que apenas um cortado fica assimétrico, por isso...
Dolbrian se debatia em desespero, tentava se desvencilhar daqueles blocos. Seu maior tormento e vontade de se livrar, era porque entendia o significado daquelas palavras. Mas, por mais que se debatesse, por mais que tentasse, seu corpo permanecia imóvel.
No topo do retângulo, os dois jovens começavam a recobrar a consciência. Ao abrir os olhos, sentiram-se confusos por não reconhecerem o local onde estavam. No entanto, os gritos de seu avô chamaram suas atenções.
— Fiquem aí! — ordenou Bleu. Quando os dois se levantaram para salvar seu avô, dois blocos desceram do céu e acertaram suas costas, mantendo-os imóveis. — Um de vocês cria espadas que voam, não é?
Assim, uma caixa de vidro transparente apareceu, mantendo os dois presos. Alaric não podia usar seus poderes daquela maneira.
— Soltem meu avô!! — rugiu Gideonz, estreitando o olhar em ódio. — Ou eu-
— Vai fazer o que? — perguntou o demônio, segurando a outra mão do ancião com toda a delicadeza. — Você não pode fazer nada, é tão inútil quanto qualquer outro. Apenas assista calado.
— Solte ele, seu desgraçado! — gritou Alaric, também sentindo-se impotente, suas palavras eram vazias de ameaça, não representavam nada mais que letras desprovidas de poderes.
Imobilizados, restritos a apenas observar em desespero seu avô sendo torturado, seus gritos não adiantavam, eram inúteis. Dolbrian, percebendo que seus netos estavam desamparados e atormentados, fez o que um avô faria: sorriu, um sorriso vermelho, tentando transmitir tranquilidade.
No entanto, seu sorriso logo se transformou em um macabro semblante de agonia. O homem que sempre transmitiu força e segurança estava sofrendo, e a causa era evidente: Bleu acabara, sem qualquer respingo de piedade, de decepar seu outro braço.
Os olhos de Gideon se esvaziaram, fixando-se apenas no sangue que jorrava. Alaric assumiu uma expressão de ira, uma ira que nunca se apagaria. Juntos, os dois testemunhavam o sofrimento daquele que os criou e cuidou, viam aquele que sempre sorriu agora perder o sorriso, e seus olhos se encherem de lágrimas.
“Não posso chorar, eles não podem me ver chorando!” Mesmo com sua alma clamando por alívio, Dolbrian não permitiria. Ele nunca choraria; até em sua morte, o homem que seus netos veriam seria aquele forte, que não tinha tempo para lamentações.
— Pronto para o fim? — indagou Bleu erguendo a katana, pronto para decapitar o velho.