Ryota Brasileira

Autor(a): Jennifer Maurer


Volume 2 – Arco 2

Capítulo 24: Despedida

Os dias no casarão de Puccón se passaram rapidamente. A antiga mansão, em meio à floresta, fora abandonada e limpa após a luta. Posteriormente, segundo a duquesa, ela seria desmoronada. Graças à Eliza, com suas habilidades além da compreensão, conseguiram reparar os danos causados na floresta e desfizeram as duas barreiras.

Enquanto o tempo passava, Ryota estava em fase de recuperação e passou dias treinando ao lado de Zero em combate corpo a corpo. O guardião se surpreendeu com sua evolução estratégica mas, mais do que isso, com a força bruta dela. Tinha ficado muito mais forte.

Ainda havia a questão do despertar do chi da garota. Havia tocado no assunto brevemente com Zero, mas ele disse que seria um problema forçar a explosão de poder para fora sem estar bem fisicamente, então resolveram aguardar. Embora, como previsto, ela viera tentando fazer uso de seus poderes novamente em treinos na madrugada, mas sem grandes sucessos. 

Havia comentado sobre a possibilidade de seu chi ser Huo, devido ao que experimentou nas duas outras vezes no passado. Kanami, para sua surpresa, também fazia uso do elemento e jurou que a auxiliaria no treinamento. Seria muito mais fácil, uma vez que a guardiã era espetacular no que fazia. Entretanto, precisariam esperar.

Naquele dia estava fazendo sol, mas uma ventania meio violenta balançava as árvores. Logo iria chover. A passos lentos, Ryota caminhou pelos corredores da casa Minami e se dirigiu ao jardim, mas acabou parando quando uma presença surgiu ao seu lado. 

Segurou o pulso dele bem a tempo da faca quase triscar sua cabeça. 

— Bom dia pra você também, cabelinho.

— Isso foi muito rude com a Ryota, querido irmão. 

— É apenas uma forma casual de conversarmos, querida irmã.

Ryota cumprimentou com um sorriso lateral os gêmeos, Kanami e Sora Akai, respectivamente. Enquanto desconjurava a transformação de Pollux, retornando a ser um anel, Sora retrucou o sermão rotineiro da irmã.

Curiosamente, Ryota já não tinha mais medo de Sora. O tempo que passaram juntos, mesmo que dificilmente se entendessem completamente, eram recheados de memórias divertidas. Passaram a prezar pela presença um do outro.

Embora o guardião nem sempre fosse tão tranquilo quanto parecia e muitas vezes fazia coisas de um jeito nada gentil.

— A-Ah, Ryota… Terminei aquele livro que me recomendou.

Imediatamente, os olhos da garota brilharam de emoção e ela segurou as mãos de Kanami, exasperada.

— Sério?! O que achou? Qual sua parte favorita? Aquele vilão do final… Tem um plot muuuuito bom, não é? Mesmo ele sendo um arrombado. Qual seu personagem favorito?

Kanami deu um sorriso suave.

— Gostei muito.

— Foi um saco. — Sora se intrometeu, apertando a ponte do nariz com os dedos. — Noite passada, depois que terminou de ler, ao invés de se concentrar na patrulha, ela ficava olhando para o nada, distraída. Toda vez você fica inventando uma besteira nova que atrapalha o desempenho de minha irmã. Um belo mal exemplo.

— Oi?! A culpa não é minha se o final é triste e o protagonista morre!

— E ainda por cima sai contando spoiler! Vê, Kanami? Deveria repensar suas amizades e não se envolver com essa gentalha inculta.

A discussão seguia fervorosamente, mas de uma forma bastante cômica. Sora apontava qualquer falha em atos ou falas de Ryota, que tentava retrucar, rindo, e Kanami apenas olhava de um lado para o outro, com as mãos no peito, num sorriso pequeno.

— Oh, b-bom dia, pessoal. Estão b-bem animados… Hoje?

— Fala pra ele, Liz!

— Fala pra ela, madame Eliza! 

A dupla gritou em uníssono, assustando a curandeira que se aproximava lentamente. Kanami arqueou as sobrancelhas e explicou:

— Estão discutindo a manhã toda, como sempre.

— De novo…? 

Eliza inclinou a cabeça, risonha, e foi agarrada nos braços por Ryota.

— Ei, Liz, não é verdade que protagonistas trágicos com histórias de fantasia são muuuuito legais? 

— H-Hã… Eu…

— A madame Eliza não é uma criança, Ryota. — Sora apontou para as duas, num gesto exagerado — É claro que alguém como ela preferia ler contos maduros, como boas histórias de ficção científica e policial.

— Até parece! Você fica dormindo no meio da coisa toda e o responsável é sempre o cara mais óbvio! Não é, Liz? 

A dupla se voltou para a curandeira, aguardando uma resposta dela. Completamente nervosa por ter toda a atenção voltada para si, disparou:

— E-E-Eu gosto de romances!

Silêncio.

Então um zumbido. Ou melhor, um grunhido de insatisfação das duas figuras após terem suas expectativas jogadas no lixo.

— … Romance? Sério?

— N-N-Não me olhem a-assim! Eu gosto, está b-bem? São reconfortantes!

Ryota fez a pergunta lentamente, ao que Eliza respondeu, enrubescida e envergonhada. Sora apenas a julgou em silêncio.

— Muito bem, Kanami, você decidirá nossa situação!

— Kanami! 

Os dois olharam para a gêmea, que se encolheu e virou o rosto.

— Peço desculpas, mas gosto de ambos os gêneros.

Após um curto silêncio, Ryota riu, coçando o nariz.

— B-Bem, é claro, minha querida amiga Kanami é alguém muito compreensiva e tem todo o direito de aproveitar todos os tipos de livros.

— Naturalmente, minha querida irmã é sensata em suas decisões e escolhas.

— É s-sério que só v-vão me julgar?!

— O que é todo esse barulho logo cedo?

Após Ryota e Sora darem de ombros para as palavras de Kanami - que ainda estava aprendendo a distinguir seus gostos -, e Eliza aumentar o tom de voz para a situação injusta, uma quinta pessoa se aproximou dando um tapa na cabeça da garota de cabelos negros.

— Zero! É isso! Eu preciso de você! — Tendo uma ideia instantânea ao vê-lo, ela se agarrou nele com os olhos brilhantes. Zero estremeceu, um pouco desconfortável pela aproximação repentina. — Fantasia ou policial?

— É-É-É o quê?! Que tipo de conversa indecente vocês estão tendo em voz alta?!

— M-Mas foi você quem gritou agora…

— … Indecente?

Ao grito dele, que entendeu totalmente errado a situação, Eliza e Kanami se pronunciaram em voz baixa.

Sora bufou.

— É claro que um qualquer como você teria uma mente poluída dessas, pensando em coisas assim.

— E-E-Eu não p-pensei em nada! E cala a sua boca, seu maquiadinho de merda!

— É um delineado natural, imbecil!

— Isso não existe, seu emozinho! — Zero, ainda enrubescido de vergonha, foi pra cima de Sora, que fazia uma careta, e puxou sua gola.

— Ei! P-Parem de gritar! Estão m-me deixando com vergonha!

— Você também tá gritando, Liz!

A situação se descontrolou rapidamente e, enquanto os serviçais passavam, evitando se meter na confusão, Kanami apenas se desculpava pela indelicadeza de todos com o sorriso bobo no rosto. 

O que começou com um simples cumprimento desandou totalmente. Ryota discutia com Eliza a respeito dos livros, tentando convencê-la do contrário, enquanto Kanami apenas respondia baixinho algumas coisas. Zero, irritado, discutia com Sora com palavras e argumentos nada racionais ou convincentes. 

Assim eram as interações entre eles, quando não estavam a trabalho. Como amigos de longa data, brigando e rindo uns dos outros.

Foram dias de paz.

***

— Ai, ai, desculpa. Eu juro que não vou mais comprar briga com o cabelinho, tá? Não me ignora assim, Zeroooo…!

Após o fervo anterior se encerrar, a dupla saiu do casarão em direção ao jardim, finalmente. 

— Cês demoraram, hein?

— Foi mal, tio. É que acabou rolando uma treta lá dentro e agora o Zero tá de ciuminho, então.. Sabe como é, né?

Jaisen, de braços cruzados, riu quando a garota cutucou a bochecha do amigo, que não a olhava, irritado. Mas, ao ouvir a parte final da frase, a cutucou na barriga, apenas para ignorá-la novamente logo em seguida.

Ela suspirou e então olhou para o tio, que acenou com a cabeça.

— Vamos?

Os dois a olharam e assentiram juntos.

***

Estavam todos de preto. Era estranho vê-los com aquelas roupas em pleno sol, embora o céu desse indícios de uma futura tempestade. Ainda mais estando em meio a um campo cheio de flores coloridas. Algumas delas foram colocadas em cima dos túmulos e os três oraram de olhos fechados para os que já se foram.

— Eu voltei, pessoal.

Retornar para o cemitério de Aurora após quase um mês era esquisito. Havia um misto de sentimentos a envolvendo, mas nenhum deles era ruim a ponto de fazê-la passar mal, como da outra vez. Havia, sim, saudades, tristeza… Mas não raiva. Foi por isso que pôde aproveitar o pequeno momento de silêncio para conversar mentalmente com cada um deles.

— O tio Jaisen me falou tudo. Sobre vocês terem decidido se sacrificar, sobre o passado e o motivo de Aurora existir… Como eu disse pra ele antes, e vou continuar a dizer: Não importam os motivos, não importa o que fizeram no passado… Não vou perdoá-los por tomarem essa decisão.

Ela franziu o cenho, olhando para o túmulo de Ian e Nessa um ao lado do outro.

— Mas… Me desculpem. Eu falhei com vocês, mais de uma vez. Achei que já tinha chorado e lamentado o suficiente, mas parece que sou emocionada demais — ela riu, enquanto a lágrima escorria e pingava no chão. Fungou. — Muito obrigada por terem sido minha família. Obrigada por tudo o que me ensinaram. Obrigada por terem me acolhido e me amado… Amo vocês.

Inspirando fundo, ela se colocou de pé e limpou o rosto. Atrás de si, Zero e Jaisen ouviram suas palavras em silêncio. Uma luz reluziu no céu que escurecia e o vento ficou mais forte.

Se virando, Ryota deu um sorriso amarelo para a dupla.

— Posso… Ficar sozinha um minuto? 

Ela instintivamente olhou para Zero, desejando que compreendesse a mensagem quando sinalizou com a cabeça para a esquerda. Então ele assentiu seriamente e a deixou caminhar para os fundos do terreno… Onde um túmulo secreto estava.

— Vocês mudaram.

— Mesmo?

— Sim. 

Zero riu com a garganta para o comentário de Jaisen. 

— Foi só ela quem mudou. Eu continuo o mesmo… Desde sempre.

— Isso não é verdade, guri. 

A mão gigante dele bateu com carinho no topo da cabeça do outro e fez um cafuné nos cabelos violetas do rapaz, que ergueu os olhos melancólicos.

— É sim… Eu dedico a minha vida a uma só coisa, sempre. No passado, foi a mesma coisa. E, agora… Meu papel é ficar ao lado de alguém. É ser o pilar. Nada mais.

Foram poucas palavras, mas o simbolismo delas era forte. Zero jamais havia contado a verdade sobre sua família para ninguém - a não ser Albert, que estivera presente. Mas Jaisen e Ryota sentiam que o jovem carregava um fardo diferente, mas nunca o forçaram a contar.

Afinal, aquilo não era importante. Em Aurora, no vilarejo da paz, o passado dos moradores era apenas um detalhe. Ali, as pessoas podiam recomeçar tudo… Ou, ao menos, podiam tentar.

— E por que isso seria ruim? Ninguém consegue viver sem um pilar… Sem algo para se apoiar. Nem eu, nem você… E nem ela.

Os dois pares de olhos se direcionaram para a garota, apenas um ponto vermelho ao longe, agachada.

— Ela não vai te abandonar. 

Zero arregalou os olhos e prendeu a respiração. 

— … E eu também não vou. 

Fungando, o rapaz deu um soquinho fraco no peito de Jaisen, num meio abraço.

Eu não preciso mais me preocupar com o meu passado… Os Furoto não fazem mais parte de mim. Agora eu tenho uma nova família, e uma garota que eu gosto. É o suficiente.

Assim pensou ele, encabulado, sentindo o calor da pessoa que considerava um pai.

***

— Oi. Como você tá? Já faz um tempo, né? Desculpa não ter vindo te ver antes, mas eu não tava muito bem… Acho que cê sabe, né?

Um riso melancólico escapou da boca dela, e Ryota olhou para o túmulo de Stella. Havia uma metafórica estrela amarela cravada na terra.

— Aconteceram coisas demais e nem sei por onde começar. Antes de tudo, queria dizer que estou indo agora. De vez. Mas eu vou voltar sempre que eu puder pra ver todos vocês e pra contar as novidades. A gente adorava fofocar, né?

Enquanto falava, os risos bobos e nostálgicos escapavam. Não era difícil conversar desse jeito, como se ainda estivesse falando com ela. Como se pudesse vê-la rindo, com a mão na boca, e respondendo com seu grande sorriso.

— Sinto sua falta. É difícil não vir te ver… Naquele dia. Eu ainda sou fraca demais, por dentro e por fora. Vou tentar lidar com isso, mas vai ser devagar. Beeem devagarinho. 

Inclinando a cabeça, Ryota olhou para a foto meio arranhada. 

Na imagem, Stella abraçava a pequena Ryota por trás, e ambas riam. Uma foto tirada por Albert, quando tudo ainda estava bem. Antes do primeiro inferno.

Quando seus lábios tremeram, algo pousou suavemente em sua mão. Fazendo cócegas enquanto rolava até escorregar pela imagem, uma bolinha branca - sementes de dente-de-leão - se desmanchou e voou com vento.

Foi um toque tão suave que a fez fungar.

— Sim, eu também te amo, mãe.



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