Volume 2 – Arco 2
Capítulo 1: Os Guardiões Gêmeos e a Curandeira Particular
Ryota acordou com o som e o balanço do trem parando na enorme estação.
Os barulhos quase ensurdecedores que vinham da grande máquina pareciam corroer seus ouvidos. Lentamente, mas não da forma com que esperava acordar, a garota limpou seus olhos umedecidos e espreguiçou-se ainda sentada. Uma dor machucou seus ombros e costas quando se esticou — algo já esperado, uma vez que dormiram sentados durante horas e com uma postura nada agradável.
O vagão em que viajaram estava consideravelmente vazio se comparado aos demais. Ryota olhou através da janela e acordou completamente ao analisar a situação em que se encontrava. A estação, além de barulhenta e estranha, era cheia de pessoas mal humoradas e vestidas de forma quase uniforme. À primeira vista, isso já a desagradou completamente. Não que ela tivesse grandes expectativas quanto ao “mundo lá fora”, mas sua primeira impressão do que poderia ser uma cidade grande tinha acabado de ser arruinada. A ideia de que poderia ser um lugar cheio de pessoas diferentes, coisas novas e conhecimento não era falso, mas era apenas parte do idealismo que ela tivera sobre as cidades que tanto ouvira falar.
Naquele momento, vendo aquele ambiente sombrio e cinza, Ryota, mais do que nunca, sentiu falta de sua esverdejante casa em Aurora.
Piscando algumas vezes, ela finalmente olhou para as duas pessoas que estavam sentadas ao seu lado. À direita, quase tampando a janela, um homem grande e que parecia dormir profundamente ocupava o assento. Ryota deu uma analisada em sua aparência e suspirou tranquilamente ao perceber que, de fato, não havia nenhum sinal dos poderes da Insanidade agindo. Na realidade, Jaisen parecia dormir perfeitamente bem para alguém que estava sentado e de pescoço virado.
Embora ela soubesse que provavelmente a maior luta dele seria interna devido ao poder de criar ilusões da Entidade, saber que ao menos externamente nada mudou a tranquilizava um pouco. Porém, ela temia o que poderia acontecer quando Jaisen finalmente abrisse os olhos. Como será que ele reagiria? Como ela sequer poderia contar a ele o que aconteceu? Será que ele a culparia por ter abandonado Nessa e os outros durante o ataque? Será que ele a culparia por quase ter morrido enquanto não fazia nada? Será que…
Talvez seu nervosismo tivesse transparecido, pois uma mão quente segurou a sua mão esquerda. Era apenas um pouco maior do que a dela, mas infinitamente mais delicada — o que era engraçado, considerando que normalmente as mulheres eram as que cuidavam mais da própria aparência.
Não que Zero fosse avarento nem nada do tipo. Era Ryota quem deixava a desejar quando o assunto era cuidados pessoais. Ela só reparou em como suas mãos eram feias comparadas às dele naquele momento, quando se tocaram. Suas unhas eram curtas e ralas, a pele das mãos ao toque era áspera e cheia de machucados. O completo oposto das dele.
Ela não tinha certeza do porquê percebera isso naquele momento, mas a verdade foi que sentiu vergonha de si mesma.
Talvez porque ela finalmente tivesse percebido que estava em um lugar completamente novo. Um mundo diferente, onde as aparências e as palavras importavam. Como alguém que viveu a vida toda no interior, rodeada de pessoas que se tratavam como família, pouco importava a aparência ou a forma de falar de alguém desde que houvesse saúde e felicidade.
Mas as coisas estavam mudando agora. Ou melhor, elas já tinham mudado. O tempo não esperava que as pessoas se adaptassem a ele, e Ryota precisava, mais do que nunca, aceitar esse fato.
***
O desembarque do trio na estação e a caminhada para fora dela foi extremamente desagradável. As portas do trem se abriram fazendo um som semelhante a um rugido, e o grupo se encaminhou lentamente para fora. Como Jaisen ainda dormia, a dupla precisou apoiá-lo um de cada lado para caminharem. E, como esperado, era bastante esquisito que dois adolescentes carregassem um adulto desacordado.
— Foi uma viagem longa e difícil para ele, senhor — explicou Zero a um guarda de segurança que os parou repentinamente na porta. Como Ryota entrou em choque, sem saber o que falar, o rapaz tomou a iniciativa calmamente — Vamos levá-lo ao lado de fora para tomar um ar e acordá-lo para comer algo e pegaremos o próximo trem logo em seguida.
O homem de expressão emburrada e tediosa olhou para o trio estranho e para os documentos que tinha em mãos. De alguma forma milagrosa, eles tinham sobrevivido ao incêndio em Aurora porque Jaisen e Ryota os carregavam constantemente em seus bolsos — uma prática não muito adotada na cidade grande, mas que Zero resolveu respeitar.
A maior preocupação dele seria quanto à espada que estava na mochila de Ryota, só podendo ser percebida pelo pouco do cabo que vazava dela. Por sorte, ela era maleável ao ponto de diminuir de tamanho consideravelmente, mas não o suficiente para caber numa pequena e gasta mochila. Não era proibida a leva de armas em viagens, mas seria um problema caso eles fossem interrogados além da conta.
— Hm. — Foi tudo que o guarda resmungou ao olhar para as fotos da identidade e para os três, focando-se especialmente em Zero por um instante — Bem, são maiores de idade, então tanto faz. Apenas não causem problemas.
— Obrigado, senhor.
Zero baixou levemente a cabeça quando o segurança se foi depois de devolver os documentos, então olhou de relance para Ryota e sinalizou com a cabeça antes de sussurrar:
— Vamos.
O trio chamativo caminhou para fora da estação de trem. Ao chegarem onde a luz do sol os alcançava, Ryota não pôde conter um suspiro de tranquilidade ao respirar um pouco de ar fresco. A área de descanso era um local fechado e rodeado por uma densa floresta, mas grande o bastante para que as pessoas pudessem descansar comendo algo das barracas e trailers, sentando-se nos bancos e conversando.
— Só mais um pouquinho e logo pararemos para descansar.
— … Certo.
Ryota acompanhou Zero sem fazer grandes perguntas em público, mas acabou se surpreendendo quando eles se afastaram ao máximo de todos e, da forma mais discreta que conseguiram, adentraram na mata que rodeava a área de descanso.
— Fiquei surpresa quando aquele guarda apareceu do nada — confessou ela após terem adentrado um pouco mais na floresta, andando por o que parecia ser uma trilha aberta — Na verdade, morrendo de medo que ele perguntasse da nossa situação. Quer dizer, parecemos bem suspeitos, não?
Zero riu do tom nervoso dela.
— É verdade. O maior problema de todos seria nos pegarem com a espada caso fôssemos de menor, mas, graças ao rei, não precisávamos nos preocupar tanto com isso. E eu também tinha uma carta na manga.
— Ah, é? — Ryota esticou o pescoço para ver Zero do outro lado com as sobrancelhas erguidas.
— Ah, é — Ele respondeu, imitando o gesto. — Não iríamos pegar outro trem de toda forma, e com certeza aquele guarda já se esqueceu da nossa existência. Entretanto, a maior vantagem de todas estava aqui.
O que Zero sacou entre seus dedos foi sua própria identidade. Ele a sacudiu no ar de forma exibida antes de guardá-la de novo.
— E qual é? Seu majestoso olhar?
— Qu-... Não! Ai, você não leva nada a sério mesmo, né?
— Bom, é que você olhou de baixo pra cima pro guarda com tanta intensidade que ele com certeza foi embora de medo. Foi o que eu achei que tinha acontecido, pelo menos.
Ryota zombou dos olhos estranhos de Zero com uma naturalidade admirável. O rapaz considerou provocá-la em retorno, mas acabou desistindo com um suspiro pesado.
— Se não foi isso, então o que era?
— … Digamos que ser um guardião tem suas vantagens.
A expressão de confusão de Ryota o divertiu, e Zero ignorou completamente as intenções dela de perguntar o que aquilo significava quando desenlaçou o braço de Jaisen de si.
— Espere um pouco.
O rapaz, então, caminhou na direção de uma árvore que não havia nada de especial e tocou-a com a palma direita da mão. Então, repentinamente, uma luz azulada piscou. Foi como um flash, que então se manteve aceso como a luz de um vagalume. Mas era um símbolo em formato de floco de neve que repentinamente surgiu na madeira logo acima de onde Zero tocava.
— Aqui, fique perto de mim — Zero estendeu a mão na direção de uma Ryota de queixo caído para o que via. A jovem então rapidamente se encaminhou para ficar ao seu lado quando o mundo ficou branco.
E, tão rápido quanto começou, a luz desapareceu. Mas eles já não estavam mais na estação de trem.
Ainda estavam próximo do que parecia ser a mesma floresta, mas, ao mesmo tempo, não era. Ryota só reparou no grandioso e imponente portão preto atrás de si depois. Seus olhos piscaram, sem entender nada, quando avistaram o gigantesco jardim que estava logo atrás das grades, verdejante e colorido com flores. Além dele, uma mansão quase cegante brilhava sob a luz do sol, com paredes azuladas tão claras que pareciam brancas, uma quantidade incontável de janelas e um ar de realeza que rondava o ambiente.
— Desse jeito, seu queixo vai cair — brincou Zero ao andar até seu lado, arrumando a expressão de surpresa dela.
— E-Essa é…
— Sim, essa é a mansão… Ou melhor, uma das mansões dos Minami.
— É… Linda demais… Mas, espera aí, o que foi aquilo da luz lá trás? E o que… Como que… Hã?
Zero soltou uma gargalhada gostosa vendo a expressão adorável de confusão pura de Ryota e afagou os cabelos dela com tapinhas.
— Espera aí! Ai, vai bagunçar meu cabelo todo! Quer dizer que você sempre conseguia fazer isso durante esse tempo todo?! Serião mesmo?!
— Mais ou menos — respondeu ele coçando o ouvido quando ela ergueu o tom de voz.
— Quêêêêê?! Você sabia fazer esses paranauê tudo aí e nunca me contou?!
— Olha só, Ryota.
Com um tom um pouco mais sério, Zero ergueu o dedo indicador.
— Ainda que nos conheçamos há muito tempo, tem certas coisas que mesmo você não sabe sobre mim.
— … Ah.
Essa não era exatamente a resposta que ela estava esperando.
— E acho que isso não se aplica somente a mim, não é?
O clima divertido se desfez rapidamente, e um ar um pouco denso demais se instalou entre os dois. Ryota engoliu em seco com as palavras que doeram mais do que um soco no estômago e baixou o olhar. Talvez não fosse a intenção de Zero magoá-la, mas, ainda assim… Ele não estava errado.
— Está fazendo uma expressão engraçada, senhorita.
— Está fazendo uma expressão terrível, senhorita.
— … Hã?
Com uma voz fraca, Ryota finalmente acordou dos próprios pensamentos quando duas vozes se dirigiram à ela.
— Olha só, parece que a senhorita finalmente nos notou.
— Olha só, parece que a senhorita finalmente acordou do mundo da lua.
Ryota torceu as sobrancelhas para as duas figuras estranhas diante dela. Eram pessoas de cabelos longos, lisos e negros com franjas simétricas. Possuíam olhos vermelhos com tom de sangue, mas não havia qualquer brilho de vida neles. Apesar de serem idênticas, as duas usavam roupas semelhantes e só era possível diferenciá-las pela cor do haori que vestiam. A figura levemente mais alta usava azul, e a mais baixa vermelha.
As vozes delas se sobrepunham, uma seguida da outra, sendo que a da esquerda era serena e baixa e a da direita ríspida e baixa. Apesar das falas, deveriam ter personalidades diferentes. Ao menos, pareciam lidar com a presença de Ryota de formas distintas.
— Olha, não é por nada não, sei que acabamos de nos conhecer e tal, mas podem parar de falar desse jeito? Me dá arrepios.
As duas figuras se entreolharam.
— Acha nosso comportamento esquisito, senhorita?
— Achamos seu comportamento desprezível, senhorita.
— Ei, ei, ei! Uma de vocês acabou de mudar completamente o sentido da frase!
As duas, após assim declararem com nenhuma emoção na voz, ignoraram completamente o pedido de Ryota. Entretanto, ao comentário dela, a que vestia vermelho se posicionou e indicou com a mão a que estava de azul:
— Oh. Está enganada. Apesar de sermos semelhantes, meu irmão é um homem, senhorita.
— … Ah — Ryota enrubesceu completamente ao olhar severo do que estava vestido de azul e se encolheu — … Peço desculpas por isso.
A moça de vermelho abriu um sorriso neutro ao comportamento dela.
— Bem, já que nosso querido colega não se deu ao mínimo trabalho, permita-nos apresentar — Ignorando completamente o olhar de Zero, ela continuou, tocando com a mão acima do coração — Me chamo Kanami Akai, sou uma das guardiãs à serviço da duquesa Minami. E este é meu irmão mais velho, Sora Akai, também guardião da senhorita Minami.
Apesar do olhar de desinteresse, os dois colocaram a mão no coração e a reverenciaram rapidamente.
— A-Ah! Sim! Claro, é um prazer conhecer vocês. Eu me chamo Ryota, e esse daqui… Bom, é meu tio Jaisen.
Ryota, sem ter qualquer problema em relação ao peso, se apresentou e indicou com a mão livre a pessoa que carregava. Os gêmeos olharam com o que poderia ser um leve espanto para o homem, o mínimo de sentimentalismo que demonstraram até então.
— Então é verdade… — sussurrou Kanami — Vocês realmente sobreviveram…
— É…
Ryota deu um sorriso amarelo para o apontamento discreto da guardiã. Preocupada que eles a olhassem de forma diferente ao, talvez, perceberem quem ela era e o que passou, a jovem se adiantou e estendeu a mão na direção dos irmãos, que se surpreenderam com a aproximação repentina. Ryota temia que os dois passassem a tratá-la com uma gentileza à beira da pena, o que a deixaria mal, então rapidamente se dispôs a mudar de assunto.
— Espero me dar bem com vocês dois — assim disse, esperando que eles apertassem sua mão.
Entretanto, por um longo momento, a dupla apenas se entreolhou.
— Precisamos nos apressar. A senhorita Fuyuki nos aguarda em seu escritório.
E ignorou-a completamente. Ryota sentiu seu coração se partir com sua tentativa de aproximação falha, mas não se deixou abater. Zero, então, percebendo que se encaminhariam para a mansão, se aproximou para ajudar Ryota a carregar Jaisen até lá.
A caminhada pelo jardim foi mais rápida do que Ryota achou que seria. Talvez fosse porque os gêmeos não puxaram qualquer assunto e estava entretida demais se maravilhando com o cuidado que tinham com as plantações, flores e as curiosas esculturas de grama que rapidamente chegaram até o hall de entrada. A gigantesca porta de madeira tinha o emblema dos Minami gravado, um floco de neve, e ela se abriu silenciosamente conforme foram se aproximando, como se já aguardassem sua chegada.
— Sejam bem-vindos, senhor Zero e senhora Ryota. — Quem aguardava na entrada era um senhor de cabelos brancos e de boa postura. Sua vestimenta e bom porte indicavam ser o mordomo da mansão.
— Ah, oi. Obrigada — Ryota sorriu para o velho e o cumprimentou também, achando estranho que os outros não o fizeram. Não tiveram tempo para dizer mais nada, pois os guardiões continuavam andando para o próximo salão.
— Não se preocupe muito com isso.
— Hã?
O comentário baixo de Zero a pegou de surpresa.
— São só formalidades bobas que eles sempre vão repetir em situações casuais como essa.
— Hmm… — murmurou ela em resposta, olhando, então, para a dupla de irmãos que andava logo adiante — Mas eles bem que podiam ser um pouco mais educados, né?
Embora fossem formalidades que deveriam já estar enjoados de repetir, não custava nada, ao menos, sinalizar com a cabeça para os serviçais que sempre estavam lá para recebê-los, não? Era o que Zero havia feito, mas os gêmeos apenas passaram diretamente por todos, ignorando-os.
Ou talvez Ryota fosse sensível demais a coisas bestas da nobreza, se preocupando demais.
— A-Ah. Vocês voltaram.
Foi em meio a esses pensamentos que eles adentraram em outro salão gigantesco. Grande o suficiente para suas vozes ecoarem. A decoração era bastante simples, mas, de certa forma, era bastante límpida. O casarão era claro, as paredes sempre variando entre os tons azuis, amarelos, brancos e beges claros com detalhes em dourado ou prateado. Um lustre pendia do topo da mansão, e uma enorme escada à frente se separava em duas que levavam a diferentes locais do casarão.
Mas o que chamou a atenção de todos foi uma voz tímida e aguda que soou vindo de um corredor à esquerda, perto das escadas. Quem surgiu a passos rápidos, porém desajeitados, foi uma jovem que parecia delicada como uma flor. Tinha cabelos azuis claros e olhos âmbar que frequentemente pareciam tremer de ansiedade. Vestia roupas bastante femininas e parecia manter com frequência as mãos junto ao peito, como que demonstrando insegurança.
— Perdoe-nos pela demora, madame Eliza.
— Perdoe-lhes pela demora, madame Eliza.
— E mais uma vez ele trocou o sentido da frase... E, pera, ele colocou a culpa na gente?
A jovem baixinha que recebeu vários olhares repentinamente corou com a atenção e se atrapalhou completamente na reverência e palavras.
— A-A-Ahhh… M-Meu nome é Eliza… É… Bem… Ah! S-Sejam muito bem-vindos! Senhor Zero e… Ah… É…
Os olhos âmbar trêmulos de Eliza foram parar na garota desconhecida, que apontou para si mesma com a mão livre.
— Pode chamar só de Ryota mesmo. E esse daqui é-
— Ele parece muito mal.
Ignorando as palavras da outra, Eliza se aproximou repentinamente de Jaisen e franziu as sobrancelhas finas e bonitas. Seu tom de voz, ao falar, perdeu completamente a timidez e fraqueza.
— Precisamos levá-lo a um quarto para descansar imediatamente.
— Hã? O quê? Sério? — Ryota se desesperou ao ouvir aquelas palavras. Em reflexo ao que foi dito por Eliza, ela olhou para Zero, que assentiu com a cabeça.
— Vá com ela. Vamos esperá-la aqui.
Kanami e Sora não se opuseram à Zero, então Ryota inspirou fundo e concordou com a cabeça, agradecida pela paciência.
— Venha, por aqui. Precisa de aju-
— Tá tudo bem! Eu levo ele sozinha, só me fala qual o quarto.
— E-E-Eeeeeeh?!
Eliza se assustou com a facilidade com que Ryota carregava Jaisen, como se fosse um saco de batatas e não um homem gigantesco com mais de um 1,90. Entretanto, passado a surpresa, as duas se encaminharam até o corredor esquerdo.
***
— Como ele está, Eliza? Tem febre? Anemia? Fraqueza? Dor em algum ponto? Alguma coisa ainda está quebrada? Acha que ele-
— S-Se acalme um pouco!
Eliza ergueu o tom de voz quando Ryota começou a considerar as piores situações possíveis em voz alta, ao que a garota engoliu em seco com uma expressão culpada.
Estavam em um quarto ligeiramente comum para os padrões da mansão. Mas, para Ryota, o cômodo era maior que sua casa inteira. Era um lugar claro e bem arejado, com cortinas translúcidas e com um clima confortável. Quadros e flores em vasos enfeitavam o lugar.
A cama que Jaisen estava era de casal — só assim para ele caber numa —, e Eliza estava sentada em uma cadeira logo ao lado, com uma Ryota nervosa de pé atrás.
— Fique tranquila. O senhor Jaisen só está bastante exausto e fraco, mas não possui qualquer outro proble-
— Aaaaaah, sério?! Que bom ouvir isso!
— S-S-S-Senhorita! N-Não consigo… Respirar assim…!
— A-Ah! Foi mal!
Após se recuperar do abraço repentino que desestabilizou - e quase enforcou - Eliza, a jovem pigarreou algumas vezes antes de continuar a falar.
— Ele está estável. Precisamos apenas checá-lo diariamente devido seu estado atual, mas, para além disso, ficará bem. Apenas me assustei no hall devido sua palidez.
— Entendi. Aaah… Fico mais tranquila assim.
— S-Senhorita?!
Ryota, se deixando levar, caiu sentada na cama, rindo. Ela nem tinha percebido o quão tensa estava até aquele momento.
— … Aaah.
— A senhorita está bem?
— Estou, é claro.
À negação quase instantânea, Eliza fez menção de dizer algo, mas se calou. O olhar sério que ela lhe deu se transformou em melancolia.
— … Ouvi sobre o incidente em Aurora. Sinto muito.
— Ah — Os olhos azuis de Ryota cintilaram, tristes, com a lembrança de sua terra natal manchada de sangue e corpos. Sem perceber, tinha abraçado a si mesma e desviado o olhar — É.
— Mas pode ficar tranquila. Estarei cuidado do senhor Jaisen para você — sorriu Eliza, gentilmente mudando de assunto — Ele foi um homem muito, muito forte. Tenho certeza de que despertará em breve.
— … Sim, obrigada. Por falar nisso, só agora parei pra pensar, mas você é a médica da família Minami ou algo assim?
Eliza piscou duas vezes, então soltou uma risada contida com as mãos.
— Sou curandeira chefe e particular da mestre Fuyuki… D-Digo! Da senhorita Minami.
— Aaah, saquei. Então você é tipo a mais braba!
— A… Mais… O quê?
— Quer dizer que você é alguém em que posso contar pra cuidar dele — Ryota sorriu abertamente para a curandeira confusa com o uso de palavras, então deu um toque no ombro de Eliza que a fez saltar no lugar — Obrigada!
— A-Ah… Certo!
Depois dessa troca de palavras, Ryota acenou para Eliza antes de voltar ao hall.
***
Os passos dos quatro ecoavam pelos longos e vazios corredores. Eles subiram as escadas do salão que se dividiam em duas partes - as alas leste e oeste. Entre elas, havia um enorme quadro que Ryota ficou um tanto boquiaberta pela beleza da jovem exposta. Era mais semelhante a uma pintura feita à mão que uma foto por conta de seus traços borrados e fragmentos do tempo.
— Esse é um retrato da duquesa?
— Não, senhorita Ryota.
— É claro que não, senhorita.
Ignorando o tom de voz do irmão, Kanami continuou, virando um pouco o rosto para trás:
— Essa foi a primeira mestre e matriarca dos Minami, a senhora Rauroa Minami.
— Rauroa...?
No caminho, Ryota cumprimentou com um sorriso duas empregadas que se curvaram enquanto passavam.
— A senhora Rauroa possuí um passado desconhecido, mesmo para os descendentes da família, mas sabe-se que ela era alguém com grande beleza e um coração gentil.
Mesmo conforme seguiam andando, a imagem de Rauroa permaneceu na mente de Ryota. Os grandes olhos verde-água que pareciam jóias, os cabelos curtos, loiros e cacheados. A pele pálida, porém, linda. A expressão de pura serenidade e nobreza que exalava… Tudo nela parecia perfeito.
— Uaaaau. Parece o tipo de história que eu leria nos livros. Sobre uma garota pobre que subiu na vida.
— Dá pra dizer que foi algo parecido... — disse Zero — Existem milhares de versões da sua história, mas todas dizem que Rauroa foi um grande exemplo de prodígio e extrema beleza da época, como uma espécie de princesa misteriosa, ou até um anjo caído.
Conforme seguiam conversando e andando, Ryota foi atraída pela ideia de imaginar a história da moça. Talvez por isso que ela acabou parando no caminho de frente para uma porta entreaberta que revelava uma gigantesca biblioteca, com livros por todas as partes. Ela lutou internamente para não correr lá para dentro, e apenas voltou a acompanhar os outros antes que notassem sua ausência.
Por fim, Sora e Kanami pararam em frente a uma porta no final do corredor, à direita, e bateram duas vezes cada um ao mesmo tempo. Ficaram em silêncio por alguns segundos antes de uma voz feminina e abafada dizer para entrarem, e assim o fizeram.
A primeira coisa que viram quando as portas foram abertas foi uma larga janela aberta com suas cortinas azuis balançando. Uma mesa retangular estava colocada na horizontal, e, nela, haviam papéis muito bem organizados, além de algumas canetas e pastas empilhadas. Mas, o que mais chamou a atenção de Ryota foram os longos e belos cabelos brancos da moça de costas para eles.
Ela era alta e exalava elegância. Mas, acima de tudo, imponência. Suas mãos atrás das costas eram magras e delicadas.
— Bem-vindos de volta. — A moça se virou num movimento só, e os olhos verdes dela se apertaram na direção de Ryota, que parecia estar hiperventilando de nervosismo. Ela abriu um sorriso caloroso enquanto caminhava na direção da poltrona. — E a você também, senhorita Ryota... Seja muito bem-vinda.
Os três guardiões reverenciaram a moça durante algum tempo, em silêncio, mas Ryota permaneceu de pé, sem conseguir tirar os olhos da mulher mais bonita que viu na vida.
— Me chamo Fuyuki Minami, duquesa e atual matriarca da Casa Minami. É uma honra conhecê-la pessoalmente.