Volume 3 – Parte I

Capítulo 46: Somnialita

                         

A criatura ruge e o som cria ondas de pressão no ar que empurra carros estacionados, curva árvores e nos afasta dela. Uma completa aberração. Uma coisa medonha que só poderia ter saído do pesadelo mais insano de algum louco.

Se eu tivesse que resumir essa coisa, seria uma quimera de cavalo com três rabos de escorpião, chifres em todas as três cabeças, uma de cavalo, uma de leão e uma de gente, mas deformada. Um amálgama de braços e patas grudado no tronco desafia todos os conceitos existentes de anatomia, humana ou animal.

A cabeça de cavalo, a do meio, tem um semblante estranho; como se o cavalo estivesse em surto ou possuído. Os olhos vermelhos em espiral são fundos e ele baba com os proeminentes dentes para fora, bufando e relinchando. A de leão tem os olhos tortos e desalinhados e as presas saltam para fora da boca. A juba é um emaranhado de serpentes vivas.

A de humano... bom, não me sinto a vontade para tentar definir o que é aquele pedaço de carne com formato de cabeça e muitos olhos arregalados. É demais para mim.

Ao rugir do monstro, suas caudas de escorpião aumentam de tamanho e avançam contra nós, vindo de cima.

— Calebe! — Sashi grita, enlaçando seu braço no meu tronco e me puxando para o lado.

Yatsufusa usa de sua velocidade, concedida pela máscara de raposa, e passa por baixo dos ferrões intrincados em escamas, preparando a nodachi nas mãos. Os passos são rápidos em meio aos carros congelados da avenida, desviando das ferroadas que investem contra o solo como lanças arremessadas.

Kitsune no kata: Kyuubi renzoku arashi!

Sua espada risca o chão em um lume explosivo. O movimento em arco cria um vácuo antes do golpe que acerta o monstro bem no dorso, o fazendo se afastar. Contudo, no meio do salto, o revide vem. Os ferrões se armam e atacam o mascarado.

Retalhadora de Sonhos, Estilo do Equinócio: Impulso da Lança Outonal!

É a vez de Sashi atacar. Antes que eu me dê conta, ela se lança contra os tentáculos pontudos, pingando o que na minha cabeça seria veneno, e os decepa ainda no meio do movimento. Os membros horripilantes se contorcem no chão antes de desaparecer.

— Eu disse que posso cuidar dele sozinho, Musashi! — reclama Yatsu, apontando a katana dele para a samurai.

— Se liga! Não vê que esse pesadelo é diferente do resto?

— Nada que minha lâmina não possa fatiar! — Ele balança a nodachi e desvia um ataque das caudas decepadas da criatura. — Não importa quem ou que seja, eu serei o vitorioso!

Isso lá é hora para atuação?!

De repente, a criatura solta uivos guturais e os tocos onde ficavam os ferrões começam a tremer. E logo, mais três ferrões brotam dos cotos, parecendo ainda mais letais, ameaçadores.

— Ele se regenerou?! — Não posso conter o espanto.

— Eita — Sashi se assusta e recua alguns passos.

— Esse monstro vai dar mais trabalho do que imaginei.

Com guinchos e rosnados, o monstro desce seus, agora, quatro ferrões sobre os dois espadachins. Eles desaparecem antes que o golpe se conecte, e os ferrões se enterram no chão, fazendo todo o calçamento implodir. Uma erupção de pedras e poeira explode, espalhando detritos por toda a área da avenida.

Sashi e Yatsu reaparecem nos metros seguintes do outro lado. Os cabelos de Sashi começam a brilhar em faíscas violeta, ao passo que o fogo onírico, o qual compõe sua energia, toma conta das mechas. Labaredas violáceas rodeiam o corpo da samurai, indicando que ela está com seu corpo de gnosis ativo.

O mascarado também está com sua parede energética erguida, embora fosse bem mais sutil que o do meu persona. 

— E agora? Precisamos combinar uma estratégia para...

— A única estratégia aqui é que vou cortá-lo até que não consiga mais se regenerar. — Yatsufusa passa por cima da Sashi e avança sozinho.

— Ei, espera! Ah, que droga! — Sashi corre atrás dele, a espada preparada para retalhar.

Yatsufusa se joga contra a criatura, desviando de duas ferroadas mortais e cortando os ferrões na base com facilidade. Nem consigo imaginar as consequências de ser acertado por aquilo.

Ele, usando um deles como ponto de equilíbrio, salta na direção da cabeça de cavalo. Sendo a do meio, o pensamento óbvio é que devia ser a mais importante.

A criatura, porém, vira a cabeça de leão contra o mascarado e abre a boca cheia de dentes como navalhas. Um clarão surge da boca feral e dispara contra Yatsufusa uma rajada de pura Gnosis que rasga a realidade monocromática.

— Yatsu! — Sashi exclama.

Ele usa sua nodachi para cortar o feixe de energia que explode a rua e a calçada, abrindo buracos ardentes de asfalto derretido. Sinto meu sangue gelar dentro das veias meu pulso empalidece.

Quase morri!

— Sashi! Cuidado com as cabeças! Elas...

Minha voz emudece quando as cabeças daquele demônio se viram para a mim, em especial, a do cavalo. Seus olhos de espirais infinitas, absorvendo tudo e até mesmo a esperança, se arregalam ainda mais do que imaginei ser possível e a língua do monstro serpenteia para fora da boca. A cabeça treme e se move em movimentos duros, robóticos e ameaçadores.

Ele notou minha presença. Isso é ruim!

— Somni... Somni... Somni~~~~~~.

— Essa coisa fala? — Sashi questiona sem esperar uma resposta.

— Concentre-se, Musashi! — grita Yatsufusa ao perceber a intenção da fera.

De repente, as mais de 10 patas, braços e cascos equinos se mexem e se debatem de uma vez. Agora eu sou o alvo. A cabeça de cavalo insana, babando e guinchando, está com seus olhos grudados em mim enquanto grita:

— SOMNI, SONMI, SONMI, SONMI, SOMNI, SOMNI, SOMNII~~~~~!!!

— Puta merda!

Procuro correr, levantar, esquivar... qualquer coisa, mas ele é muito rápido. Qualquer coisa naquele mundo é mais capaz que eu e não tenho com reagir. De repente, um tinido metálico ressoa na minha frente.

É Sashi! Ela se coloca na frente para me proteger, empurrando a criatura com sua espada encaixada entre os dentes da cabeça de cavalo.

— Urgh, ugh!

— Sashi! Cuidado, Sashi!

Os ferrões serpenteiam em cima de nossas cabeças e se voltam contra ela. O coração para por um momento quando percebo que eles vão atingi-la.

— Sashi! Saí!

VUUSH, VUUSH, VUUSH!

De repente, os três ferrões são reduzidos a uma bacia de cubículos de carne a se espalhar pelo chão. Yatsufusa aparece montado sobre o dorso asqueroso, cortando os braços e pernas sobre ele e então brande sua nodachi.

— Eu já disse que odeio ser ignorado, fera! Eu sou seu oponente!

Sem misericórdia, ele desce a nodachi com tudo na cabeça do monstro com um som especialmente grotesco. A lâmina se enterra no crânio equino do pesadelo e o corpo tem um espasmo violento. A criatura começa a escoicear enquanto a cabeça de leão ruge e a de humano — ou quase — faz algum som rouco e horrível que lembra um porco engasgando.

O pesadelo se afasta e dá espaço para nós. Ele sai desgovernado pela avenida, com Yatsufusa montado sobre ele, sua nodachi sendo seu único ponto de apoio. O monstro se choca contra as grades de ferro que separam a avenida da universidade, contra os postes e placas e carros... tudo isso enquanto dá coices, chicoteia com os ferrões e uiva e guincha.

— Acho que agora... o Yatsu conseguiu dar... algum dano nele — diz Sashi, arfando.

— Mas... por que ele não... tá sumindo?

Sashi responde com o cenho franzido, indicando que é um fato que ela ainda não havia se dado conta. E foi quando também percebi um outro, com alguns requintes de “assustador”.

O monstro não possuía elo onírico em canto algum! Era um pesadelo que não estava ligado a nenhum agente, a nenhum lugar. Nada o prendia. Então não havia como dissipá-lo? 

Yatsufusa é arremessado de cima do monstro com um coice violento e sai voando até capotar algumas vezes na avenida e parar agachado. Mas antes de ser arrancado de cima da criatura, ele se certifica de arrancar a cabeça de cavalo com um puxão vigoroso no processo. A besta uiva de dor e cai no chão.

Ao mesmo tempo, um dos ferrões atinge Yatsufusa de raspão e o joga contra uma arvore. A nodachi se crava no para-brisa de um carro estacionado a alguns metros dele.

— Yatsu!

— Droga! — Sashi resmunga, pousando a mão sobre o cabo de sua espada com os joelhos flexionados. — Vou acabar com isso de uma vez! Retalha...

De repente, uma explosão acontece no lugar onde a criatura está e uma grande nuvem de poeira cobre o local. A pressão do impacto agride nossos corpos, empurrando-os para trás. Um sonoro quebrar de pedras preenche meus ouvidos quando os sons do pesadelo quimera cessam.

— Que... que foi isso agora?!

Sashi geme, tentando permanecer firme no lugar com a ajuda de sua arma. Quando a poeira baixa, uma silhueta pequena surge entre os escombros. Algo balança atrás dele com movimentos suaves e faz um desenho de coração.

— Alguém… chegou.

Uma menina de estatura mediana, com longas orelhas de gato e dois rabos. Ela de pé sob um grande pedaço disforme de carne amassada e sem vida contra o solo, a desaparecer lentamente, restando apenas a cratera abaixo dela.

— Foi mal, filhotes. Demorei muito?

Com um grande sorriso e um punho fumegando, Nymph aparece como seu chefe: caindo do céu.

 

— Espera, espera um pouco... explica esse negócio direito. — Nymph balança a cabeça em negativa, se esforçando para concatenar as ideias.

— Um pesadelo muito feio e que não veio aparentemente de ninguém — repito, sentindo o desconforto ao voltar para a memória. — E era bem mais forte e resistente que os outros.

Magic está sentado ao lado de Nymph, com os dedos entrelaçados em frente a um rosto sério. A careca reluz com o suor de sua primeira caminhada do dia. O maxilar quadrado do Executivo se contrai a cada nova informação.

Ao meu lado, Emma e Ingrid estão ouvindo a história também. Mesmo que ela estivesse presente naquele dia, na forma de Yatsu, ela ainda não consegue se lembrar de quando usa fictomancia.

— E ele fez mais alguma coisa? — Ingrid pergunta.

— Ele… ficou falando “SOMNI, SOMNI” com a maior cara psicótica. — Só a lembrança me traz calafrios. — Sem parar… ele queria algo.

— “Somni”? — Emma repete, pensativa. — O que isso quer dizer?

— Eu sei — diz Magic de repente, depois de esquecermos que ele está lá. — Somnialita.

Nossos cérebros dão um nó ao tentar entender do que ele fala. Acho que é a primeira vez que escuto essa palavra na vida.

— Perdão?

— Somnialita é um mineral raro e mágico, encontrado apenas no mundo dos sonhos — explica Nymph ao franzir a testa, claramente incomodada.

— Ela tem poderes inacreditáveis, como o de conferir habilidades fictomânticas a não fictors — prossegue Magic. — E para alguém que já é um fictor, as possibilidades são ainda maiores.

— Chamamos eles de chatos — acrescentou a assessora, bem rápido entre a fala do seu chefe. — Os não fictors, quero dizer.

— Imagino que entendam o porquê. — Magic abre um sorriso malandro.

Estreitamos os olhos uns para os outros ao entender o sentido do nome, fuzilando os dois, como dizendo: “Sério que não tinham um nome melhor, poxa?”.

— Mas, se aquela coisa estava atrás de uma Sonmi… Some, Som…

— Somnialita.

— Essa parada aí… por que veio logo na minha direção? — pergunto, temendo ouvir a resposta.

— É uma ótima pergunta. — Emma cruza os braços, se esforçando para realinhar os olhos cansados no Executivo. — Se essa pedra só existe no mundo dos sonhos, como o Calebe teria uma?

— Por isso. — Nymph aponta para mim. Especificamente, meu pescoço.

O colar que minha mãe me deu no meu primeiro dia de aula.

— O que foi? Por que tá apontando pra mim?

— Na sua luta contra o enlatado, na arena, todos nós prestamos atenção nessa coisa brilhando ai. Alguns de nós desconfiaram, é claro, mas não tínhamos como ter certeza.

— Até agora — Magic se levanta, a toalha não conseguindo abarcar seu trapézio volumoso. — Prepare-se para usar fictomancia em cinco minutos. Quero todos vocês fantasiados nessa sala.

— Ah? O que foi? Por que isso de repente?

— Não me diga que você vai…? — Nymph fica boquiaberta com algo.

Magic sorri. Fico preocupado.

— Vou mostrar algo a vocês.

 

Os outros se preparam e se encontram onde estávamos nos reunindo mais cedo. Magic reaparece agora vestindo uma regata preta justa ao corpo, passando a impressão que a camisa ia explodir a qualquer mínimo movimento dele, e calças de ginástica cinza com amarelo. Usa ataduras nos braços grossos demais.

Ao contrário do que podia parecer, ele está na forma do seu persona. Completamente idêntico à sua versão do mundo real, muito diferente do que foi com Nádia.

Yatsufusa, Zeppelin e Nymph também aparecem. Com todos reunidos, o Executivo faz um gesto convidativo.

— Por aqui.

O acompanhamos até o último quarto da casa. Aquele único quarto que fica trancado a maior parte do tempo. Magic pressionou a mão espalmada sobre o dispositivo e uma lufada pesada de ar vem seguida de estalos metálicos. Pelo menos três barras de ferro se movem dentro da parede.

O que tem ali para estar tão protegido? A receita da Coca-Cola?

A porta chumbada se abre para nós e revela um elevador. Um espaço que mal cabia o encorpado persona do Executivo. Ele entra primeiro, seguido de Nymph, Yatsu, Zeppelin e então, nós.

Sashi está do meu lado, nossos corpos quase se fundindo em um só. O aperto me faz sentir o cheiro dos cabelos dela, fazendo cócegas contra meu ombro. Como algo que pega fogo roxo pode ter um cheiro tão bom?

Mas, diferente da última vez, não caímos um por cima do outro. Não sei se fico desapontado ou aliviado com isso.

— Aqui.

A porta se abre e revela escadarias em espiral. Magic lidera a trilha de degraus metálicos que só ia descendo mais e mais. O lugar se torna mais claustrofóbico à medida que avançamos.

Até que chegamos a uma grande câmara subterrânea. Ou pelo menos é a impressão que o espaço passa. Mas todo o ambiente está cinzento e com marcas estranhas cobrindo todas as paredes, e creio que não é porque o decorador é algum adepto fervoroso da moda barroca.

Estamos no mundo dos sonhos de novo. E dessa vez, em um campo lúdico.

— Que lugar estranho — Zeppelin deixou escapar enquanto sua cabeça dá voltas contemplativas.

— Parece tirado de algum filme de explorador trash dos anos 90 — digo em seguida.

— E é porque é mesmo — Magic diz e então dispara na frente em uma corrida repentina, jogando poeira e terra nas nossas fuças.

Nymph faz o mesmo enquanto ri. Eu, Zeppelin e Yatsu ficamos parados no seco, de sobrancelhas franzidas, enquanto vemos eles desaparecerem nos horizontes de concreto monocromáticos.

— Se eu fosse vocês — A voz de Magic ecoa pelo corredor aparentemente infinito. — Correria também!

— O que esse doido tá querendo agor…?

Antes que Zeppelin termine de falar, um som perturbador preenche todo o espaço da câmara, percorrendo os corredores. Olho para trás e percebo passos. Passos nada amigáveis.

E rápidos.

Puta merda!

Meus instintos me alertam para correr. As pernas se movem sozinhas em um ímpeto frenético, carregadas de adrenalina. Os três personas disparam na minha frente e eu, um simples humano médio e semi-sedentário, sou deixado para trás comendo poeira.

— Calebe! — Sashi para na metade do trajeto e se vira, voltando para mim.

— Vai, vai! Não se preocupe comigo! Se salva! Se…!

Outro rugido pesado ecoa e faz as paredes do corredor vibrarem. Olho por cima do ombro bem rápido a tempo de ver coisas como tentáculos negros rastejando e ondulando como mechas de cabelos enormes e medonhas, saídas da escuridão.

Pensei ter sofrido uma parada cardíaca.

— Foi mal! Eu menti, eu menti! Me ajuda!

Sashi me agarra com o braço direito, como se levasse uma criança ou um saco de batatas debaixo do braço, e flexiona bem os joelhos, sem desviar o olhar determinado.

— Se segure bem em mim! A gente vai com tudo!

Os gemidos e sons inquietantes de dedos perfurando as paredes do corredor se tornam cada vez mais intensos. O coração acelera ao ritmo que o barulho se torna mais alto. Já consigo sentir uma sensação mortalmente gélida de arrepiar os pelos.

— Sashi!

— Vamos!

Lançada pelas pernas poderosas, ela dispara como um foguete pelo caminho reto do corredor, meu corpo sofrendo com o solavanco brutal, meus órgãos colidindo dentro de mim como uma pista de carrinhos bate-bate lotada. Nem tenho como descrever o quanto me esforcei para não ser propelido para frente ou ficar para trás nessa hora.

E me esforcei o dobro para manter o que estava no meu estômago lá.

Solto um grito mudo enquanto Sashi corre e corre alucinadamente pelo corredor cinzento. As paredes em minha visão apavorada não passam agora de borrões indistintos e sem cor enquanto o que sobra para trás é apenas um rastro de poeira que sobe até o teto.

Quando escuto os gemidos e gritos e sons ficarem para trás, outra coisa me pega totalmente de surpresa.

Ouço uma batida alta e depois uma abafada. O mundo capota ao meu redor e minha cabeça é agredida por algo duro, aparado pelo que julguei ser o corpo da Sashi. Rolo junto com ela no chão até parar de peito para cima com a cabeça doendo e tudo girando.

— Ai, ai… merda… que porra foi… essa?

— Olha só. Vocês conseguiram. Achei que seriam absorvidos pelo Aspirador.

Zeppelin está parada a poucos metros da gente, também ofegante. A porta quebrada e a parede detonada atrás de nós se remonta sozinha.

— As… Aspirador? Que… porra é aquilo?

— Que monstro… horrendo — Yatsu tropeça nas palavras, usando a nodachi para se apoiar.

É a primeira vez que o vejo assustado daquele jeito.

Magic ri com os braços marombados reunidos sobre o peitoral e responde:

— Um bichinho que deixamos para tomar de conta do que está nessa sala.

Demoro um bom tempo para me recuperar, mas quando levanto com a ajuda de Sashi, uma coisa impressionante se mostra para nós. 

Simplesmente estamos em uma caverna em algum lugar, em alguma dimensão, em algum sonho. Uma caverna extensa cheia de limos e cogumelos brilhantes que cintilam em um brilho azul neon e estamos no centro de uma das três plataformas ligadas por uma ponte de corda robusta.

Na segunda plataforma, uma pira gigante queima com um fogo verde e é guardada por dois tragedianos criados a base de trembolona e malto gluta, possivelmente donos de alguma academia. Seguram duas lanças de lâmina curvada e suas máscaras são de emojis com óculos de sol.

Atrás deles, uma escadaria larga de pedra se ergue para nos conduzir ao topo de uma pirâmide maia que colidia com um buraco oval no teto da caverna. Uma luz etérea chove por ela, cobrindo o que está lá em cima, sobre um pedestal.

— E agora? — pergunto, sem conseguir fechar a boca e mirando o topo da pirâmide.

— Só me seguirem.

Eu, Sashi, Yatsu e Zeppelin nos entreolhamos e seguimos a dupla. A ponte range com nossos pesos e é impossível caminhar por ela sem que nossos olhares sejam magnetizados para o que está lá embaixo.

Aquela água é tão azul e brilhante e continha coisas que me lembram peixes exóticos e deformados, com filamentos brilhantes, coloridos e olhos em cantos errados. Mesmo que tudo aquilo seja tão fantástico e hipnotizante, eu não gostaria de mergulhar nessa água.

Passamos pelos dois guardas tão marombados quanto o chefe e eles apenas fazem uma mesura para o Executivo e nos deixam passar. Cruzamos a segunda ponte e chegamos no topo da escadaria.

— Galera, aqui vamo fazer o seguinte: Vamos fazer uma filinha e eu vou na frente. Nymph vai atrás, na ponta da fila. Vocês decidem a ordem que querem ir ai, mas já digo logo. Não ousem e nem mesmo cogitem a ideia de saírem da fila. Só subam as escadas seguindo meu ritmo e, se sentirem desconfortáveis, eufóricos e cansados, avisem a mim ou à Nymph, certo?

Engulo em seco. O que ele quis dizer com isso? A escada tem mais algum mecanismo de defesa para invasores? Armadilhas? Algum espécie de campo lúdico que irá nos prender?

De novo, a única coisa que posso fazer é confiar nele. Odeio essa sensação de impotência que insiste em ser passada na minha cara a todo momento.

Nós concordamos e Yatsu passa na frente da Sashi, quase a empurrando. 

— Eu vou na frente. Para caso aconteça algo — diz com certa arrogância.

Sashi franze as sobrancelhas em uma expressão de reprovação.

— Eu vou na frente. Pode ser, Calebe? — Ela pergunta. — Ou se sente melhor se eu cobrir suas costas?

— Pode ir na frente. Damas primeiro, sabe como é.

— Me poupe — resmunga Zeppelin detrás.

Nymph ri e toma seu lugar na fileira. Magic assume a dianteira e põe o pé no primeiro degrau.

— Vamos lá, pessoal! Sigam meus passos e não se perderão para sempre!

Como é que é?!

Sashi empalidece. Ouço Zeppelin engasgar atrás de mim.

E subimos. Magic marca os passos e conduz a marcha pelos degraus arenosos da encosta da pirâmide, um passo de cada vez. Até mais ou menos metade do percurso, nada de anormal está acontecendo. É como uma subida normal. Sinto as pernas incomodando um pouco, mas são apenas reclamações delas sobre uma atividade alheia à esticar-se no pufe da sala de estar.

Continuamos a subir. Os minutos passam, as pernas doem e a caminhada não parece acabar. Uma pontada dolorida atinge minha coxa em certo degrau e dou sinal de parar quando Magic avisa de repente:

— Nem pense em parar também.

Engulo em seco de novo e mantenho as pernas em movimento, passando por cima da dor. Sinto o desconforto vindo da Sashi atrás de mim, levantando uma bandeira vermelha em algum canto do meu inconsciente. 

— E porque está demorando tanto? — Zeppelin pergunta lá de trás.

— Continue andando. Faz parte. — É Nymph quem responde.

E subimos. Passo a passo. Degrau a Degrau. Um pé na frente do outro. E a escada parece não ter fim. Tento enxergar o topo da pirâmide sob a careca reluzente do Executivo… e ainda parece tão distante. Inalcançável. 

O que está acontecendo?

— Eu… preciso parar. Minhas pernas…

— Não pare, meu amigo. Ou quer ficar preso nessa caverna para sempre?

— Como assim? — observa Sashi com certo temor. — O que tem nessas escadas?

Magic não responde e continua a subir. Nesse ponto, a dor está insuportável. Sinto minhas forças sendo drenadas e alcançar o próximo degrau vai se tornando uma tarefa gradualmente mais difícil do que foi subir o anterior.

Suor escorre pela minha testa. Estou ofegante como se tivesse corrido uma maratona e a visão oscila. Cada músculo meu dói como milhares de agulhas perfurando meu músculo ao mesmo tempo. Meus membros aparentam pesar montanhas. É o efeito daquele lugar?

— Não… não dá.

— Aguente mais um pouco. Já estamos quase lá.

Sinto Sashi ofegar atrás de mim, além de Yatsu à minha frente. Mesmo que ele queira disfarçar sua imponência, a máscara não consegue abafar seus suspiros e respiração acelerada.

Droga.

Em um dos passos, meu pé aterrissa na ponta do degrau e o peso esmagador das pernas me puxa para baixo. Ouço passos apressados antes de Sashi me agarrar e me puxar para cima, encurtando a fila.

— Sashi?

Expirações demoradas e pesadas uivam de suas narinas enquanto ela me olha nos olhos, com a testa encharcada de suor e um sorriso confiante no rosto. Ela me puxa para cima e me força a continuar, enquanto me apoio em seu ombro.

— Vamos juntos, Calebe. Nem que eu tenha… que te carregar o resto do caminho.

— Sa… Sashi…

Por conta dela vim ao meu socorro, Zeppelin e Nymph tiveram que se forçar a cobrir dois passos para manter a fila intacta. Pouco tempo depois, Magic desaparece no ar e assusta Yatsu, que ameaça parar a caminhada. Nymph estronda lá da rabeta da fila:

— Não para! Continua! Tá tudo bem!

Yatsu freia seu próximo passo no ar e, ao ouvir a voz da assessora, ele prossegue e também desaparece. Dessa vez, somos nós que cruzamos uma parede invisível e gelatinosa no ar.  A sensação é de mergulhar em um gel invisível e frio que faz cada poro meu se arrepiar.

A subida que, além de interminável, se tornava íngreme e acidentada, transforma-se em um chão plano de blocos intertravados. Uma luz forte cor de safira ofusca nossas visões assim que passamos pelo portal. Ao nosso lado está Yatsufusa e, mais à frente, Magic, aguardando de braços cruzados.

Caio de joelhos no chão, sentindo meus membros voltarem ao normal e a força voltando aos poucos. Sashi curva as pernas para recuperar o fôlego enquanto uma sufocada Zeppelin e Nymph se formam do meio do espaço.

— Céus! Quase morri! — pigarreia a empregada caolha, caindo de joelhos com os dois braços contra o chão. — De hoje em diante, só uso elevador!

Nymph não pôde deixar de rir. Magic tenta sorrir, mas a realidade prende a descontração do momento ao se virar.

— E essa luz? — Yatsu pergunta, se esforçando para esconder o cansaço. — É muito forte!

— É como olhar para o próprio sol! — Sashi desvia o olhar, escondendo os olhos com as mãos.

— O que isso, Magic? — pergunto.

— Isso é uma parte da Árvore dos Sonhos. Uma somnialita!

 

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Notas do Autor:

Olá sonhadores! Tudo bem com vocês? Sentiram minha falta?

Andamos meio ocupados ultimamente e isso gerou um atraso, mas estamos de volta. E há muitas novidades vindo ai. Os capítulos voltarão a ser publicados todas as quartas e, nesse domingo, terá um capítulo especial de Natal para comemorarmos essa data tão importante, não é?

Venho pedir desculpas mais uma vez e obrigado a todos que tem me acompanhado. Voltarei a colcoar os capítulos em dia.

Até o próximo sonho!



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