Ronan Brasileira

Autor(a): Raphael Fiamoncini

Revisão: Marina


Volume 1

Capítulo 15: Cristais de Sangue (1)

O calor escaldante das noites anteriores perdurou na manhã da quarta-feira, forçando os moradores a vestirem-se conforme o clima. Das portas e janelas abertas, o aroma dos cafés da manhã sendo preparados perfumavam as limpas ruas do bairro por onde Nathalia caminhava apressada, atormentada com os eventos protagonizados. Havia mentido para seu pai, queimado o braço de Anna por acidente e tentara fazer dela sua cúmplice.

Idiota.

Dentro de si o desespero lutava para apoderar-se das emoções. Precisou se esforçar muito para não render-se às lágrimas quando recordou do julgamento marcado para o fim da próxima semana.

Frustrada, disparou pela rua abarrotada de transeuntes, extravasando a cada passo todo o ódio que sentia pelo mundo e por si mesma. Alcançou a esquina e ignorou a visão da universidade. A ansiedade a consumia. Nathalia cruzou a rua e percorreu rente ao muro branco de três metros que cercava o campus. Parou de correr e, esbaforida, adentrou no portão da frente. Caminhou até o pátio para encontrar Karen sentada sozinha em um dos bancos próximo às estatuas dos leões na fonte. Ela parecia estar lhe esperando.

Estudantes abarrotavam a frente da universidade. Nathalia perguntou-se como ela havia encontrado um banco vago, pois até os gramados já serviram de assento para os veteranos conversarem em voz alta. O olhar inexpressivo da amiga sentada captou o seu olhar desanimado. Karen prendera o cabelo num longo rabo de cavalo, negro como a camiseta. Está maravilhosa hoje, pensou Nathalia, pouco antes de cumprimentá-la tentando camuflar sua angústia:

— Oi Ka.

— Oi amiga. Tá melhor? — Ela sorriu.

— Não né, quase nem vim hoje.

— Nem pense numa coisa dessas. Já ficasse uma semana suspensa depois daquilo.

Semicerrando os olhos, respondeu:

— Mas não tinha perdido a Anna pelo menos.

Karen levantou-se para abraçá-la.

— Fica tranquila. A gente vai trazer ela voltar. Eu prometo.

Karen, você é uma amiga para todas as horas… capaz até de mentir em uma audiência sem pensar duas vezes.

Após desabafar chorando no ombro dela, Nathalia se levantou, estendeu a mão e a convidou:

— Vamos indo?

Karen ofereceu sua mão e foi puxada por Nathalia. Infelizmente, elas não encontraram Anna durante os lamentos da Leonhart. O que indicava uma coisa: ela havia chegado cedo como de costume.

As duas saíram do pátio conversando. Seguiram caminho pela lateral do Bloco Administrativo. A cumplicidade compartilhada com Karen fez Nathalia esquecer seus problemas, mesmo que por alguns minutos. Pelo horário, todos da turma deveriam estar na sala esperando o professor chegar. E por sorte não encontraram Felix, nem nenhum outro colega no caminho. O corredor do prédio era ocupado por poucos alunos. As duas seguiram em frente e subiram os dois lances de escada que separavam o térreo do primeiro andar, ao subirem o primeiro e metade do segundo, duas silhuetas conversavam na frente da sala.

Ronan e Dario.

Os olhos do segundo flagraram as duas. Karen seguiu reto, mas Nathalia hesitou com um pé em cada degrau. Engoliu a saliva acumulada nesses poucos segundos. Inspirou, expirou e voltou a subir os degraus como se nada tivesse acontecido.

Ronan olhava o próprio calçado, mas Dario a encarava sem piscar. Karen colocou-se de frente aos dois, cruzou os braços e esperou a amiga chegar. Nathalia jogou uma mecha de cabelo para trás, alcançou o último degrau, inclinou o rosto para cima, encarando-os com os olhos bem abertos.

Eles nada fizeram, permaneceram calados. Os quatro se encararam por um minuto inteiro. Dario fechou os olhos, suspirou fundo e manifestou-se:

— Só tenho uma coisa a dizer!

Nathalia não deixaria que falasse o que bem entendesse. Então desafiou Ronan com o olhar e cortou o discurso do Zeppeli:

— Você não deveria ter se metido comigo garoto. Eu te avisei, te dei uma opção e você fez a escolha errada. Só estou cumprindo com minha palavra, pois ela é lei.

Mas foi Dario quem respondeu, estava ofendido pela interrupção.

— Eu disse que tinha algo a dizer. É falta de educação interromper os outros. — Seu olhar era confrontador e sua voz incisiva acentuou sua impaciência. — Leonhart… você vai pagar por tudo que fez, eu te prometo.

Ronan permaneceu recostado à parede do corredor com seus braços cruzados. Nathalia ignorou o comentário do Zeppeli para ponderar sobre o amigo dele: o garoto não é capaz de reagir? Essa passividade é preocupante. Quando irá lutar suas próprias batalhas?

Karen adiantou-se para defender a amiga absorta em pensamentos.

— E quando é que a sua família vai pagar por tudo que fez, hein Zeppeli?

— Isso de novo? — inquiriu Dario ao revirar os olhos. — Já não deixei claro que eu não tenho culpa daquilo que os meus antepassados fizeram?

Ronan admirou-se com a mudança, dias antes ele havia perdido o controle por ousarem mencionar seus familiares, mas agora, demonstrava apenas frieza em suas palavras.

— Algum problema? — perguntou Felix Fitz ao subir os últimos degraus.

Dario e Ronan nada disseram, apenas entraram na sala.

— Vamos estudar? Ou namoricar, hein garotas? — mencionou o professor ao passar por elas.

Namoricar, refletiu Nathalia antes de ir para a sala. Quando passou da porta seu coração se partiu ao meio. A bancada onde sentava estava vazia. Correu o olhar pelo ambiente e achou Anna sentada no canto oposto, rodeada por garotas estranhas conversando entre elas.

Adeus Anna, lamentou melancólica para si mesma, relembrando os momentos compartilhados. O professor repetiu o ritual de largar a pilha de livros na mesa de qualquer jeito, para logo dar inicio à aula.

— Para hoje teremos um exercício bem simples. Vamos aprender a focalizar o vento num ponto específico, através da canalização direcionada. Primeiro com uma aula em sala onde explicarei o necessário. Assim que terminarmos, iremos ao Centro praticar como da última vez.

Ânimos se exaltaram por mais um dia onde praticariam em campo aberto. Nathalia por outro lado não se importava se seria aula prática, teórica ou as duas. Só queria que tudo chegasse ao fim.

Por uma hora o professor instruiu os alunos, e por uma hora Nathalia observou discretamente Anna e suas novas amigas conversando como se nutrissem uma amizade tão antiga quanto as duas. O que mais eu podia esperar da garota mais simpática da capital, lamentou mais uma vez, triste consigo mesma.

Horas se passaram e a parte teórica da aula da manhã chegou ao seu fim quando o professor Felix concluiu:

— Acho que isso é tudo que eu tinha para ensinar por agora. Bom, se tiver algo que esqueci de mencionar, eu posso apontar lá na frente. Vamos indo pessoal?

Todos se levantaram animadíssimos, exceto Nathalia, que parecia prestes a atender um velório. Ao levantar, Karen segurou-a pelo braço, para que juntas caminhassem rumo à porta. Mas para infelicidade delas, deram de cara com Dario e Ronan mais uma vez, retomando o silencioso impasse de antes. Os quatros se encararam, até Anna aparecer para quebrar o gelo.

— Com licença, vocês estão bloqueando a saída — repreendeu séria sem olhar diretamente para nenhum deles.

Suas novas amigas permaneceram atrás, caladas, aguardando o desenrolar do impasse. As duas duplas bloqueando a saída recuaram dois passos para deixá-las passar.

— Obrigada — Anna agradeceu com um meio sorriso ao liderar suas amigas para fora.

Ronan e Dario se entreolharam e partiram rumo ao Centro de Práticas Arcanas. A sala esvaziou e Nathalia permitiu-se render a tristeza por um momento.

E chorou.

Lágrimas desesperadas brotaram dos seus olhos e escorreram pelo macio rosto corado.

— O que foi Nat? — perguntou sua amiga de cabelos negros, preocupada.

— Eu não sei o que fazer mais, Ka! — lamentou chorosa enquanto secava o rosto com as costas da mão direita.

Karen suspirou, encarando-a nos olhos para sugerir:

— Porque não diz a verdade de uma vez por todas?

— E ser derrotada por aquele idiota?

— Acho que só assim a Anna voltaria a falar com a gente.

— Você acha mesmo? — Um brilho de esperança surgiu em seu olhar.

— Acho que sim, amiga.

— Não! Não vou me permitir ser humilhada por um Zeppeli.

Karen tinha mais uma sugestão na manga.

— Converse com seu pai. Fale a verdade. Ele vai conseguir pôr um fim nisso e você não vai precisar dar satisfação aos velhotes do conselho, da coordenação, sei lá.

— Não dá mais. Papai falou que agora esse assunto é competência dos esclerosados desse conselho.

O rosto dela se contraiu em raiva.

— Desgraça! — grunhiu socando o piso de concreto. Mais calma, continuou: — Ainda tenho uma semana para contornar essa situação maldita.

Karen se aproximou e a segurou pela mão que havia socado o chão, estava vermelha e cheia de arranhões. Com um sorriso, tentou animá-la:

— Pode contar comigo tá. Sempre estarei do seu lado.

— Não vai adiantar.

— O quê?

— Você não pode testemunhar. Eu fui burra por ter chamado você como testemunha, só percebi isso agora.

— Hein? Como assim? — Karen questionou alisando o cabelo negro preso por um rabo-de-cavalo.

Iluminada pelos raios obscuros da sua burrice, Nathalia explicou:

— Você saiu quando eu machuquei a Anna, todos viram você correr.

Karen arregalou os olhos em espanto. Não tinha pensado nisso.

— Verdade…



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