Volume 1
Capítulo 5: Aqueles que governam juntos entre sonhos I
— Hyaaaa!! Háa!!
Sashi gira seu corpo ágil, armada com a katana flamejante, gerando um vórtice afiado de chamas. O ataque divide ao meio um pesadelo barrigudo que poderia facilmente ter saído do sonho de algum dono de bar.
Mais bichos como aquele surgem, grunhindo, gemendo, lembrando alguém com dor de barriga. Eles cambaleiam como zumbis descerebrados, mirando suas mãos deformadas na samurai.
Ela está cercada por aquelas coisas e são muitos. Sashi aspira o ar pela boca, seu rosto exalando serenidade. Mantendo a arma próxima ao rosto, ela fala calmamente:
—『Retalhadora de Sonhos, Estilo do Solstício: Pétalas do Deus do Verão! 』
Após isso, a samurai se move como um relâmpago quase invisível, retalhando, cortando, golpeando. Em questão de instantes, exatamente 8 pesadelos foram reduzidos a nada. Ela para no mesmo lugar onde estava, guardando sua espada.
— Cacete!
— E então, Calebe? Como eu fui? ♥
Sem saber o que dizer ao ver tais cenas absurdas — ou nem isso, já que meus olhos não conseguem acompanhar seus movimentos — eu apenas rio e finjo demência. Minha especialidade.
Fico cagado toda vez que tenho que sair do dormitório para fazer qualquer coisa de dia, mas à noite... o bagulho é outro nível. Eu entro no meu quarto moído e espancado de um dia com professores sádicos, mas tenho que dar uma de "caçador de pesadelos" no período noturno.
E isso é completamente desgastante.
Não é como se eu estivesse mais próximo de entender todos esses fenômenos absurdos ou minha ligação com eles. Eu já estava esperando chegar no dormitório e encontrar com o Fransc... Charles, querendo me convencer a entrar pra organização super-ultra-mega-blaster-plus-secreta dele.
Aquele velho mala ainda me deve algumas respostas.
Para meu alívio, ele não tá no quarto. E já são quase 22h, então posso ficar tranquilo. Sashi está do meu lado e ela está com o rosto corado e olhos hesitantes, como se estivesse com vergonha. Eu engulo em seco.
— Que que foi, Sashi? Tá tudo bem?
— É... é que... se não se importasse... já que eu não posso ficar debaixo da cama, eu... queria saber se eu não podia dormir com você.
— E personas precisam dormir?
— Tecnicamente não, mas eu sou um caso à parte, não é?
Minhas narinas se dilatam e um sentimento de inquietação esmaga meu peito. Certo, certo, certo... Ramocumcalma! Todo esse cenário é muito conveniente e propício para uma cena de comédia romântica fetichista. Se eu não tomo cuidado, posso acabar fazendo algo ilegal.
Mas espera... a Sashi não existe de verdade, não? Isso significa que, independente do que eu fizer ou não com ela, não vou estar cometendo nenhum crime, certo? Continuará sendo um conteúdo saudável para jovens e adultos.
— Mas... como você quer dormir com essa armadura de samurai? Vai ficar um pouco desconfortável se for deitar com isso.
— Eu sou parte da sua consciência, então, imagine o que... gostaria que eu vestisse e eu estarei vestida assim. — Ela fala de forma meiga e envergonhada.
Certo... Eis que chegamos ao ponto crítico de toda essa conversa. Ao clímax de toda essa situação. A hora em que eu...
TOC-TOC!
Meu pensamento se interrompe com a batida sutil na porta. Decido me fazer de doido, fingindo que não foi comigo, mas quem quer que fosse insiste em bater. Toc-toc, toc-toc... merda! Não tá vendo que eu tô ocupado com uma questão delicada aqui, infeliz?!
— Calebe... acho que tem alguém na porta.
— É... eu percebi! — Saio batendo os pés, puto com a ruína daquele cenário praticamente perfeito. A resposta sai mais grossa do que eu pretendia.
Ao abrir a porta, não vejo ninguém, nem no corredor e nem em qualquer lugar perto dali. O lugar está vazio.
Exceto por uma coisa pequena, parada a alguns metros da porta: um frango. Não vivo, mas aqueles frangos congelados de supermercado. E ele está usando uma gravata borboleta e me encarando com aquele coto de pescoço como se ainda tivesse uma cabeça invisível ali, as asinhas curvadas nas laterais redondas do seu tronco.
É... vou precisar de uns bons minutos para digerir toda essa cena indescritivelmente bizarra. Tão bizarra que sequer reajo batendo a porta na cara dele — que ele também não tem.
— Ah... posso ajudar?
— Estou procurando o caminho do castelo. Pode me ajudar, cavalheiro? — A voz ecoante e fantasmagórica do frango me pede aquilo de forma tão natural como alguém que pergunta a hora.
— Eu... acho que não tem nenhum castelo por aqui.
— Ah, castelos estão em toda a parte. Só saber procurá-los. Eu mesmo já encontrei muitos castelos dentro de buracos de mesa...
BAM!
Bato a porta na “cara” do frango e dou meia volta.
— Quem era? — pergunta Sashi.
— Ninguém. Então, onde estávamos?
— Como eu estava dizendo, acho que há um castelo mágico por aqui em algum lugar...
— AAAAAAAAAHHH, JESUS AMADO!!
Aquele frango possuído pelo tinhoso de repente está sentado em cima da minha cômoda como uma atriz de filme erótico. Sashi se vira de uma vez com o susto e saca a espada em um reflexo, mas o frango apenas balança as asinhas como se tudo não tivesse passado de um mal-entendido.
— Para, para, para, parou!
— Calebe! Está claro que esse frango é obra de um sonho. Se ele está aqui, significa que já estamos dentro de um Campo Lúdico! — raciocina Sashi.
Suspiro com pesar. Será que isso não acabava nunca? Dei um passo e já estou dentro de outro sonho maluco.
— E então? O que a gente vai fazer? — pergunto.
— Primeiro, temos que identificar o agente e saber sua localização para conseguirmos despertá-lo.
Falar é mais fácil que fazer, né?
— Vocês, meus caros, estão deliberadamente me ignorando?
Sashi brande a katana flamejante na direção do frango, que dá um salto com a visão das chamas violetas quase dourando aquela carne branquinha dele.
— Escuta aqui, se não quiser virar um franguinho assado e ser servido com farofa no almoço de amanhã, você vai me mostrar a direção desse tal “castelo” que mencionou.
— Mas..., mas... ninguém pode entrar no castelo sem autorização da ra...
VUUUUSH! Uma língua de fogo se forma a partir da lâmina de Sashi.
— IIIIIIIIYYAAAAAGH!
— E aí, Frangolino? Como vai ser? Vai chupar ou vai lamber?
— C-C-Claro-que-eu-ajudo-vocês-não-tem-problema-nenhum-óbvio-que-eu-ajudo-pessoas-tão-boas-e-honestas-como-vocês-só-não-me-assa-pelo-amor-de-Deus-eu-imploro...
— Ótimo. E aproveita o caminho...
O frango treme, quase caindo da cômoda. Sashi o fuzila com os olhos, como se quisesse de fato devorá-lo.
— IIIIIIAHAH! Po-pois não?
— Você ia falar sobre uma rainha? Desembucha.
***** *****
Ao deixar os dormitórios, o senhor frango falante nos guia pelo campus meio adormecido, através dos limites dos últimos blocos onde a quantidade de prédios diminui e as arvores aumentam. Ele passa o caminho inteiro falando sobre a tal “rainha e rei dourados”, descrevendo-os como deuses onipotentes.
Só babação de ovo que se estende por uma eternidade. Tanto que nós perdemos a noção do tempo e paramos de ouvir em algum momento.
— Estranho... — Dado trecho, Sashi solta a voz.
— Que foi, Sashi?
— Nenhum Campo Lúdico deveria ser extenso assim. Tem alguma coisa errada com isso.
— Acha que é algum pesadelo?
— Não... deve ser mais que isso.
— Estamos quase chegando ao castelo da rainha dourada!
— Faz meia hora que você tá falando isso, ô carne magra! É bom você não tentar nenhuma gracinha pra cima da gente ou eu vou fazer espetinho de você!
— Ai-ai-ai-não-não-não-é-sério-tamo-quase-lá-eu-juro-a-gente-vai-chegar-logo-por-favor-não-coma-minhas-coxas-deliciosas-eu-imploro-piedade!
— Cala a porra da boca e continua andando!
Chuto ele pela estrada. Ele sai cambaleando na frente, desajeitado. Já não serve nem para comer agora que rolou no chão.
— Calebe. — Sashi aproxima o rosto, falando baixo. — Será que podemos confiar mesmo nesse... frango?
— E que escolha nós temos? Nem sabíamos que estávamos em um Campo Lúdico até o meio-quilo aí bater na porta.
— Sei não... isso tá fácil demais. — Sashi torce os lábios, incomodada.
— Bem... qualquer coisa eu estou com você, então me sinto seguro — disse, as duas mãos atrás da cabeça. — Você é bem forte, então estou contando com você para lidar com qualquer coisa que possa aparecer.
Ela sorri, corada.
— Calebe...
De repente, tanto eu quanto Sashi escutamos a mesma coisa: Trombetas. Várias delas. As arvores se afastam como um cenário falso de um teatro, revelando uma planície florida e ensolarada.
E por sinal, o sol é um papelão rabiscado e pintado. Ainda assim está um calor de fritar.
Uma estrada serpenteia pela planície até os portões de um grande castelo de pedras e ouro reluzente. Torres altas margeiam os portões de entrada. Mais frangos erguendo estandartes podem ser vistos.
As estruturas tem caretas cartunistas que parecem zombar da gente quando nos aproximamos — na verdade, boa parte das coisas ali tinham olhos, nariz e boca. As trombetas que ouvimos, essas que parecem cobras ou molas de tão compridas e retorcidas, estão voando ao redor do castelo, anunciando nossa chegada.
— Que porra é essa?!
— O castelo dourado... e a rainha já está... nos esperando! — O frango já está para ter um troço a essa altura.
Duas silhuetas surgem na amurada do castelo, entrando da forma mais pomposa possível com explosões de confete, show de luzes e as trombetas tocando uma sonata imperiosa que escala cada vez mais a cada passo.
Sashi vai na minha frente, ficando em alerta para qualquer coisa. Meu coração palpita com a tensão que vai se construindo...
—...!
Só pra ver ela despencar como um meteoro logo em seguida. Quem aparece no topo da torre, na nossa frente é os dois gêmeos marrentos, Lindalva e Beni, dessa vez fazendo cosplay de rei e rainha de baralho. Colo os lábios para segurar uma risada.
Lindalva faz um gesto de mão e tudo para de uma vez. Silêncio total. Até o vento congela sob sua ordem.
— Ajoelhe-se perante sua rainha, plebeus!
Cada coisa que podia se ajoelhar naquele lugar, se ajoelhou. Frangos, muros, postes, grama, até as nuvens se desenham na forma de pessoas sobre os joelhos.
Menos eu e Sashi, é claro.
— Pff... MUAHAHAHAHAHA! Carai, Lindalva! Eu percebi que você era narcisista, mas não a esse ponto! E comprou essa roupinha em que feirinha? HAHAHAHAHAHAA!
Ela me fuzila com um olhar severo e sanguinário e então proclama:
— Eu... mandei... ajoelhar!
Com o ultimato dela, um peso brutal cai sobre meus ombros de repente. Meu corpo está gritando e ardendo, minhas pernas não aguentam a pressão sobre elas e estão prestes a ceder. Viro o rosto de leve e percebo que Sashi também está sendo afetada por aquele peso fantasma.
Até que somos obrigados a cair de joelhos diante dela. Um sorriso de orelha a orelha se abre no rosto branco demais.
— Bem melhor. Meu rei, quem são esses reles plebeus que ousam adentrar nossos domínios?
— É evidente que são apenas intrusos e devem ser sumariamente eliminados — determina Beni, de sorriso esnobe.
— Que merda de teatrinho é esse?
— Calebe — Sashi chama, arfando. — Está evidente que eles são os responsáveis por esse Campo Lúdico. Aqui eles não... são os seus colegas de classe. Eles... são governantes desse reino insano.
Sashi faz um esforço para alcançar sua espada enquanto os irmãos se vangloriam por terem dois randoms ajoelhados diante de seu castelo. Ela libera seu fogo violeta e as chamas se espalham pelo ambiente.
De alguma forma que eu não entendo, o fogo da espada de Sashi é o suficiente para cortar o efeito deles sobre nós. As coisas sorridentes que fazem parte do cenário se afastam com um susto.
Eu me sinto com o corpo livre novamente. É um alívio!
A rainha Lindalva e o rei Beni, no entanto, olham para nós com uma veia saltando da testa, os dentes rilhando com uma fúria palpável. Acho que é a primeira vez que alguém permanece na frente deles sem virar um completo capacho.
— O que. Significa. Essa. Petulância? — Lindalva diz com pausas ameaçadoras entre cada palavra.
Recupero o fôlego. Com uma frase foda — porque senão não tem graça —, eu retruco com o polegar virado pra baixo:
— Significa que está na hora de acordar, majestade!