Volume 1
Capítulo 44: Visita (1)
Junho chegou e mais nenhum infortuno evento contaminou os ares da sala A-101. Não houve conjuração proibida, manipulação não autorizada, acusações mentirosas ou acidentes envolvendo pais de alunos. Entretanto, professores e alunos da Universidade de Estudos Arcanos de Leon, se ocupavam com a eminência das provas finais.
Em grande parte o corpo docente passava as horas vagas na sala dos professores, com o intuito de evitar o contato desnecessário com os acadêmicos, que das duas uma: ou vinham os importunar sobre uma segunda chance na matéria ou estudavam para não precisarem de uma.
Entre as frequentes conversar que permeavam a sala dos professores nesta reta final, a turma da sala A-101 costumava mais cedo ou tarde virar tópico de debates. E quando a ocasião surgia, Felix Fitz tornava-se alvo da curiosidade dos colegas, pois era ele quem mais tinha contato com os novatos.
Foi durante uma dessas oportunidades, que Felix descobriu orgulhar-se dos seus alunos, soube disso quando contou aos professores do segundo semestre: Fernando Valadar e Ronaldo Rodrigues, sobre o talento que Dario e Nathalia tinham com a manipulação.
Mas os dois figurões queriam saber mais. E numa tarde fria quando apenas os três ocupavam a sala dos professores, Ronaldo se manifestou:
— Professor Felix! — entoou como um general chamando um subordinado.
Mas o referido se ocupava fazendo as cópias das provas finais.
— Só um momento. — Felix levantou o braço esquerdo enquanto terminava de transcrever a última pergunta na folha da prova. Ao terminar, virou-se para trás e recostou o braço no apoio da cadeira. — Pois não?
— Na turma do primeiro semestre, tem alguém que se esforça, mas não consegue manipular direito? — Ronaldo perguntou alisando o bigode pontudo e branco.
Felix mirou o teto cinzento. Buscou em sua memória algum aluno que se encaixasse no perfil descrito. Sabia que a pergunta representava o paradigma conhecido aos praticantes da criação de runas. E Felix também sabia quais eram as intenções de Ronaldo ao questioná-lo, mas nenhum aluno atendia aquelas expectativas.
— Infelizmente não. A sala A-101 tem suas maçãs podres, mas eles são todos uns preguiçosos, então falham por merecer.
Ronaldo abriu a boca, mas não foi dela que a seguinte frase saiu:
— Então nós teremos em mãos mais uma geração carente de criadores. — Antes sentado em sua mesinha próxima à porta da sala, Fernando Valadar arrastou os pés para perto dos dois, sua careca reluzia o brilho vindo das janelas abertas.
— Você deveria cobrir essa bola de cristal — Ronaldo o provocou entre risadas descompassadas.
Fernando apenas revirou os olhos cor de mel e ignorou a piadinha, pois já pensava no próximo semestre, não faria mal conhecer seus novos alunos através do professor morto-vivo, como diziam os alunos.
— Fora a Leonhart e o Zeppeli, mais alguma estrela ganhando brilho naquela turma?
— Bem… Têm duas amigas, elas até brigaram um tempo atrás. Uma é a senhorita Ambrósio, uma coitada que certo dia chegou na sala com a cara arrebentada por causa do pai. A outra se chama Karen, uma metidinha que vive atrás da Leonhart, mas não se deixem enganar, elas prometem e eu apostaria meu sofrido salário nelas.
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Após sua detenção na torre da guarda, Lucio Ambrósio foi transferido para a Prisão da Capital no começo do mês. Como Anna decidiu denunciá-lo por seus abusos, ficou fácil para as autoridades competentes darem inicio à investigação.
A primeira etapa consistiu na obtenção dos testemunhos de amigos, colegas, do professor Felix e da Professora Grivaldo. Todos os eventos por eles narrados batiam com os relatos dos vizinhos, que já desconfiavam de Lúcio há algum tempo.
Os testemunhos somados ao ataque à Nathalia Leonhart foram mais do que suficiente para mantê-lo atrás das grades enquanto aguardava o julgamento definitivo.
E no primeiro sábado de junho, Anna reuniu coragem para ir visitá-lo.
Apesar do nome, a Prisão da Capital não ficava na cidade, mas ao sul dela, erguida rente a um paredão rochoso, conforme descrito pelos oficiais da guarda à garota cujo pai foi transferido para lá. Apesar de simples, ela era orgulhosa, tanto que decidira fazer o caminho a pé.
Quando chegou ao portão sul da capital, Anna avistou uma pequena expedição se aprontando. Ela consistia de quatro carroças tracionadas por quatro cavalos cada.
A primeira e a última eram apinhadas de soldados trajando o tabardo branco e vermelho. Eles dividiam o espaço com longas caixas de madeira que deveriam passar dos dois metros de altura, cujo conteúdo permanecia oculto.
Já as carroças duas do meio, entretanto, carregavam pilhas e mais pilhas daquelas caixas, sem dar espaço para uma guarnição nelas ficar, consequentemente, apenas o condutor e um soldado as ocupava, ambos sentados no largo banco da frente.
Mas Anna os ignorou.
Da última carroça uma soldada se manifestou ao avistar o vestido marrom da garota. Num assobio ela chamou-a, mas Anna olhou para um lado, depois para o outro, coçou a cabeça e virou para trás.
— Pra onde tu vai menina? — perguntou a soldada que compartilhava o banco ao lado do condutor.
Anna apontou para si mesma,
— É, é, você mesma.
— Para a… — Estarreceu, envergonhada por seu destino.
Em passos contidos Anna contornou a carroça evitando fazer contato com o condutor de orelha suja. Com um sorriso no rosto a soldada acompanhou o caminhar da garota até ela ficar ao seu lado. Tímida, Anna disse baixinho o destino da viagem.
— A prisão.
— Quer uma carona?
Anna confrontou a mulher com o olhar. O sorriso naquele rosto permanecia. Parecia até nem se importar com a resposta que dera. Carregando sua desconfiança na voz, questionou-a:
— Você não quer saber o porquê?
— É claro que eu quero, mas seria rude perguntar, não é mesmo?
— Seria sim, mas eu te conto na viagem.
— Ótimo, pode subir então.
A mulher acotovelou e empurrou o condutor até o limiar esquerdo do banco, liberando um espaço grande o bastante para a garota sentar.
— Muito obrigada — disse Anna já “acomodada”.
Um brado veio lá da frente, mas a garota não o compreendeu.
A primeira carroça partiu devagarinho, seguida pela segunda, e depois pela terceira.
O condutor então chicoteou a corda e balbuciou algo que talvez não fizesse sentido, mas para os cavalos pareciam fazer, pois com dificuldade eles venceram a inércia, fazendo os pares de rodas girarem, pondo em movimento a carroça e a expedição como um todo.