Volume 1
Capítulo 31: Trégua (2)
Ronan descia o último lance de escadas do Hospital Hobes quando avistou uma garota da sua idade trajando um conjunto de couro preto. Aquele cabelo dourado não o enganava. Ela o notou quando estavam a poucos passos um do outro. Eles se encararam por um momento, até Ronan se manifestar:
— Você vai visitá-lo?
— Eu preciso! — ela respondeu fugindo do olhar julgador.
— Boa sorte, Nathalia.
— Obrigado, Ronan.
Ela parou e observou o colega seguir pelo corredor, sair do hospital, descer o pequeno lance de escadas até se perder na multidão que ia para casa após um longo dia de trabalho.
Reunindo toda a coragem que conseguiu, Nathalia subiu a escadaria interna do hospital, decidida a fazer o que era certo. Após um demorado trajeto pelos corredores brancos e fantasmagóricos, estava de frente à porta do quarto onde o garoto descansava. Respirou fundo, pôs sua mão pálida na maçaneta e a girou. Ao entrar devagarinho, viu o paciente ficar atônito até uma raiva ferina transparecer em seu olhar. Dario se levantou num impulso e sentou na cama, ofegou, e perguntou com frieza em sua voz:
— Veio terminar o serviço, Leonhart?
Os lábios e os olhos de Nathalia tremularam, pôs a mão direita no peito, respirou fundo e caminhou para perto dele.
— Eu vim me desculpar…
Num gesto de amizade levou sua mão direita ao braço dele, mas antes que encostasse, ele rejeitou o gesto. Tomado pela fúria de antes, Dario esbravejou a plenos pulmões:
— O que? Você quase me matou e agora vem pedir desculpas?
A indignação do colega fez reviver algumas das memórias mais desagradáveis, memórias que Nathalia queria enterrar, esquecer para sempre. Lampejos de suas mentiras, manipulações e principalmente, arrependimentos fizeram lágrimas escorrerem pelo seu rosto.
— Eu quase morri também… — ela soluçou levando a mão esquerda aos olhos. — Eu sei que sou uma descontrolada! — finalizou rendendo-se a um choro contido, mas verdadeiro.
Preocupada com gritos vociferados por Dario, uma enfermeira que passava pelo corredor chegou para ver o que havia acontecido naquele quarto. Ao constatar que era apenas uma briga de casal, saiu tranquilizada por não ser algo sério envolvendo o paciente.
Dario constrangeu-se por causar aquela cena, mas o que ela esperava? Ela tentou me matar! É a verdade, ela é louca, tentou convencer-se de que não estava errado em gritar no quarto do hospital. Quando repassou em sua mente o lamento choroso de Nathalia, percebeu que ela poderia estar falando a verdade. Será que foi um acidente mesmo? Afinal, todo mundo vinha falando isso para ele, até mesmo Ronan.
Teria de passar a história a limpo.
— Escuta… Na-ta… — desistiu de chamá-la pelo nome, pois doía só de tentar. — Você não fez aquilo de propósito.. fez? — questionou agora mais calmo.
Ela parou de soluçar, mas ainda com os olhos úmidos tentou responder.
— Claro que não, seu besta! Não é porque sou melhor que você na manipulação que eu iria saber como fazer uma monstruosidade daquelas.
Continua uma bruxa. E o Ronan ainda tentou me convencer que ela tinha mudado, pensou, mas foi interrompido do devaneio.
— Desculpa — disse ela baixinho.
Dario sentiu-se desarmado pela dramaticidade de seu desafeto.
— Vou aceitar o pedido de desculpas, mas isso não significa que irei te ver como uma amiga, ou uma colega.
— Eu sei… — Nathalia hesitou por um instante, mas tinha algo para dizer. — Sua mãe é uma figura.
— Como você… — balbuciou, mas foi interrompido mais uma vez.
— Eu jantei na sua casa quando fui pedir desculpas por toda confusão que causei. — ela confessou brincando com uma mecha do cabelo.
Dario tinha muito a refletir. De uma hora para outra seu mundo virou de cabeça para baixo. Inspirou profundamente e soltou o ar numa longa expiração. Tentou não gritar para o mundo. Fechou os olhos.
— Meu pai não te expulsou da nossa casa?
— Ele tentou, mas quando mostrei… isso…
Nathalia despiu-se da jaqueta e arregalou a manga longa da camisa. Mostrou a ele o que restava do preço da conjuração. O braço direito já não estava tão roxo como em sua visita aos Zeppeli, mas as cicatrizes dos 16 cortes ainda a lembrava do acidente sempre que os via.
Observar o braço dela o fez se lembrar do dia que despertou ali mesmo, na cama do hospital. Reviver a lembrança de observar impotente todos os seus ferimentos o fez ser tomado por um ódio mecânico e irracional. Dario cerrou os punhos e encarou a garota de cabelos dourados.
— Saia daqui, agora! — rugiu dando um murro na mesinha onde guardara o livro de Anna.
Com um grito de espanto, Nathalia recolheu o casaco e disparou para fora em meio às lágrimas e lamentos.
A respiração de Dario era profunda e quando recobrou o juízo, arrependeu-se da forma grotesca que tratou sua rival. Respirou fundo mais uma vez, fechou os olhos e se largou na cama.
Filetes de uma lamentação melancólica umedeceram o seu rosto.
A enfermeira voltou após ver a garota correndo no corredor, algo que parece irônico, mas proibido. Sob o vão da porta entreaberta, ela perguntou:
— O que aconteceu? Brigou com a namoradinha?
— Ela não é minha namorada — respondeu emburrado ao secar o rosto.
— Ela é uma familiar?
— Não!
Ela franziu o cenho e apoiou-se no batente da porta, a corpulência em demasia empurrou a chapa de madeira que fez ranger as dobradiças, abrindo a porta por completo.
— Engraçado… — ela disse levando o dedo indicador aos lábios. — Ela veio aqui algumas vezes, costumava ficar ali do seu lado enquanto tu dormia. Eu lembro que ela chorava bem quietinha, e às vezes até falava alguma coisa, mas não dava para ouvir daqui. Ela deve gostar de você, não trate a coitadinha assim, ela é tão fofa.
Você só pode estar de brincadeira.
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Nathalia soube na segunda feira, por intermédio de Ronan, que Dario gostaria de conversar, mas ao ouvir o pedido, protestou, explanando ao inocente Ronan o que havia acontecido dois dias atrás quando foi visita-lo. Porém ele foi mais teimoso e não se deu por vencido. Insistiu que ela fosse visitá-lo. Surpresa pela insistência do rapaz, Nathalia decidiu dar mais uma chance. Iria visitar Dario assim que terminasse a tradicional leitura de segunda-feira do Estatuto da Manipulação.
Quando chegou ao hospital após uma chata aula expositiva, bastou olhar para a recepcionista, que num aceno permitiu sua visita. Nathalia seguiu o ritual que vinha fazendo uma vez por semana, subiu as escadas, percorreu os corredores com calma e entrou no quarto onde a vítima repousava. Ao olhar para ele, lembrou-se dos dias que passou neste mesmo hospital. Ele se ergueu e sentou na cama, mas com os pés cruzados.
— A enfermeira me falou das suas visitas quando eu ainda estava inconsciente.
O rosto dela enrubesceu.
Ele prosseguiu:
— Eu andei pensando e…
— Isso é uma novidade — ela interveio cortando sua fala.
— Quê?
— Você… pensando… não se vê isso todo dia — zombou dando um sorriso com as bochechas ainda coradas.
Dario soltou um riso abafado, ela se juntou.
— Sorte sua que estou de bom humor, senão teria te jogado pela janela com minha poderosa conjuração do vento.
— Poderia ser um tornado, desde que repetisse aquela encenação ridícula da vez que nos mandou para a coordenação.
Dario se recordou do primeiro incidente. Aquele que os fez serem mandados à sala de Rafael por utilizarem conjurações dentro da sala. Comparado ao último, aquilo parecia nada mais do que uma brincadeira de criança.
— Parece que foi a mais de dez anos — disse com saudosismo em sua voz.
— Mas faz três meses.
Mesmo o tendo corrigido, Nathalia concordava com esse sentimento.
— Éramos tão inocentes.
Ao ouvir aquilo ela arqueou as sobrancelhas.
— Minha nossa vovozinho. Vai devagar!
Apesar de ter sacaneado o colega, sabia que Dario dizia a verdade, mesmo assim não poderia deixar a chance de constrangê-lo passar em branco. Ao olhar para ele, viu aquele sorriso esvair e os olhos arregalar. Será que ele não gostou da brincadeira? Perguntou-se antes de ouvir o que ele tinha a dizer.
— Posso acreditar que você não vai mais prejudicar eu e o Ronan?
Eu devo isso a ele, pensou antes de responder.
— Pode — disse adotando a mesma seriedade.
— Obrigado — concluiu fechando os olhos.