Volume 1
Capítulo 1: Realidade ou Sonho?
Sono... O estágio ordinário da consciência humana, onde há a reposição de energias por parte dos organismos vivos, caracterizado principalmente pela suspensão temporária das capacidades perceptivo-cognitivas e motoras. Em uma linguagem mais comum, a diminuição das atividades cerebrais descreveria o que é sono, permitindo que os seres vivos “descansem” do seu estado de vigília e reponham algumas ligações químicas, como as das sinapses.
Claro... Isso é o que deveria acontecer. Descanso. Mas não pra mim.
Sinceramente, não tem muita diferença se estou dormindo ou acordado, pois a sensação é a mesma; tudo começa comigo correndo em uma floresta escura, observando blocos negros, que simulam prédios distantes, se agigantarem ao meu redor. Não sei ao certo para onde corro, mas sei muito bem o que acontece se eu parar. Claro... sonho com isso todas as malditas noites!
Ela me pega!
Forço 120% de cada fibra muscular das minhas pernas, os pulmões ardendo como brasas vivas, o coração galopando como um cavalo desgovernado em uma campina. Mal consigo respirar direito e me esforço para manter o que me resta de oxigênio o suficiente para não desmaiar.
Droga... por que essa maldita não para?!
Só que o pior acontece em uma perseguição — e imagino que vocês já saibam do que se trata: uma pedra surge do nada, como um broto de bambu, e eu capoto umas duas vezes até parar no chão, esbagaçado. Fodido. Acabado.
Uma sombra se projeta sobre mim e me cobre do banho da lua de sangue que, sempre se faz presente nesse pesadelo. Agora tento rastejar como um verme pelo chão em um último recurso desesperado, mas para mim mesmo, sei que vai ser em vão. Não adianta de nada.
Eu sei como esse sonho termina... exatamente como termina!
|***** *****|
BLAAM!
— Aaaaaaaaahhhh!! Sangue de Jesus tem poder!!
Tudo normal; sem cenários de filme de terror, nem monstros psicopatas ou minhas calças molhadas de medo. Só eu e meu quarto agora.
Estou tão ofegante que parece que vou morrer. E pode acreditar... tudo isso é só mais uma manhã diária na minha vida atual; quando se tem distúrbios de sono, fora tratamentos e remédios, o que resta é se acostumar aos episódios. De qualquer forma, não há um significado maior para isso tudo além de que sou um cara com problemas mentais graves.
Tudo fruto de um acidente infeliz que me roubou as memórias e me deixou com isso em troca: um grave transtorno de pesadelos.
— Calebe! O café já tá pronto, meu fi! — Ouço minha mãe falar do outro lado da porta.
— Tá, mãe. Já vou!
— Teve os pesadelos de novo?
A novidade vai ser o dia em que não tiver.
Acordo um caco, igual a ter corrido a maratona interminável do meu pesadelo, e aí vem a rotina habitual: Banheiro, closet e cozinha. É tão automático que as vezes nem lembro de ter feito essa rota.
Na sala, o cheiro delicioso e quente do café da minha mãe — que só sei que é minha mãe porque ela me disse isso — começa a despertar meus sentidos que até o chuveiro gelado não conseguia. A televisão pequena sobre o batente da cozinha já está ligada com as notícias do jornal da manhã.
— A polícia investiga um caso de um jovem que morreu em casa, durante a noite. Ao que tudo indica, teria sido parada cardíaca durante o sono, mas a real causa da morte ainda é desconhecida.
Só desgraça para começar o dia. Ela parece não ter coisa melhor pra assistir, afinal.
Sento, pego o pão assado e olho a hora. Se eu fosse beber o café agora, já teria cuspido na cara da velha.
— Puta que pariu! — Pulo da cadeira, como se tivesse um trampolim, já com pão torrado na boca. — Vou indo, mãe! Vou me atrasar pro primeiro dia no campus!
— Ei, ei, ei! Não tá esquecendo de nada, não?
— O que? Desodorante? Perfume? O cabelo tá horrível? Eu tô parecendo um macaco adestrado de roupa? Esqueci algum livro? Fala véa, fala!
— Meu beijinho de “tchau”. — Ela aponta a bochecha solitária entre as mechas bagunçadas do cabelo meio grisalho.
Fazer esse suspense, para um cara atrasado no primeiro dia, em algo tão simples, devia ser considerado algum tipo de violência psicológica.
Smack! ♥
— E isso... — Ela laça meu pescoço com seu colar especial de granito. — Para dar sorte. ♪
— Hã? Tá bom, né. Valeu.
— Tenha um bom dia, meu filhote! Depois traga uma amiguinha aqui pra eu conhecer, está bem? ♥ — 18 anos depois e minha mãe ainda deposita esperanças demais em mim.
Saio às pressas de casa. De canto de olho, percebo as plantas no quintal da frente se mexerem sozinhas, como se andassem e parassem — tipo o barril que anda nos desenhos. Estou tão atrasado e nervoso, fora a noite mal dormida, que estou até vendo coisas.
Chego por volta das 10 e a entrada do campus está lotada. São mais pessoas juntas do que minha capacidade de socialização me permite digerir em um mesmo ambiente.
— Qual é, mano, relaxa! Tá comigo, tá com Deus!
A propósito, o cara que tá quase quebrando meu ombro de tanto cutucão enquanto tagarela é o Bernardo. Crescemos juntos na mesma vizinhança e fizemos praticamente tudo juntos; brincar, estudar, aprontar. Nós somos tampa e panela. Me pergunto se isso seria uma benção ou uma maldição.
E agora, estamos juntos aqui: a Universidade Morro Branco. Desde cedo, ele está me enchendo o saco com suas teorias idiotas.
— Tá, mas e daí? — Minha voz é o retrato glorioso do tédio.
— Caaaaaaaara... E daí? E DAÍ?! E daí que eu descobri esse “padrão” que a Universidade Morro Branco usa para fazer as provas delas, cara! Depois de muita pesquisa, eu consegui decifrar essa sequência lógica que vai nos permitir passar em qualquer prova com louvores! Está bem aqui!!
Ele tira da mochila uma pasta com vários papéis rabiscados e cheio d esquemas bucólicos desenhados. Parece até a folha do caderno de alguma criança da 5° série. Finjo interesse e digo:
— Bernardo, acho que cê tá fazendo algo ilegal.
— Ilegal my eggs, cara! Confia em mim! Esse é o guia para o sucesso, meu chapa! Um futuro de riqueza e mulheres no cio nos espera!
— Acho que você não saberia o que fazer com tanto, principalmente com as mulheres.
— E eu acho que você deveria dar uma sugada no cu do cachorro! — Golpe baixo desferido com sucesso! ♫
Vai e vem conversa, algo me chama atenção no meio daquele cenário sacal. Uma menina, isolada do resto da multidão, parada sob a sombra de uma arvore. Poderia ser algo perfeitamente ignorável se não fosse o fato de ser a menina mais linda que já vi.
Por quê tenho a vaga impressão de que ela está... me encarando? Seus olhos são enigmáticos, mas demonstram certo interesse. Pela aparência, deve ser da minha idade; seu corpo é... ahem, bem desenvolvido. Seu cabelo é tão longo que as madeixas negras voam com qualquer brisa que sopre. Suas roupas discretas casam perfeitamente com seu ar misterioso.
— Ei, cara. Tá vendo aquela menina ali?
— Hã? Que menina, cara? Tem tanta menina aqui...
— Mano, limpa a remela desse olho aí, cara. Tô falando daquela meni... — Aponto na direção dela, mas a criatura simplesmente evapora! Some de vista. — Ué...
Bernardo aperta os olhos, tentando enxergar algo no lugar vazio debaixo da arvore.
— Tô vendo é nada, cara. Acho que o sol tá te fazendo mal. — As pessoas também são um bom palpite. Quem sabe um pouco dos dois.
Só sei que tinha uma garota ali e tenho consciente de que estou são. Pelo menos por enquanto, né?
|***** *****|
Depois da confirmação da minha mente perturbada estar me pregando peças — mais que o normal hoje —, mal vejo a hora de sair daquele grupo de excursão pelo campus e me enfiar no meu dormitório.
Estamos andando faz bons minutos e meu grupo enfim se separou do de Bernardo, para o alívio dos tímpanos. Nesse momento, só quero ficar em um lugar que ninguém saiba que sou um “quase louco”. Um figurante anônimo no meio da multidão é tudo o que quero ser.
Mas como alegria de pobre dura pouco, coisas bizarras começam a acontecer: o mundo para de repente, ficando mais cinza, mais sombrio; nem parece as mesmas ruas em que estava andando até agora. O que aconteceu?!
— Droga... tô realmente ficando maluco!
As pessoas estão em câmera lenta, quase parando. Coisas pequenas como folhas e insetos param geral. Parte do cenário se deforma do jeito mais noiado possível. Somente pessoas, plantas e animais deformados — incluindo eu — podem se movimentar livremente naquele lugar. O calor do ambiente some.
Não só isso, mas o céu também é outro; escuro, mas não o escuro típico do céu noturno. É um escuro acinzentado, variando vez ou outra em alguns tons violeta, vermelho, verde e um azul anil bem fraquinho, tipo um degrade psicodélico.
Estou a poucos metros de sufocar, meu coração já querendo dar um mortal pela minha boca com toda essa mudança brusca e repentina. Agora não é como das outras vezes; muito além de uma simples visão ou impressão... eu simplesmente endoidei de vez!
— Huum? Você consegue me ver, garoto?
Uma voz... não, várias vozes, uma multidão de vozes, falam comigo. Uma sombra circular me sobrepõe e quando me viro, tenho a visão estarrecedora de uma coisa medonha flutuando sobre mim. É uma bola, feita de várias cabeças brancas grudadas em todas as direções, seus rostos lembrando as máscaras da tragédia e da comédia; rindo e chorando, caçoando e lamentando.
— PUTA QUE PARIU! Saí de perto de mim, desgraça!! Saí, sai! Saaaai!!
O monstro bizarro, tão bizarro que eu não conseguiria descrever em palavras, ri com várias vozes ecoando no ambiente paralisado.
— Que interessante! Está acordado, mas ainda assim pode nos ver? Você deve ser especial!
Está acontecendo de novo... estou metido em mais um pesadelo insano! Mas como? Eu tenho certeza de que estive e estou acordado agora, então por que estou vendo e sentindo tudo isso? Como se todo esse sonho fosse... real?
Só me resta fugir. Quase tendo um colapso pulmonar, me viro para correr, a força das pernas faltando, os joelhos trincando, os fêmures estalando. Diferente do pesadelo recorrente que tenho ao dormir, agora tem o sedentarismo para me atrasar.
— Onde pensa que vai, menino? Vamos brincar, você e eu. Hihihihaha!
— Vai brincar com o satanás, porra!!
Corro até mal conseguir respirar e tropeço uma pedra. Outra pedra! Sempre o caralho de uma pedra! E de novo, como um déjà-vu, rolo no chão umas duas vezes e fico todo quebrado.
— Argh! Merda! Não, não!
Tudo igual àquele pesadelo! Tudo igual! Isso está mesmo acontecendo comigo na vida real? Agora vem a parte que eu rastejo inutilmente, como estou fazendo agora, e o monstro me pega. É assim que a história acaba. Eu sei como esse sonho termina.
— Obrigado pela comida! Nhaam! ♪
— Porra! Não... não pode acabar assim.
Alguém... me ajuda!
Aperto bem forte os olhos, rezando para morrer de uma vez, sem dor. Mas em vez disso, um silvo metálico preenche meus ouvidos, seguido de um grito de agonia coletivo, como se o monstro acabasse de ser ferido. Vou reunindo coragem para abrir os olhos devagar e percebo que alguém está na minha frente.
A anatomia das pernas, o tronco, os cabelos... tudo era feminino. Um brilho sobrenatural se espalha por todo o lugar e vinha de focos de fogo violeta espalhados pelo chão e... nas mechas do cabelo dela?
Quem é ela?, é tudo que consigo pensar.
— GWAAAH! Malditaaa!!
— Fique atrás de mim. Deixa que eu cuido do resto — diz ela, sem se virar.
Não respondo. Estou sem voz ou reação e nem mesmo consigo mexer a cabeça. Só consigo ficar de boca aberta.
— Essa espada... você... você é a persona desse moleque?!
— E isso importa? — A menina brande uma katana em direção ao monstro, as chamas a dançar pela extensão da lâmina como se estivessem vivas. — O que importa é que você já era, aberração!
— Morraaaa!! HIHIHIAAHAHAHAHA!
— Ei, cuidado!! — consigo gritar.
O monstro e se choca contra a samurai e levanta uma nuvem de areia ao soar de um estrondo quebradiço e metálico. Rolo alguns metros para trás com a pressão do impacto, meu rosto sendo deformado por pedrinhas e bolos de terra.
Para o meu espanto, a menina samurai consegue segurar aquela coisa enorme com facilidade, só para chutá-la com mais facilidade ainda, lembrando um menino chutando uma bola. O monstro de várias cabeças quica duas vezes no chão até colidir com um punhado de arvores.
— É apenas um pesadelo medíocre — sibila a guerreira, balançando a espada.
— Meu... Deus...
— Você está bem, Calebe? — pergunta ela com um ar preocupado.
Ela... sabe o meu nome? Àquela altura, meus neurônios já queimaram e meu cérebro já parou de procurar sentido em tudo que está acontecendo.
— E-eu... vou ficar. Olha, cuidado!
Do meio de uma onda de poeira, a criatura medonha que a menina chamou de “pesadelo mediocre” se impulsiona no ar, todos os rostos adquirindo um ar mais sombrio e furioso. A samurai se vira ligeiro e fica em guarda.
— Morra! MORRA! MORRA! MORRA! MORRA! MORRAAAAAAA!
Algumas das cabeças se desgrudam do conjunto e se lançam contra ela, disparadas como balas de canhão, todas incendiadas com fogo azul. E como se eu já não tivesse impressionado o bastante, ela consegue fazer algo totalmente absurdo.
Apenas com o balançar da katana, as cabeças flamejantes são defletidas facilmente em direções aleatórias. As bombas defletidas explodem logo depois.
— Droga! — O máximo que posso fazer é proteger o rosto com os braços e rolar de um lado pro outro.
Essa coisa não dá trégua. Continua a disparar aquela metralhadora de cabeças incandescentes, sem ter hora pra acabar. A menina samurai embainha a espada e se joga na da bola de cabeças flutuante, bloqueando e defletindo mais e mais rajadas de cabeças pelo caminho.
Ela está preparando algo. Um contra-ataque!
— Como nossos ataques não surtem efeito?! Impossível! — rosna a besta em múltiplas vozes.
Em pouco tempo, ela já fica cara-a-cara com a criatura, agora repleta de rostos embasbacados e amedrontados. Seu braço está pronto para sacar a espada.
—『Retalhadora de Sonhos, Estilo do Equinócio: Impulso da Lança Outonal!』
Tudo é muito rápido! A cena acontece, literalmente, em um piscar de olhos. Eu a vejo em um momento e a perco no outro. O exato instante em que ouço o som metálico da lâmina deixar a bainha, a forma dela se transforma em um borrão violeta luminoso que se expande, atinge e explode no solo. Como uma lança empalando seu alvo!
— UAU! Que. Foi. Isso?!!
E tudo que sobra depois disso é um buraco... não, uma cratera, aberta no meio da bola de cabeças, os milhares de olhos esbugalhados e descrentes com o que acaba de acontecer.
— E-e-ela é... forte demais... GyaaaAAAAAH!! — O bicho explode, se transformando em uma labareda violeta gigante e desaparece completamente sem nem deixar cinzas segundos depois.
Enquanto que no solo, a samurai está de joelhos em uma pose foda. Ouço o CLICK da espada sendo embainhada enquanto as chamas se apagam, seu cabelo voltando a ser negro. E até aquele momento, minha boca ainda está aberta — espero que não tenha entrado mosca.
— Ca-ra-lho!
Ela se levanta e observa o céu em preto e branco, procurando por algo. Eu mal consigo me manter em pé, tentando me recuperar do que acabei de ver. E agora que tudo está, aparentemente, calmo, posso olhar para ela direito.
É a mesma menina que vi me encarando na arvore mais cedo!
— E então? Acabou?
O mundo ainda está quase paralisado, apesar de não ter mais monstros à vista. Deve significar que ainda não escapamos do perigo.
— Não. Ainda tem algo que precisamos fazer.