Volume 1
Capítulo 10: O Dilema de Ronan
Ronan soube que algo ruim estava prestes a acontecer quando o rosto do amigo saiu da inércia do repouso. O olhar dele permaneceu ilegível, direcionando para a garota que o chamou, cujos olhos azuis arregalados exaltavam uma intenção encoberta em mistério.
Mas o rosto de Dario voltou para os seus braços cruzados sobre a bancada, para descansar.
Sentada em seu devido lugar, Nathalia ajeitou o colete que vestia sobre uma camisa manga longa. Ela girou o corpo para trás e retomou sua provocação empostando a voz:
— Sobre seu irmão… É uma pena, né… — começou brincando com seu cabelo. — Eu nunca fui com a cara de vocês, sabe? Pensando bem eu acho que é melhor assim. — Dario apenas fechou os olhos e respirou fundo. Mas Nathalia não se deu por vencida. — O que foi? Não suporta a verdade?
A cabeça dele foi desenterrada dos braços onde antes descansava. O olhar inexpressivo deixou de existir, dando espaço a feições bem determinadas…
De raiva.
— Meu irmão… — Dario hesitou por um momento. — Morreu protegendo gente como você, que se esconde atrás de palácios fortificados e guardas que dão as vidas por hipócritas em troca de migalhas.
Anna encarou a amiga com hesitação, mas Karen a viu com admiração.
— Ui! Se quiser me provocar de verdade porque não tenta uma conjuração proibida, de sangue, que tal?
Aquele comentário fez os presentes testemunharem o despertar de Dario. Ele se levantou num instante, fazendo a cadeira em que sentava ir ao chão, produzindo um baque agudo, cativando a atenção dos desinteressados com a rinha entre eles.
— Vai mesmo vir e me atacar, é? Não vai deixar eu me esconder atrás do meu palácio? — Ela riu em meio ao deboche.
Ronan também se levantou. Não estava bravo com as provocações entoadas, pois na verdade, buscava uma solução para dar um fim no que estivesse para acontecer.
Ao ver a reação de Ronan, Anna veio ao seu lado. Ela transpirava preocupação.
— Aconteça o que acontecer, por favor, não se meta. — Tentou fazê-lo lembrar do aviso que lhe deu.
Dario desceu os níveis e embrenhou-se no vão entre as fileiras, ficando na frente do trio e de costas as inocentes garotas ocupando a bancada mais próxima da porta.
— Ah. Eu lembrei — Nathalia disse entoando cinismo. — Eu tinha algo para contar. Sabe quem deu aquela missão para o regimento do seu irmão? Você tem uma chance para adivinhar. — Um sorriso malicioso formou em seus lábios.
A turma observou o embate sem dizer uma palavra. Qualquer coisa poderia acontecer a qualquer momento.
— Magnus — respondeu Dario com uma expressão sombria.
— Você fala como se existisse apenas um em toda Antares.
— Leonhart — acrescentou.
Nathalia sacudiu a cabeça para cima e para baixo.
Dario avançou.
O corpo dela foi puxado por uma força animalesca, a bancada estremeceu. Dario a levantou até seus olhos se encontrarem frente a frente. Ela contraiu os finos lábios num sorriso satisfeito enquanto aquelas mãos a segurava, amassando sua camisa branca como a neve e o colete dourado com a riqueza.
Ela não reagiu, seus braços continuavam colados ao corpo inerte.
Ronan não pôde mais ficar parado, aquilo poderia ir longe demais.
Ao ver o colega preste a ignorar seu conselho, Anna tentou segurá-lo pelo braço, porém, sem muito esforço Ronan desvencilhou-se para interferir no embate entre os prodígios da turma.
Ela se surpreendeu com a força do garoto.
— Para com isso! Você não percebe que ela tá brincando contigo?
— Eu já não me importo mais. — As palavras tremeram ao serem proferidas. — Como posso ficar parado enquanto ela zomba do meu irmão? — Lágrimas brotaram dos olhos castanhos exprimidos de tristeza. A ferida da perda tinha sido aberta para sangrar mais uma vez.
— Solta ela Dario! Você pode se prejudicar. Por favor — implorou.
— Se eu soltar ela vai continuar me atormentando. É o que gente dessa laia sempre faz. Vocês não perceberam ainda?
Ninguém se manifestou. Nathalia continuou em silêncio.
— Ela só quer te prejudicar, você não percebeu ainda?
Confiando em seu amigo, Dario soltou a garota em meio às lágrimas silenciosas, caindo assim com ela. Nathalia não demonstrou remorso por trazer a dor da perda à tona, mas parecia irritada por Ronan ter se intrometido, evitando que o colega fizesse alguma besteira ainda maior.
— Você não entende mesmo, não é? — acrescentou Anna. Decepcionada por ele ignorar seus avisos se intrometendo entre os dois.
— Eu acabei de evitar um desastre, você não viu?
— Eu pedi que não se intrometesse para não sobrar pra você, cabeça oca.
Para que não sobrasse para mim?
Nathalia se ajeitou no assento. Encarou Ronan com uma misteriosa dose de passividade. A sala permaneceu quieta sob o véu da tensão até poucos alunos conversarem baixinho com os colegas.
Dario regressou à bancada acompanhado por Ronan.
Dez minutos após o fatídico evento, Felix chegou à sala trazendo consigo sua usual montanha de livros sobre o colo, enquanto no rosto, o suor brotava dos poros e escorria em sua palidez. Ele cambaleou até próximo da mesa e largou suas tranqueiras sobre a superfície. Uma dúzia de volumes quicou na madeira e girou no ar para se esparramar no chão implorando por uma boa varrida.
Risos abafados e tímidos deboches foram captados pela audição nada aguçada de Felix, que humilhado, catou livro por livro e caderno por caderno. A lição de nada serviu, pois o professor largou na mesa as bugigangas caídas como sempre fazia. Ignorando o alerta do destino para ser mais organizado com seus pertences.
Como se nada tivesse acontecido, Felix Fitz deu inicio a aula. E como era tarde de segunda-feira, os alunos aprenderiam mais regras para um dia quebrá-las.
Ronan acreditava que o caos poderia irromper a qualquer instante. Nathalia poderia enlouquecer e voltar a provocar Dario sem mais nem menos, mas para o seu alivio, nada do gênero aconteceu. E, quando a aula chegou ao fim, decidiu passar na Biblioteca para buscar algo que ajudasse a desenvolver sua manipulação. Jurou a si mesmo que não iria se distrair com livros interessantes, mas não relevantes.
Em pequenos grupos os alunos foram deixando a sala A-101.
Ao se virar, Ronan notou o semblante de Dario denunciar o incomodo que o afligia.
— Se cuide, está bem? Pense sobre tudo que poderia ter acontecido. — reconfortou o amigo apoiando a mão no ombro dele.
— Ok, obrigado.
Dario se levantou do assento e saiu sem olhar para Nathalia, sentada ao lado das amigas.
Antes de partir rumo à biblioteca, Ronan quis perguntar aos seus amigos se estariam interessados em acompanhá-lo, mas antes que tivesse chance de levantar, uma figura se aproximou pelas sombras.
E Nathalia sentou ao seu lado, no lugar do Zeppeli. Debruçada sobre a superfície onde Dario costumava repousar o rosto cansado, ela ficou quieta, observando Ronan com os olhos bem abertos e sobrancelhas arqueadas.
A respiração de Ronan pesou em cada ciclo de inspiração e expiração.
— Me desculpe — disse ela convertendo a expressão no olhar para tristeza.
— Por quê? — questionou surpreso, encarando-a.
— Por te arrastar no meio disso tudo. — Soava arrependida de verdade.
— Tudo bem. Só acho que você pegou muito pesado com ele. — Sentiu-se estranho por repreender tamanha beldade.
— Eu sei. É que nossas famílias tem uma história já. Por algum motivo eu me deixei levar por isso. Injusto né? Eu sei… — Soou tímida ao desabafar, mas prosseguiu: — Sabe… Eu admiro muito você — ela confessou com um olhar convidativo.
Mãos se tocaram.
Ronan sentiu a macies dos dedos dela massageando sua mão. Mas o que é isso? Pensou enquanto o nervosismo o impedia de raciocinar direito. O suor gélido o banhava por baixo das roupas.
— P-P-Por quê?
Ela se aproximou.
— Você parecia tão heroico… — Ela se aproximou ainda mais —… Ao impedir seu amigo de fazer alguma besteira. — Aqueles lábios estavam a poucos centímetros da sua orelha. O nariz dela roçou em seu curto cabelo negro.
Nathalia foi se afastando aos pouquinhos. Ronan ficou sem palavras, poderia esperar de tudo daquela garota, mas uma intimidade dessas era algo fora de série.
— Aquele Zeppeli é tão bruto né? Nem parece um cavalheiro, ao contrário de você. — Um meio sorriso se desenhou.
— Obrigado…
Os mesmos dedos que acariciaram sua mão agora coçavam a nuca dela.
— Ele é uma má influência, não concorda? Sempre procurando confusão.
— Mas ele… Ele é meu amigo — tentou justificar enquanto se derretia pela doce voz de uma Leonhart.
— Não fale uma coisa dessas, ninguém pode saber que você é amigo de um. —Ela hesitou retraindo o rosto. — Bem. Você sabe né.
Fingiu entender, pois não quis se fazer de ignorante na frente daquela inofensiva criatura vinda de um conto de fadas.
Permaneceu impassível.
— Ronan, né? — Ela perguntou com um sorriso completo.
— Isso.
— Ronaaaan…?
— Briggs.
— Ah, você é aquele rapaz que conseguiu o financiamento? Nossa família é uma das responsáveis pela Fundação. Fico tão feliz que um cavalheiro de família comum possa ter a chance de entrar nesse mundo. Nós precisamos muito de gente como você.
— Obrigado — A felicidade propiciada por ela entender a importância daquilo tudo inflou a sua autoestima.
— Você sabia que essa sua amizade com o Zeppeli pode te prejudicar?
— Que? Como?
— Lembra quando eu falei que minha família é uma das cabeças da fundação que fornece o financiamento para gente como você?
Ronan anuiu balançando a cabeça.
— Você percebeu que eu e aquele garoto não nos damos muito bem, não é verdade? — Ela esperou que ele fosse capaz de juntar as duas pontas.
— O que isso tem a… — Foi então que percebeu. — Entendi… — Ronan concluiu, desolado.
— Espero que faça a escolha certa, tá bom? Até amanhã. — Ela se despediu lhe dando um beijo no rosto.
E assim, após envenenar sua presa, Nathalia saltitou sorridente pelos níveis que separavam as fileiras de bancadas.
Encravado no mesmo lugar, Ronan não iria mais para a biblioteca, quebrando a promessa que fizera a si mesmo. Por minutos afio ponderou sobre os eventos recentes ao testemunhar todos os colegas saírem, ficou sozinho até uma faxineira entrar na sala, dez minutos depois do último sair pela porta.
Ela não disse nada, mas deu inicio a tarefa de arrumar a bagunça deixada pela turma.
Ronan por fim acordou do transe induzido. Puxou a mochila e a pôs nas costas em dois movimentos. Saiu da sala sem despedir-se da humilde empregada, não por maldade, mas por incredulidade. Desceu as escadas até os sapatos atingirem o térreo, caminhou até a saída do prédio. Seguiu pela estradinha contornada por árvores. Cruzou o pátio e ignorou a fonte com os dois leões de pedras, de costas ao outro, vomitando água.
A menos de dez passos do portão, Ronan foi abordado por Anna uma segunda vez. A garota brotou de lugar nenhum, surgindo num passe de mágica em sua frente.
Isso vai virar rotina?
— Desembucha. Essa cara de peixe morto só pode significar uma coisa.
Ela já sabe?
— Ela me chantageou… Pediu para eu romper a amizade com Dário.
— Sinceramente. Eu não esperava nada muito diferente.
— O que? Como você pode ser amiga de uma cobra dessas?
— Por favor. Não me julgue por isso. Eu devo muito a ela e sua família.
Por algum motivo Ronan acreditou. Ao ouvir sua simples e humilde confissão, a imagem de Anna ao lado do pai no sábado de recepção aos alunos, veio a sua mente.
— Perdão por perguntar, mas isso tem algo a ver com o seu pai?
Ao ouvir tais palavras Anna arregalou seus olhos, surpresa por ele desconfiar.
— Sim, mas não quero falar sobre isso. O assunto agora é sobre o que minha amiga fez com você.
— Ela realmente pode cancelar o meu financiamento? — Precisava saber se tudo não passava de um blefe.
— Não tenho certeza. O pai dela faz tudo que ela pede. Aquela família é muito influente dentro da Fundação. Eu sei disso, pois costumo passar os fins de semana e feriados com eles, para ficar longe do… — Hesitou por um instante. — Do meu pai. — concluiu envergonhada.
— Obrigado pela honestidade, juro que vou pensar bem nisso.
— Você ainda quer pensar? Ronan, o estrago já foi causado, só não seja burro o bastante para pior ainda mais. — Ela deslocou-se para a direita e passou ao lado dele.
Os fios de cabelo foram à última visão que teve de Anna, pois ao se virar, ela já se perdera na multidão de alunos.
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