Volume 1
Capítulo 12: Corvos da Tormenta
Há 15 anos o Reino de Lince compreendia todo o norte de Antares. E por 15 anos a conquista de Leon sobre Alvovale, ao noroeste e Rioalto, ao sudoeste, feriu o orgulho dos linces. Ambas as cidades eram cobiçados pontos estratégicos responsáveis por garantirem a soberania de extensas terras férteis para quem às dominasse.
Rioalto foi a primeira perda, um mau agouro do que estava por vir. A cidade ficava entre duas cadeias de montanhas, uma subindo ao norte e outra descendo ao sudeste, criando assim uma fronteira entre as monarquias em guerra. E quem a controlasse, ganharia fácil acesso aos campos desprotegidos do adversário.
E com a tomada de Rioalto, Alvovale tornou-se um alvo fácil, pois permaneceu sozinha entre os vales ao norte de Leon, sem esperança de reforços chegarem, pois a passagem entre as montanhas foi tomada.
Em menos de um ano após a tomada de Rioalto, Alvovale caiu nas garras do general Alexandre Griffhart, concedendo-lhe a alcunha de “implacável”. Um golpe que deixou marcas no ego dos linces mais ufanistas, como Eric, o homem que aguardava a chegada das carroças e carruagens enquanto massageava a runa do machado preso ao cinto por uma tira de couro. Ele mordeu o lábio inferior e bufou uma rajada quente, fedorenta, tremulando os curtos fios negros que lhe alfinetavam a testa.
Aos 33 anos, os olhos negros de Eric Tormensson refletiam todas as escabrosidades testemunhadas desde que ingressou no exército, matou homens de Leon e foi condecorado como Senhor da Guerra, liderando os 50 melhores de Lince, os Corvos da Tormenta.
Finalmente.
As bandeiras cinza e alvas com o lince estampado em azul surgiram no horizonte, enfeitando a dúzia de carroças tremelicando com a irregular estrada de tijolos. Na frente, como era de se esperar, vinha Edmundo, o capitão da guarda real trajando sua prateada armadura de placas e elmo arredondado, escondendo o curto cabelo grisalho.
Na maior das carruagens, um cavaleiro seguia ao lado da janela do veículo.
Gustav Tormensson.
Diferente do irmão, Gustav tinha o cabelo negro cumprido até o ombro. Eric odiava admitir, mas ele era um sucesso com as mulheres, o rosto simétrico, o olhar profundo e o queixo quadrado dele talvez ajudasse.
Mas porque ele não trouxe as duas espadas? A visão das lâminas embainhadas em cada flanco do irmão já foi um mau agouro em tempos de guerra, para o inimigo. Deixando as nostálgicas memórias para trás, Eric Tormensson desacoplou as costas da muralha para aproximar-se do irmão dois anos mais velho.
Os dois pares de olhos negros se encontraram, um sorriso inteiro e um pela metade se formaram. Uma ordem foi gritada e as rodas das carroças pararam de agredir os tijolos tortos da estrada de Lincevall.
— Onde está o tagarela que vive do teu lado? — Gustav perguntou ao desmontar do equino.
— Ivar está para lá da muralha. — Eric apontou para o portão aberto. — Mas você… Não vai levar as espadas?
Gustav levou as mãos aos flancos, apalpando a cintura.
— Pois é… é que… eu não vou com vocês…
— Por quê? Por acaso se garante apenas com manipulação? Você já foi mais humilde, Príncipe da Tempestade.
— Uma piada que virou apelido contra minha vontade. Mas você me interpretou errado, não quis dizer que não levarei minhas armas. Eu, Gustav, não irei com vocês à Cidade Livre.
— Do que você está falando? Você precisar ir! Você é o conselheiro pessoal da Triss. — Assim que terminou de falar, a porta da carruagem real foi aberta por um dos serviçais. Seis cavaleiros da Guarda Real desmontaram dos cavalos e se apressaram para receber a rainha.
Exprimindo sua frustração numa careta apavorada, o serviçal mór teve dificuldades para encaixar a escadinha na porta do veículo.
— Sai da frente — bradou uma voz vinda de dentro.
Atrapalhado, o coitado entendeu tarde demais. A porta foi aberta para fora com violência, batendo no rosto do serviçal mór, que caiu para o lado. E com o nariz sangrando, ele tentou se desculpar entre gemidos.
Triss Loboprata saltou da carruagem, impaciente com tanta firula. O sapato marrom adornado em joias rilhou nos tijolos a cada passo. Com as costas da mão esquerda, ela lançou os fios pratas do longo cabelo para trás, repousando-os na longa capa cinza que vestia por cima de um conjunto azulado, destoando do âmbar das suas íris. No tecido azulado, na altura dos seios, dois animais bordados em fios cinza rugiam para cada lado, à direita o lince de Lince, e à esquerda o lobo da dinastia Loboprata.
Ninguém ousou encarar as feras, mas todos se inclinaram num gesto respeitoso em saudação. Triss era amada, uma digna governanta sem medo de estender a mão aos mais necessitados, porém, quando o assunto era diplomacia, sua paixão acalorada tendia a esfriar as relações com os demais reinos do continente.
Ela gesticulou com as mãos e aos poucos os presentes desfizeram as inclinações para retornarem aos seus afazeres.
Os olhos amarelados miraram a runa talhada na armadura do capitão da guarda real, Edmundo. E um diálogo entre os dois teve inicio, enquanto isso, a vinte metros deles, um segundo diálogo foi retomado.
— Voltando ao que importa — disse Gustav ao irmão dois anos mais novo. — Todos os Corvos da Tormenta vão acompanhá-la?
Após uma morosa bufada, Eric respondeu:
— Sim… Um exagero eu diria.
— Exagero coisa nenhuma. Essa será uma viagem de duas semanas, para mais. Lincevall pode ficar no meio do reino, mas ainda é longe o bastante da Cidade Livre para relaxarmos na segurança da soberana.
Com a mão no rosto, Eric retrucou:
— Você leva tudo muito a sério, mas prometo que faremos de tudo para mantê-la segura.
— Ótimo, se acontecer alguma coisa com ela… — ele apontou para a Rainha conversando com Edmundo. —… Eu venho te dar um esporro pessoalmente. — terminou dando um soco no ombro do irmão.
— Quero só ver. Você sempre perdia em nossas brigas, lembra? Ou já tá ficando esclerosado?
— Isso faz muito tempo. Além do mais, eu sempre fui mais habilidoso que você.
— Só na conjuração. No braço ainda te arrebento, aposto.
A diferença física dos dois era aparente, Eric tinha uma constituição avantajada, digna dos grandes guerreiros, enquanto o irmão mais velho possuía uma musculatura capaz de suportar o peso de uma armadura completa, mas não para usá-la com a devida eficácia.
Uma lembrança veio como um lampejo na memória de Eric.
— Aliás… Você não respondeu minha pergunta — disse relembrando o momento em que o diálogo cessou, assim que Triss desceu na carruagem. — Porque o Príncipe da Tempestade não irá conosco? Vai abandonar a rainha e dar um Golpe de Estado em sua ausência?
— No fim, alguém precisa ficar. Se já não bastasse perdermos a Triss, a partida dos Corvos da Tormenta pode passar a mensagem errada para a população, ascendendo à faísca de alguma rebelião que vem sendo planejada embaixo dos nossos narizes.
Dotada de um reflexo felino, uma figura se aproximou por trás de Eric.
— Minha rainha.
— O que os irmãos Tormensson andam conspirando pelas minhas costas?
— Triss, eu estava explicando a este cabeça oca o motivo de eu ficar em Lincevall. O coitado não parece entender a consequência que a ausência de vossa alteza causa aos vassalos, principalmente os mais insatisfeitos — explicou Gustav enquanto espiava os arredores com os olhos arregalados.
— Você realmente não é o mais esperto — constatou a Rainha enquanto seus olhos âmbar encararam com pena o irmão mais novo do conselheiro. — Mas por outro, lado fico feliz que seja habilidoso com o machado. Vamos! Estamos de partida e não podemos nos atrasar nem um minuto sequer.
Estava tudo pronto para a viagem, a Rainha regressou à carruagem, os guardas montaram nos cavalos, assim como os Corvos da Tempestade, exceto seu líder, que ainda se despedia do irmão mais velho.
— Tente não queimar Lincevall, ou pelo menos não toda, viu.
— Não se esqueça de bater nos Imperiais com a cabeça do machado e não com o cabo — Gustav retrucou provocando risadas naqueles que ficariam para trás como ele.
Ouvindo o deboche do irmão, Eric ajeitou o estribo da montaria.
— Eu queria capturá-lo. E foi só uma vez — disse sorrindo.
E nesse clima bem humorado a comitiva partiu para a conferência na Cidade Livre de Avska.