Volume 1

Capítulo 22: Interlúdio sombrio

 

— Quê?! Entre a vida e a morte?! Como assim?! — Falta ar pra mim e quase caio da cadeira.

E não seria uma queda suave, nem no corpo da Sashi.

— Sim, é isso mesmo que ouviu. Por isso a ausência dele — explica Nádia, dobrando aquelas pernas mais torneadas que pernas de atleta olímpica. Nessa hora eu agradeço por não estar no meu corpo. — Foi uma surpresa para nós também.

— E ele está aonde?

— Hospitalizado. No Albert Einstein.

— Por quê? O que aconteceu?

— Acredito que não saiba, e até compreensível que não saiba, então vou lhe explicar. — Ela cruza os dedos sobre o colo. Algumas pedrinhas se soltam da cadeira dela e se reúnem entre nós, formando dois bonequinhos. — O Francisco já deve ter dito isso para você em algum momento: todos que sonham nesse mundo são agentes oníricos: pessoas comuns, com seus sonhos inconscientes e pesadelos, com pouca ou nenhuma capacidade de mexer com a ordem natural das coisas.

O segundo boneco que ela cria tem algumas pedrinhas orbitando ao redor dele.

— E então vem os fictors — continua ela, deixando apenas o segundo bonequinho. — Somos nós; pessoas, dotadas de dons, que causam impactos significativos nos dois mundos.

— Tá, mas por que tá explicando isso?

— Você mesmo já deve ter sentido algumas das consequências de usar esse poder, não é? Sono, irritação, fadiga mental, dores musculares, tonturas, apagões e por aí vai.

Acho que meu silêncio serve como resposta o suficiente. O episódio em que a Sashi ficou translúcida até sumir e todos os outros casos similares que vi, inclusive o de Charles, vem na mente nesse momento.

— Foi o que pensei. Então, pressuponho que saiba que nosso poder exige um preço. Um preço alto demais. — Os bonecos se desmancham com um levantar de dedo dela. — Esse poder deixa mazelas em nossos corpos físicos, os quais temos que carregar conosco a vida inteira. É uma responsabilidade e sacrifício muito grandes.

Cada palavra dela sai carregada. Mesmo em um espaço aberto como aqueles, porque eu pareço tão sufocado?

— Imagine tudo isso imposto a um senhor de idade como Francisco. Foi mais do que ele pôde suportar.

— É culpa minha — digo, me esforçando para soltar a voz.

— Como?

— Você ouviu. Eu... eu não consegui lidar com o inimigo sozinho e o Charles... o Francisco, me ajudou e então...

— Não importa de quem foi ou não foi a culpa — diz Nádia, em certo tom condescendente. — Quem trabalha para essa organização como um fictor assume todos esses riscos, então ele estava ciente. O que importa é a causa que gerou todos esses efeitos, e sendo esse também o motivo principal que o trouxe até mim hoje.

Ela é bem “direto ao ponto”, tanto que passa a impressão de que quer se livrar de mim logo. Seu rosto também não mostra nada; sem raiva, tristeza, alegria, ansiedade... nada além de uma fria objetividade.

— Hã? Causa?

— Há um perigo rondando a cidade Morro Branco, Calebe. Algo que vai além de pesadelos e personas. Algo muito, muito perigoso.

Eu não estou gostando nada do rumo que aquela está tomando. Algo estremece dentro de mim, fazendo os poucos pelos no corpo perfeito da Sashi arrepiarem.

— Do que está falando exatamente?

— Não percebeu os sinais? — Os olhos de Nádia se estreitam. — Vítimas morrendo enquanto dormem, sem marcas de agressão, ocorrendo geralmente em período noturno ou pelo horário do meio-dia.

Uma pedra flutua entre nós com formato de televisão, um jeito bem sugestivo de dizer que tudo estava passando na tv.

— As notícias correm, Calebe. Não parou para prestar atenção?

— Pera, pera, pera! Tá me dizendo que quem matou todas aquelas pessoas... foi um persona?

— Se fosse, já teríamos localizado e dado um jeito nele. — Nadia faz uma pausa, remodelando a tv com giros de indicador como se fosse uma varinha de condão. — Como disse antes, estamos aqui lidando com a possibilidade de ser algo pior: um Oru.

— Oru? O que é isso? — Nome feio da porra.

A forma que as pedras desenham não me lembra nenhum humano ou animal conhecido. Ela fecha os olhos e metaliza o que queria dizer. Formas feitas de pedra e sombras se projetam por todos os lados da sala para contar uma história.

A história de um monstro — representado por um aglomerado disforme de pedrinhas —, que suga/absorve/come pesadelos e personas — representados pelas pedrinhas menores sendo atraídas para o conjunto. Assustador.

— Simplesmente a razão pela qual a Mandala foi criada.

Quê? O motivo pelo qual...? Nádia solta um risinho cínico ao ver minha reação.

— Está curioso, garoto? — Quando eu não respondo, ela decide continuar: — Só o que posso lhe dizer é que houve um acidente com um fictor há muito tempo atrás e que desencadeou o aparecimento de uma dessas anomalias. Desde então, a Mandala surge com o propósito de manter o equilíbrio entre os mundos e garantir que nenhum outro Oru jamais surja novamente.

Eu suspiro com toda aquela enxurrada de informação e então resolvo perguntar, por mais que pudesse me arrepender da resposta depois.

— E é aí que eu devo entrar, não é? Acertei?

Nádia afasta uma de suas mechas verdes boreais do rosto. É possível ver seu olhar faiscando de interesse com a pergunta enquanto seus lábios perfeitamente finos levantam em um meio sorriso.

— Acertou — confirma ela. — Francisco com certeza viu algo em você, muito além do que ele revelou em seus relatórios. Algo... especial. Quem sabe você possa nos ajudar a descobrir quem ou o que está causando tanto estardalhaço em Morro Branco.

— Querem que eu trabalhe para vocês...

— Considere isso um pedido formal. — De repente, um bando de pedras voadoras gira entre si até grudarem umas nas outras para formar uma mesa de pedra flutuante entre nós. Agora entendo o porquê daquele lugar ter 0 mobília.

Um pote de tinta brota da mesa com um papel e uma caneta, pronta para assinar na linha pontilhada.

— Claro que não irei força-lo, mas se faça a seguinte pergunta... — Ela se interrompe de novo, seu olhar ficando mais sombrio de repente. — “Será que eu devo negligenciar tudo o que está acontecendo”? “Será melhor para todos que eu continue fazendo de conta que tudo está normal enquanto pessoas morrem”?

— Está querendo me culpar também pelas mortes em Morro Branco? Não são vocês, a tal “Organização super mega ultra secreta” que cuida do equilíbrio entre os mundos e pipipi popopó? — Me defendo enquanto desço um soco involuntário no braço da cadeira.

— Não estou te culpando, mas pense comigo: ficamos sabendo do seu caso há dois meses atrás, justamente quando a primeira morte em Morro Branco foi noticiada e que, na época, todos pensavam que se tratava de um caso de morte natural.

A lembrança do meu primeiro dia no campus vem com a narrativa dela; minha mãe assistindo televisão enquanto preparava o café, colocando o colar dela no meu pescoço, desejando uma boa faculdade. Ah, que saudade daqueles dias normais!

Dias que nunca mais vão voltar.

— Desde então, sempre que um incidente envolvendo você ocorria, mais e mais casos vinham à tona até que ganharam a repercussão que tem hoje.

— Então, seja lá o que estiver matando a rodo na cidade, tem a ver comigo? É isso que quer dizer?

— É uma possibilidade — admite Nádia, os olhos estreitos e analíticos atentos a cada movimento meu. É incomodante aquilo. — Francisco não via, e tenho certeza de que ainda não vê, você como o culpado pelo que está acontecendo, mas sim como a solução. Talvez possa usar seu dom raro e misterioso para nos ajudar a encontrar e punir o responsável e trazer paz para a sua cidade. Quer proteger sua família e seus amigos, não é?

Sério isso? Chantagem emocional uma hora dessas? Uma coisa é certa. Ela sabe como convencer alguém melhor que o velho.

— Bem, não é que eu não queira ajudar, mas não sei como eu poderia ser de grande ajuda. — Vejo a reação um tanto negativa dela e reorganizo a frase. — Quer dizer... vocês são fictors experientes e não estão tendo grande progresso em achar essa coisa. Como eu, que só fui ganhar esse dom um dia desses, poderia fazer algo?

Nádia cruza os dedos sobre os peitos generosos e curva o corpo, com certo ar de impaciência por ter que explicar tudo para um leigo.

— A questão é o seguinte: se sabemos sobre seu dom raro, essa coisa também sabe. E está criando esse rastro de mortes não só para ficar mais forte, mas também para nos distrair — deduz ela. Nádia aponta o dedo pra mim. — Logo, chegamos à conclusão de que o alvo dele é você.

Meu coração para por um momento. E eu não tô falando nem do físico!

— E-eu?! — POR QUE SEMPRE EU, PUTA QUE PARIU?!

— Sim. Você e seu persona autoconsciente, Sashi, são o objetivo final dele. Arriscamos dizer que ele até já saiba onde você está e espera apenas a hora certa para ataca-lo. Por isso, estará sob observação constante a partir de hoje, mesmo que não aceite meu pedido.

De repente, a imagem da luta contra Yatsufusa veio na cabeça. Uma luta difícil, a mais difícil que já tive desde que ganhei esses poderes, e que quase fez a gente desviver várias vezes.

Um pensamento tranquilizador preenche meu coração pesado, o que me faz crer que já tenhamos enfrentado o responsável por toda essa confusão e o detemos. Claro, às custas do sacrifício do velho, mas o detemos. Isso me traz um sorriso de alívio involuntário no rosto.

— O que foi? — Nádia pergunta, notando o “quase” sorriso.

— Bem, vocês sabem que tem alguém ou algo atacando pessoas e pesadelos para ficar mais forte, mas não sabem o que exatamente essa coisa é, né? Digo em relação à aparência.

— Não. Ninguém nunca viu um Oru. Pelo menos, ninguém na organização atual — confirma Nádia.

— Então podemos dizer que ele possa ter a forma de qualquer coisa, até mesmo a de um persona?

— É possível. Não posso lhe revelar mais informações sobre eles por confidencialidade. O que posso lhe dizer que são monstros muito poderosos e aterrorizantes.

Penso em falar para ela sobre a Emma e Yatsufusa, mas apenas abro a boca, deixando o ar sair. Por mais que eu quisesse me livrar logo deles e ficar em paz, nada me garante que eu não apenas estaria jogando a Emma como laranja nessa história toda.

Ela podia ou não ser o tal do Oru mencionado por Nádia, mas eu não tenho como saber disso agora. E não há como saber se posso ou não confiar naquela gente estranha e só estaria colocando a vida de alguém em perigo.

— Ia dizer alguma coisa, Calebe? — Nádia levanta uma sobrancelha. Seu olhar penetrante me causa um desconforto enorme. — Se tiver algo para me dizer, diga agora.

Ela nota minha relutância. Vou tentar contornar isso.

— Ah, nada, nada. Só estava tentando me lembrar de algo que tivesse a descrição que você me deu, mas não vem nada na mente. Sinto muito.

Seus olhos espertos e intensos se fixam em mim, me analisando, procurando rastros de mentira, de conversa furada.

— Certo. E então?

— Minha resposta é a mesma das outras mil vezes que o velho perguntou: não.

— Muito bem. Mas espero que tenha entendido a gravidade da situação e que esteja disposto a colaborar com a Mandala. Se por um acaso, em algum momento, atrapalhar nosso trabalho ou se mostrar uma ameaça para nós...

A aura dela muda de repente enquanto sua voz parece se tornar mais ameaçadora. Um peso recai sobre meus ombros com aquele mesmo sentimento de hostilidade que senti em Yatsufusa naquela vez. É a... energia dela?

— Não hesitaremos em removê-lo do caminho. Fui clara?

Engulo em seco, me esforçando para não parecer intimidado. Até porque estou no corpo da Sashi ainda e isso, por mais que não me livre da dor, me dá uma certa sensação de segurança.

— Foi. Se eu souber de algo, aviso.

— Então... — Ela se levanta de seu assento de pedra que lembra um trono e bate palma duas vezes. — Terminamos aqui, Calebe. Passar bem.

A minha cadeira se desfaz embaixo de mim e eu despenco do alto daquela sala.

— Aaaaaaaaaaaaaaaaarrghgh...

Enquanto eu caio e caio e caio, ela só acena lá de cima com um sorriso. Ela, sua sala, os pilares, o chão, o mundo... tudo se distancia tão rápido que só tenho tempo de soltar um suspiro.

— Aaaaaaaaaaa...?

Ao piscar, estou de volta ao meu quarto em um passe de mágica. Um teletransporte. Meu corpo ainda está apagado por causa do remédio, mas graças a Deus, tudo parece estar no mesmo lugar. Fico olhando para eu mesmo dormir, aquela sensação estranha dentro de mim; aquela ideia de dualidade, ainda sem escutar a voz da Sashi em nenhum lugar da minha mente.

Uma ansiedade mortal inunda meu peito, agora que cai a ficha de tudo que foi dito na reunião. A cada dia que passa, eu me distancio mais e mais da minha vida normal e mais coisas estão acontecendo.

O velho tá no hospital agora, tem gente morrendo por minha causa e tem algo muito mais forte e perigoso que o Yatsufusa à solta por aí. A única pergunta que me faço nesse momento, em que estou praticamente sozinho, é: já posso me desesperar agora ou depois?

Enquanto me sento na cama, de costas para a parede e abraçando as próprias pernas enquanto vejo a hora passar, me afogando em minha própria ansiedade, só queria que alguém surgisse para me indicar uma direção. Pra me livrar desse pesadelo em que se tornou minha vida.

Agora seria uma boa hora para aparecer...velho.

 

 

*****   *****

 

 

Certo tempo depois, as aulas voltaram. Todo o caso sobre as mortes em Morro Branco ainda está sem uma definição e a polícia não tem um suspeito, nem pista certa. É como caçar um fantasma... ou um sonho. No entanto, as mortes pararam.

Com a poeira baixando, a reitoria do campus decidiu retomar as aulas, mas ainda adotando precauções e reforçando a segurança até que tivessem certeza de que a onda de mortes na cidade tinha parado de vez. Alguns alunos foram transferidos, outros simplesmente desistiram do curso... já os que vivem na faculdade, vivem com medo.

Posso dizer que meu medo é dobrado pelo fato de saber o que sei. Nádia me garantiu que eu estaria sendo monitorado, então estou, de certa forma, garantido.

Quando Sashi acordou, contei para ela o que aconteceu. Ela não sabia dizer o que eram esses Orus, mas também disse que iria ficar bem mais atenta a partir daquele dia. Lamentou o estado do velho, tanto quanto eu, e entendeu meus motivos para não entregar Emma e seu persona.

Não se preocupe, Calebe. Eu mesma vou te proteger, nem que isso custe minha vida, ela me disse na ocasião.

— Sashi... — Fico remoendo enquanto ando em direção ao pavilhão onde está a biblioteca do campus.

Ela está andando a uma certa distância de mim para cobrir uma área maior, então posso me dar ao luxo de pensar um pouco mais alto. Essa frase dela... essa frase ainda me remete àquele sonho... ou seria melhor dizer, visão?

Sim, visão. Porque eu não sonhei e, não sonhando, qual seria a explicação para eu estar sempre vendo a mesma coisa todas as noites? Uma visão corriqueira, pelo que pesquisei — e já vi em filmes — geralmente é sinônimo de premonição. E se isso for verdade, eu...

— Calebe? — Sashi aparece ao meu lado. — Está tudo bem?

— Aah, nada! Eu só... tô pensando.

— Seu coração está carregado, como uma nuvem escura de chuva — Sashi está bem mais sensível aos meus sentimentos e pensamentos ultimamente. Deve ser o resultado de minhas sessões de meditação.

Isso sim foi algo bem útil que o velho Charles me deixou; meu sono melhorou bastante durante as últimas semanas que fiquei enclausurado no dormitório, além é claro, de que minha sincronia com a Sashi parece estar melhor do que antes.

Tanto que agora é quase impossível esconder algo dela.

— É que... eu andei pensando sobre uma coisa ultimamente.

— É sobre os seus pesadelos de novo?

Viu? É quase uma adivinha.

Visões. E... é algo que vem me incomodando já faz um bom tempo. Tipo... desde o nosso papo com a chefia da Mandala.

— E o que seria? — Sashi pergunta, curiosa.

— E se a visão que eu estiver tendo... a da mulher alta e costurada das minhas visões, for na verdade o tal do Oru? Se eu estiver tendo uma premonição? Isso significa que...

— Calebe...

Sashi segura meu ombro e me olha intensamente, me deixando até sem graça.

— Não se preocupe. Seja o que for, vamos encarar e vamos vencer! — diz ela, tentando me animar com aquelas frases de coach como ela sempre faz. Nem parece que fomos surrados há pouco tempo. — Eu prometi a você que ia protege-lo, não foi? Confie em mim. Confie em meu poder... em seu poder. Vamos fazer o possível para mudar esse futuro, se é que isso é uma premonição mesmo.

— Essa não é a questão, Sashi — suspiro, continuando a andar. — Mesmo tendo esse poder incrível... mesmo tendo você, eu me sinto muito impotente. Como a Nádia esfregou na minha cara, desde que eu ganhei esse poder, tanta gente já morreu. O Bernardo quase morreu, o velho está agora lutando pela vida dele em um hospital. Quase perdi você duas vezes...

— Mas não perdeu! — protesta ela, aumentando a voz.

— Mas e se tivesse?! — Aumento a voz também, sem querer. Alguns que passavam em volta olham torto para mim. — Eu... não sei nada sobre esse mundo, tá legal?! Eu caí de paraquedas, sabe? E depois de tudo que já aconteceu, não estou mais perto de descobrir porra nenhuma!

— Calebe...

— E eu não sei como lidar com tudo isso. Não sei! Não sei! Sou só a porra de um cara normal. Ou pelo menos, eu era né... sei lá. Nem sei o que eu sou mais! — Minha cabeça lateja, os olhos ardem, me forçando a cobri-los. — E agora, tudo está ficando cada vez pior! Vencemos da última vez por causa do Charles, mas e da próxima? E se encontramos esse Oru? O que vamos fazer?!

— Eu...

— Não! Não diga que vai se sacrificar por mim! — interrompo. — Eu não... eu não suportaria.

— ...

— Antes... eu não sabia o que pensar sobre você. — Eu digo as palavras bem devagar para evitar tropeços ou gaguejos. —Várias noites eu pensei em formas de fazer você sumir. De trazer você de volta pra minha cabeça e só continuar minha vida normal, mas você continuava lá. Sempre! Eu achava um saco por ter que ser vigiado o tempo todo e não me sentia mais à vontade, então eu queria que você só sumisse.

— Calebe?! — Os olhos dela ficam chorosos.

— Só com o passar do tempo, isso mudou — completo, esfregando a testa. A voz treme e o roteiro acaba, dando lugar às palavras do coração. — Eu ainda quero que você suma, mas não porque me sinto desconfortável com você por perto ou porque eu te odeie, mas...

— Mas...?

— Porque eu não quero que sofra. — A expressão dela me confirma que ela não esperava por isso. — Eu quero evitar que você se machuque, que você carregue sozinha o fardo. Não quero que suma de novo. Nunca mais! Queria te mandar de volta pra minha cabeça pra não ter mais que passar por nada disso. E que tudo voltasse a ser como antes.

Olhando de relance, eu percebo que Sashi está corada, mas seus olhos brilhantes e chorosos continuam. Acho que posso ter feito merda. Como sempre, aliás.

Cubro os olhos com a mão para não ter que ver ela chateada. Eu falei a verdade e não me arrependo. É o que eu sinto. Talvez eu querer o bem dela seja um reflexo do meu egoísmo, um vislumbre do meu desejo de me autopreservar. Do meu medo de lutar, de enfrentar a realidade.

Como poderia ser interpretado de outra forma? Afinal, Sashi é uma manifestação da minha consciência, nada mais, nada menos. E agora estou aqui, com o rosto coberto, parecendo um avestruz enfiando a cabeça na própria terra para esconder a vergonha, a impotência, o medo...

Só que sinto a Sashi se sentar ao meu lado, bem próximo de mim e então seus braços quentes e esguios me envolvem. Seu quimono roça no meu braço, sinto sua respiração e seu toque tão vivos quanto os de uma pessoa real. Sinto seu coração bater, sua preocupação, seu carinho... isso é real?

...ou um sonho?

— Calebe, seu idiota. — Sua voz é tão macia e carinhosa. Ao ouvi-la, a tempestade dentro de mim se acalma. — Quantas vezes eu vou ter que repetir pra você entender? Vamos lutar juntos, vamos ficar mais fortes juntos, vamos superar qualquer coisa juntos! Não importa o quão forte seja o inimigo, eu vou lutar por você até o dia que eu não puder respirar, seu bobinho.

Repentinamente, algo estranho me acontece por causa daquela frase; cada palavra daquelas faz minha mente embranquecer e uma pontada de dor, como se katana da Sashi penetrasse meu crânio de uma ponta a outra, me devasta a ponto de me fazer tremer com espasmos.

E no meio desse branco, começo a ter alucinações. É questão de alguns segundos. Tudo muito rápido, muito confuso, mas consegui ver uma cena em meio à um turbilhão de dor e náusea. Metade de um rosto, os lábios carnudos se movendo de forma graciosa enquanto falam comigo. Um cenário arrasado, fogo, espadas...

Ela dizendo as mesmas palavras...

Eu vou lutar por você até o dia que eu não puder respirar.

— Calebe? — Sashi me olha com preocupação, substituindo o rosto de silhueta e traços obscurecidos pelo seu perfeito rosto. — O que foi? Tá tudo bem?

E assim eu volto para o mundo, ambos os rostos se encaixando perfeitamente, como se fosse a mesma cena, a mesma coisa acontecendo, mas... em tempos diferentes. Em outro momento, talvez? Outra realidade, outras pessoas.

O que acaba de acontecer? Será que foi outra visão? Ou quem sabe...?

— Ei, ei! É sério? Quem foi?

— Foi atrás do Bloco F! Vamo lá, vamo lá!

— Nos disseram que já estava tudo bem! Porra!

— Meu Deus!

Não tenho tempo para raciocinar, ou para voltar a mim. As pessoas começam a sussurrar e a correr para algum lugar, algumas assustadas, outras com cara de espanto. Em questão de alguns momentos — exatamente segundos —, o lugar que antes estava calmo, agora se torna uma bagunça, entre correrias e murmúrios.

— O que está acontecendo? Sashi, está sentindo alguma coisa?

Ela se levanta rápido, a cabeça virada para algum lugar enquanto fecha os olhos. Com a mão na bainha, ela procura algo... fora desse mundo, que possa ter causado aquela comoção.

— Não. Não sinto nada — diz ela.

Sem quaisquer pistas de pesadelos ou personas, decidimos seguir a manada. Todos os alunos se aglomeram atrás do Bloco F, rodeando algo. Vozes baixas e conspiratórias se aglutinam, olhares desconfiados se emendam. Faço um pouco de força para atravessar a multidão até que encontro, no olho do furacão, o Bernardo, seu rosto tão pálido quanto um fantasma.

Ele está agachado na frente de um corpo. O corpo de uma menina. Meu coração descompassa.

— Be-Bernardo?! O que...?

— Calebe!! A... A...!!

Nessa hora, sinto que levo um soco bem na boca do estômago, me roubando o ar. Meus ossos parecem que se desintegraram e não tenho mais força para nada, tanto que se torna um sacrifício para mim me sustentar em pé. Bernardo está agachado diante de uma menina que acaba de ser morta dentro do campus.

E aquele corpo sem vida, estatelado no chão, é da Micaela.



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