Volume 1

Capítulo 3: Investigador de sonhos

 

— E então, a palavra “Literatura”, no sentido de certa produção discursiva dotada de uma fisionomia singular, é um movimento de emancipação léxica recente que teve por objetivo a...

Minha baba escorre pelo canto da boca, uma poça a se formar em uma distância perigosa do caderno. A professora explica tão devagar que me faz sentir que estou naquele mundo cinzento e parado daquele dia.

Desde o incidente com o pesadelo, tenho me esforçado para seguir com a rotina normal. Claro, a Sashi agora é um eterno lembrete de que, de normal, minha vida não tem mais nada. Talvez nunca mais tivesse.

E ainda tem meu distúrbio de pesadelos. Isso tudo, além do temor constante de ser atacado por mais aberrações como o pesadelo das cabeças, me deixa apenas com 50% da capacidade de prestar atenção em uma aula de Teoria da Literatura.

Sashi balança as pernas e a cabeça, impaciente. Até pouco tempo prestava atenção na aula, mas passou até mesmo a observar as borboletas voando, com a maior cara de saco. A explicação parece interminável. Poxa... só quero voltar logo pro dormitório e apagar até amanhã.

— Aaaaaah! Como você aguenta isso? É tãaaaaao chaaaato! — Sashi reclama e reclama a cada dois segundos.

— E eu tenho culpa se a professora parece ter a habilidade de colocar os outros pra dormir com a voz?

Ela infla as bochechas, lembrando uma criança birrenta. Eu entendo que assistir uma aula de Teoria da Literatura na velocidade -10 não está no topo da lista de interesses de um persona, mas não posso me dar ao luxo de ter que explicar isso a ela agora.

— Tá, tá, eu sei que tá chato, mas as aulas são obrigatórias. E dá pra parar de ficar falando comigo? Se alguém ouvir...

— Fica tranquilo, Calebinho. Como já deve ter percebido, ninguém pode me ouvir ou interagir comigo além de você. — Ela diz aquilo como se tivesse explicando para um chimpanzé. — Até porque alguém teria que ler sua mente para isso, e nós sabemos que essas coisas não existem.

Sashi dá de ombros. “Essas coisas não existem”, diz. Assim como manifestações de sonhos e pesadelos também não existiam até ontem, né?

— Tá, mas só fica quieta, por favor! Se alguém me pegar conversando com você, vão pensar que...

— Calebe! — A professora me chama de repente. — Está falando com quem?

Cacete! Além de ter sonífero na voz, ela ainda tem super audição?! É um mutante, essa professora! Não me resta alternativa a não ser fingir demência.

— É... eu tava, eu tava... pensando alto, fessora. Só isso! Pensando alto! Hahahaha! — Alguém me mata, por favor!

A professora Rute me olha com reprovação e eu só consigo encolher a cabeça entre os ombros, como se pudesse enterrá-la dentro do corpo. A classe toda olha para mim, alguns cochichando, outros rindo. E tem o Bernardo com a cara de paisagem dele.

— Certo. Se quiser pensar alto, pense fora da sala. Esse conteúdo é vital para os próximos projetos e você está atrapalhando.

Sashi tem uma crise de riso ao meu lado. Bernardo pisca o olho para chamar minha atenção, mas o que está parecendo é que ele está no meio de um AVC.  

— Ei, caaara!

— Que que cê quer, Bernardo? Eu já não passei vergonha o suficiente? — Minha voz já é quase um sopro.

— Que é isso? Cê tá bem, cara?

— Ótimo! Melhor impossível! Sempre falo sozinho quando estou transbordando de energia! — ME MATEM!! SÓ ME MATEM, PELO AMOR...!!

E Sashi continua a gargalhar mais e mais alto, me avacalhando cem por cento.

Depois de um dia puxado de aulas — e do mico que eu passei na aula da professora Rute — estamos voltando para os dormitórios. Bernardo organiza suas pastas abarrotadas com as ideias da conspiração dele e Sashi está caminhando com tanto vigor que chega a saltitar como uma corça.

— Cara... o que tá rolando? — começa.

— Como assim? Não tá rolando nada.

— Vem com essa não, caara! Cê tá todo esquisito desde ontem, mais do que o normal. Saiu correndo que nem um louco, não disse nada e ainda por cima agora fica falando sozinho, isolado pelos cantos.

— Ah, qual é? Você tem suas bizarrices e eu não falo nada. — Se eu quero que essa conversa acabe rápido, hora de apelar.

— Que bizarrices, my brother? Acho que tu tá é vacilando aí...

— Quer que eu espalhe por aí como você se depila? ♥

K.O! Bernardo faz uma careta seguido de um gesto vulgar e um palavrão.

Por trás dele, percebo alguém me observar, me lembrando a própria Sashi no primeiro dia. Só que dessa vez é um senhor de idade, sentado no banquinho do outro lado da rua.

Em outros dias, eu teria encarado aquilo como uma situação completamente cotidiana e só passado reto. Nada demais. Isso é... se o velho não parecesse que saiu de um filme thriller de detetive ambientado na Inglaterra. Meu sensor de perigo começa a apitar.

— Pois faz do seguinte, Bernadão: por que você não me conta mais desse seu dito “infalível esquema”? Está no seu dormitório, né?

Juro que vejo estrelas brilhando nos olhos dele. Ele vai ficar puto comigo, mas o compenso depois. Só preciso de uma narrativa para dar um sumiço nele por enquanto.

— Sério, caaaaara? Pois espere por mim bem aqui enquanto vou lá pegar no dormitório!

Até me sentiria mal, mas aí me lembro que é o Bernardo e ele vai superar depois de um calzone. Agora que ele já foi, posso me concentrar no nosso amigo detetive ali.

Eu e Sashi vamos até o velho que, pela expressão, já esperava que fôssemos até ele. Seu rosto está meio escondido debaixo de um chapéu marrom e dedos cruzados.

— Tá querendo alguma coisa, senhor? — Vou direto ao ponto.

— Antes que diga, não sou teu inimigo. Quero apenas conversar.

— Quem é você? E por que tava me olhando como um maníaco?

— Responda de uma vez! — completa Sashi, ameaçando-o com a espada.

Ele levanta as mãos em um gesto amigável.

— Meu nome é Charles. Bem, meu nome real não é esse, mas na forma do meu persona, podem me chamar assim... — De repente, o semblante dele muda, parecendo surpreso com algo.

— Que foi?

— Você está... acordado?

— Acordadinho da Silva.

— Consegue me ver, mesmo acordado? Mas... como?

Creio que essa seja a pergunta do milhão.

— Não só te ver como eu também vejo a menina que está prestes a fazer picadinho de você e dessa sua roupa engomadinha, então pode começar a desembuchar.

— Como disse, vim para conversar com você... — Ele acende um charuto escuro, tirado de algum bolso do sobretudo marrom. — Mas não esperava me deparar com um caso tão... intrigante.

Ele me olha com interesse, alisando o bigode grosso e grisalho cobrindo a boca.

— Você também é um persona, então? Isso significa que...

— Exatamente, mocinha. Estamos dentro de um Campo Lúdico — completa Charles, antecipando as palavras da Sashi.

— Campo-o-quê?

— Um Campo Lúdico é um espaço criado pela energia onírica de um agente ou certos aspectos do Mundo dos Sonhos — explica Charles com autoridade. — Esses espaços estão situados na tênue fronteira entre a fantasia e a realidade, criados pela consciência de um agente, que através desse espaço separado, consegue materializar os aspectos oníricos nesse mundo.

Esfrega o diabo do bigode de novo, com uma pausa, e continua: — Mas por algum motivo que ainda desconheço, você é capaz de transitar entre esses mundos.

Seu olhar oscila entre mim e a Sashi, recostada na parede enquanto o encara como um cão de guarda encoleirado, apenas esperando que eu desse a ordem para avançar em cima. Não vou negar que essa sensação de controle sobre a situação é bem satisfatória.

— A imagem dessa garota ao seu lado deve ser sua persona, então seu dom está ativo agora, mesmo acordado. Fascinante!

Penso até em perguntar sobre esse poder para aquele cara. Do jeito que ele fala e se exibe, me leva a crer que ele pode saber de algo.

— Mano... não tô entendendo porra nenhuma, mas você deve ser algum especialista nesse negócio de persona, pesadelos, campo-não-sei-o-quê e os diabo a quatro... então eu queria te fazer algumas perguntas.

Charles solta uma baforada do charuto e um brilho de interesse pisca em seus olhos, seus lábios se curvando em um meio sorriso por baixo do bigode.

— E o que eu ganho em troca? — Essa é a pergunta que eu temia ouvir.

E agora é que não tenho nada a oferecer que ele possa querer. Sequer sei como ele é na vida real, o que complica ainda mais imaginar algo para barganhar. Percebendo isso, o detetive se levanta e vai até mim com o charuto na boca e as duas mãos nos bolsos.

— Senti a presença de um pesadelo bem forte nas redondezas, então a troca vai ser a seguinte. — Ele passa por nós, andando todo presunçoso. — Vocês vão me ajudar a acordar o agente e eu conto tudo que quiserem saber.

 

***** *****

 

Sério, como eu me deixei ser convencido por ele... e pela Sashi?! Eu pensava ter o controle da situação, mas a realidade é que eu nunca tive. E ela é esfregada na nossa cara quando Charles nos induz a fazer o que ele queria, sem que me deixe escolha.

Velho canalha.

O lugar mostrado por ele é o Hospital Geral de Morro Branco. Ao chegarmos, depois de inventar a mentira mais cabeluda para sair do campus, consigo ver algo que claramente não deveria estar lá: um tornado de grossas e gigantescas correntes, girando a uma velocidade altíssima enquanto engole o quinto andar do prédio inteiro!

— Quer que a gente entre naquela coisa? — Aponto lá pra cima.

— Precisamente.

— Brincou.

— Acha que consegue, jovem espadachim? — pergunta ele, dessa vez para Sashi.

Ela olha fixamente para as correntes girando e girando, expelindo uma fumaça preta e densa como se em cada parte delas tivesse uma chaminé industrial. Passado uns segundos, ela responde:

— Acho que consigo — responde, determinada.

— Esse é o espírito.

Subimos para o quinto andar usando o elevador. Em certo momento, as luzes do elevador piscam com uma oscilação de energia. Fico mais apavorado com a ideia de ficar preso dentro do elevador que o fato de estarmos indo pro covil do monstro. Uma tentativa falhar de manter o resto de sanidade.

Estava funcionando que um caralho.

— Que isso?!

— ...?!

Olho para o chão e aparece um lodo gosmento com cor roxa — lembrando açaí, mas sem o odor e com a quentura — se espalhando pelo chão do elevador. Mãos pequenas como as de bebês surgem daquela massa escura pegajosa, transformando-se lentamente em pequenos seres deformados e olhudos.

— Que merda é essa?!

— HYAAAH!

Sashi crava sua espada no musgo roxo e todas aquelas coisas amorfas soltam gritos desafinados em sincronia. O fogo violeta de sua espada se espalha por todo o lamaçal, mas sem queimar a gente.

— Isso é material residual — comenta Charles. — Está se espalhando muito rápido, deformando o ambiente.

— Tá me dizendo que essa coisa é de verdade?! — Não afina a voz, Calebe. Não afina a voz!

O elevador treme e as luzes piscam mais e mais vezes, tanto a do teto quanto as luzes do painel. Uma delas queima. Chegando ao quinto andar, com o abrir das portas, uma cena tão impressionante quanto assustadora me faz ficar pálido como um fantasma.

As correntes se movem mais lentamente lá dentro e ela está repleta de bocas e rostos que murmuram, gritam e cospem aquela mesma fumaça preta que vi do lado de fora do prédio. Isso tudo enquanto o chão do corredor está alagado com aquela massa roxa e pegajosa que Sashi ainda queimava.

— Por todos os caralhos, que merda é isso?!

— Um pesadelo — responde calmamente o detetive. — E um dos grandes.

— E como vamos atravessar isso?!

— Fácil. — Sashi desembainha sua espada, as duas mãos bem firmes no cabo enquanto sorria. — É só cortar.

Ela fala “cortar” como se aquilo fosse uma fatia de presunto ou um pedaço de pão. Como assim, cortar, caralhos?!

Charles toca e aperta meu ombro, me libertando de uma torrente de terror. Seu olhar, mesmo em um cenário daqueles, passa serenidade e confiança.

— Confie no seu persona, garoto.

Suspiro e concordo, tentando me acalmar. Sashi posiciona sua lâmina e respira fundo em concentração. As pontas de seu cabelo soltam fagulhas e brasas violeta ao passo que um turbilhão de chamas começa sua espada.

—『Retalhadora de Sonhos, Estilo do Solstício: Pétalas do Deus do Verão!』— Sashi flexiona os joelhos e mantem a espada colada com a barriga. O fogo violeta se agita.

Os rostos e bocas respondem com risadinhas zombeteiras. Charles torce a língua em uma expressão de desgosto.

E então, Sashi se joga em um ataque frontal contra o vórtice de correntes, a espada chispa no ar. Em contato direto com as labaredas, o barulho estrondoso de ferro e fogo se chocando preenche meus tímpanos e me obriga a tapar os ouvidos rápido. Charles nem se move do lugar.

A lâmina da espada da Sashi vibra violentamente em atrito com as correntes, as chamas se espalhando e criando pequenas explosões no local do impacto. Só então Sashi consegue cortar a primeira camada. Ao se dar conta disso, ela move os braços em várias direções e bem rápido.

VUSH, VUSH, ZASH, VUSH, ZUSH...

Ela segue cortando rápido. Tão rápido que seu braço não passa de um borrão violeta cuspindo labaredas e fagulhas. Mais correntes aparecem para bloquear nosso avanço, mas a velocidade dos ataques dela é superior ao volume do paredão que aquele pesadelo quer impor.

Com o rosto de espanto, Charles diz: — Que poder incrível! Não imaginava que seu persona fosse tão forte a ponto de conseguir abrir caminho em um Campo Lúdico denso como esse!

Sinto que ele transpira muito, faltando ar. Falando daquele jeito, soa bem mais incrível do que me parecia até agora.

— Essas correntes... são tão resistentes quanto diamante! Mesmo eu talvez levasse dias para transpor essas correntes! E ainda assim, ela está conseguindo cortar todas elas com aquela espada como se não fossem nada?!  

Eu tento manter a filosofia de suspensão de julgamento — ao mesmo tempo que tento manter minha sanidade a níveis aceitáveis. Balanço a cabeça e só concordo.

— Pois é... Eu não me lembrava de a Sashi ser tão forte assim. — Na verdade, ela só ganhava dos outros bonecos porque era a protagonista.  

— Quanto mais forte o dom e a energia vital do agente, mais forte é o persona que ele manifesta.

— Você sabe que não adianta me explicar nada agora por que eu não vou entender, né?

Charles ri.

— Ah, queira me perdoar, Calebe.

— Estamos quase lá! Já posso sentir a presença do Elo Onírico! — Sashi grita lá da frente.

Com a ajuda da Sashi, atravessar aquela barreira intransponível se torna algo completamente trivial. Alcançando o centro do turbilhão de correntes, Sashi volta a segurar sua katana com as duas mãos.

Ela mira seu ataque no centro de origem daquele fio negro. O fio que, partido, acordaria aquele cara.

— HYAAA!

Sashi desce a espadada no peito do maluco e ele acorda assombrado em sua maca, com aquela cara pálida de terror.

E dessa vez eu fico no corredor, observando pela janela do ambulatório. Sem invasão de recinto novamente. Com maestria, Sashi gira e embainha sua espada, dissipando o tal campo-alguma-coisa, fazendo o espaço do hospital voltar ao normal.

Charles está ao lado e toca meu ombro novamente, dizendo:

— Vê o senhor que acabou de acordar?

— O que é que tem?

— Ele está aqui no hospital porque está se recuperando de uma tentativa de suicídio.

Arregalo os olhos.

— Quê?

— Ele é pai de duas filhas, porém uma morreu atropelada por uma caminhonete, o que fez entrar em grande depressão. Ele começou a beber por conta do luto, o que fez com que gastasse tudo que ganhava com bebida. Isso gerou desavenças em casa e ele começou a bater na filha mais nova e na própria mulher, gerando um divórcio dele com a esposa. Consequentemente ele perdeu o emprego em seguida quando começou a faltar muito e arrumar confusão com outros empregados, o obrigando a vender o que tinha para sustentar o vício. Credores vieram bater em sua porta e ele começou a viver uma vida esquiva, fugindo dos cobradores e do banco, que levaram seu carro. Já no fundo do poço, este homem tentou tirar sua vida várias vezes, quase tendo sucesso na última tentativa, mas ele está aqui agora. Entendeu, Calebe?

Sinto um aperto no peito, seguido de um tremor. A imagem das correntes, com bocas e rostos, vem na mente. Os rostos eram raivosos ou tristes e todos gritavam e sussurravam palavras de desespero.

“Se mate!” “Não há salvação para você!” “Você não tem nada!” “Você é um lixo de ser humano.” “Você jogou fora tudo que era importante...” “Acabe logo com sua vida!”

Me sinto pesado, triste. Sashi olha para mim sentindo isso também. Ela se reúne com a gente.

 


Às vezes, a realidade pode ser muito pior que um pesadelo.


 

— Pra onde você tá indo? — questiono Charles quando ele dá meia volta.

— O que você acha?

Eu e Sashi nos entreolhamos.

— Vou responder à suas perguntas.

 

 

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Notas:

Olá, pessoal! Agradeço a todos que deram uma chance a essa segunda obra e espero que curtam! Vou ficar postando aos sábados e terças. Penso em fazer uma surpresa para vocês também logo, logo.

Pelas notas vou manter um diálogo saudável com vocês, então ajudem esse autor a realizar seu sonho também colocando um comentário sobre o que estão achando. Seu feedback é essencial para não deixar os pesadelos macularem esse lindo sonho. Conto com vocês! <3

Até o próximo sonho!



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