Reino da Verdade Brasileira

Autor(a): Lucas Baldi


Volume 1

Capítulo 17: Vivo

Uma sombra se projetou através da névoa. Rezei para que fosse um aliado. Não dava para lutar de novo. 

A projeção humana virou-se para a esquerda e para a direita antes de cravar seu olhar — pelo que pude sentir — em mim. 

Todos os pelos do meu corpo se arrepiaram naquele momento, pois aquele “alguém” ficou maior, ganhando enormes chifres. 

Fiquei em dúvida se eu realmente queria que a névoa sumisse. 

Levantei o braço em um sinal de paz e andei vagarosamente na direção de onde havia ouvido o golfo, e a névoa começou a desaparecer. 

Com os joelhos tremendo, eu fechei os olhos. 

Merda

Até que o nevoeiro passou… e eu fiquei sozinho, de pé entre os corpos. 

O que foi aquilo? 

O golfo surgiu de novo e me afastou da minha linha de raciocínio. 

— Kai…? — disse o soldado, de bruços, antes de vomitar sangue. Seu corpo parecia trucidado, suas tripas escorriam devagar pelas laterais. Seu olhar se encheu de esperança ao me ver. 

— Você está vivo! Eu vou te levar para-

— Não… eu não — sussurrou ele. — Ela sobreviveu… Por-por favor, a salve. 

Virei para olhar Amis, com seu maxilar enterrado no chão. Seus olhos clamavam por ajuda. Agachei-me para falar com o soldado, perguntar-lhe o nome, mas ele já havia partido. 

O gosto amargo alcançou a minha língua, enquanto eu tentava aceitar a impossibilidade de salvá-lo. Os corpos dos magos queimados ainda estavam aqui, lembravam, martelavam na minha consciência, que eu não pude salvar todos com a minha vitória. 

Eu acabara de os conhecer, mas, por algum motivo, eu senti o pesar. Talvez essas mortes significassem mais do que números para alguém. Meus pensamentos ficaram confusos, essa dor toda me desnorteava. 

— Eu… eu já volto. 

Peguei com cuidado o corpo da garota e pus em meu ombro. Por um momento, o mundo escureceu, mas eu resisti ao cambalear. 

Eu só precisava aguentar até um médico. 

Iniciei minha caminhada em passos lentos, com o desejo de me jogar contra o chão cada vez mais forte. Até que uma mulher veio de outra direção. 

Ela carregava dois corpos em cada ombro com uma aura verde sobre as mãos. Ela de repente parou. O cabelo ruivo possuía algumas mechas cobertas de sangue e sua roupa estava parcialmente rasgada, mas ela parecia bem. 

Uma sensação de alívio correu pelo meu corpo, enquanto lágrimas davam duro para escapar. Foi difícil segurar o sorriso e o choro quando aqueles calmos olhos esverdeados fixaram-se em mim e encheram-se de preocupação. 

 — Lumi!? O que aconteceu? Vem aqui agora. Meu Deus, olha você. Está chorando? Eu te carrego, precisamos ir para um médico logo. Quem é essa com você? Eu levo vocês dois. 

— Mãe… — falei, enquanto me aproximava. — Desculpa te preocupar assim. 

— Depois você me conta o que aconteceu, filho. Eu quero que você vá agora para um médico.

— Eu posso te acompanhar, mas me deixe levar Amis. Por favor. 

Durante o caminho, ela me olhava de três a quatro vezes por minuto para verificar se eu estava bem. Sinceramente eu fiquei muito aliviado com isso. Me certifiquei de manter o ombro firme para mantê-la no meu ombro, mas a fadiga queria a todo custo me derrubar.

— O que aconteceu aqui? Cadê o meu pai e a Emy?

— A cidade de Karin foi atacada e… eu acredito que você já saiba. Parece que as criaturas conseguiram entrar de alguma forma, mas pela quantidade não faz sentido. Eu e seu pai levamos a Emy para o castelo e resolvemos ajudar. Eles estão bem, tá bom? Eu fiquei morta de preocupação com você

— Desculpa… Descobri o ataque no meio da missão. 

Chegamos no portão principal, onde havia uma tropa de magos, cavaleiros, curandeiros, pessoas feridas e um capitão. Nenhum estava com a armadura intacta e limpa, e alguns nem mesmo conseguiam ficar de pé, mas eles estavam ali ajudando as pessoas. 

Amice pôs os corpos que carregava nas macas oferecidas e ordenou que eu fosse junto. Entreguei Amis na mão da médica que me curara e, antes de conseguir sentar, senti o meu corpo cair. 

Mas fui segurado e posto junto com os outros. 

Acabou. 

Magia de cura, pomadas que ardiam e diversas outras coisas foram aplicadas em mim. Ardia bastante, mas não era nada se comparado com a luta contra o goblin.

Um passo pesado veio da floresta.

Até que a energia ambiente escureceu e esfriou, e as árvores balançaram. O frio na barriga me atingiu com força e piorou quando percebi que todos foram afetados. Feições de horror e alerta apareceram. 

Os guerreiros ficaram a postos e sacaram suas armas, mas a tremedeira e a falta de firmeza na linha de frente me fez perceber quem havia chegado. 

Os magos conjuraram seus feitiços em uma variedade linda de cores, com diferentes padrões elementares, mas recuaram um passo quando as árvores começaram a ceder. 

Muitos caíram de joelhos por serem incapazes de resistir à pressão. O grupo, que antes fora o único apoio que tínhamos, correu para a cidade gritando enquanto o poder sombrio caía sobre eles. 

Ele estava aqui. 

Eu dependia deles. Mas se ele estava aqui… Uma lágrimas escorreu quando diversos pensamentos do meu grupo ter sido morto de maneiras horríveis me alcançaram. 

Amice tomou a frente e liberou o seu poder, que confrontou a aura vinda dentre as árvores. A criatura cinza de apenas um olho apareceu analisando cada um. 

Seus dentes afiados sorriram quando seu olhar me encontrou, e o desconforto me atingiu com uma pressão que me faria falhar se eu quisesse correr. 

Amice grunhiu e rangeu os dentes quando liberou mais poder. A criatura acompanhou. O chão entre eles começou a rachar, as árvores aos poucos foram destruídas e todos aqui ficaram impressionados. 

De repente tudo parou, e a enorme sensação de morte sumiu. Sussurros confusos ecoaram, minha mãe continuou na minha frente e ninguém que caiu ficou de pé. 

Acreditei que todos tínhamos ficado boquiabertos mesmo antes de acontecer. Se era impossível — ou pelo menos acreditávamos — não era mais. 

Talvez o que fosse acontecer mudasse a forma que pensávamos sobre certos monstros, ou nos traria verdades que o mundo escolheu ocultar. 

Independente do que fosse, a notícia iria ecoar longe. 

— Vivo… — A voz grossa e demoníaca deixou em choque cada um aqui, enquanto ele se retirava. 

Engoli seco, pois, enquanto todos tentavam se recompor e pensavam se deviam comemorar ou não, eu sabia que estava falando de mim. Minha mãe percebeu minha angústia, porém deixei a ideia de trocar palavras com ela se afastar.



-------------



— Volta aqui, garoto! Você precisa de pelo menos uns vinte dias de repouso! — ouvi Thyri resmungar enquanto eu saía do quarto hospitalar. 

— Eu preciso achar o meu grupo! Prometo voltar logo!

— Mais que pirralho teimoso!

Pessoas correndo para todo lado e pacientes em macas eram constantes. Thyri disse que meu braço direito foi destruído pelos cacos de vidro e que eu podia movê-lo brevemente… já o esquerdo foi “estourado”. 

A dor no peito voltava a me agoniar conforme eu lutava contra a vontade de finalmente ceder à exaustão.  Meus olhos pesavam, mas a imagem daquela criatura surgia em minha mente e me mantinha acordado. 

De repente senti o sangue latejar na minha cabeça e uma sensação horrível me atingir. Me apoiei sobre a parede, quando ouvi um moço alto de cabelos grisalhos falar comigo.

— …bem? Precisa de algo?

— Estou… Quero saber onde fica o time de coleta. 

— Senhor, você devia voltar para a sua ca-

— Por favor!

Apoiando-me na parede, eu o segui até a sala em que o meu grupo estava. O médico fora chamado por um dos enfermeiros. A porta parecia imensa, como um desafio o qual eu fosse incapaz de vencer. 

Tentei segurar a maçaneta, mas estremeci. 

Por quê? 

Girei-a lentamente, as batidas do meu coração ficavam cada vez mais fortes. A primeira que vi foi Cacele, sentada em uma cadeira. Alguns cortes podiam ser vistos entre as faixas, porém o que me atingiu no estômago como uma flecha foi o seu olhar sem vida e desesperançoso. 

Kaled surgiu em seguida, seu corpo possuía muitos hematomas e seu olho fora coberto. Ele me encarou com o mesmo olhar que Cacele, até que eu vi meu líder deitado na cama… mortalmente ferido. 

— É culpa sua, seu inútil! Não sabemos se ele vai voltar a acordar, porque ele tentou proteger um merda que não sabe nem usar magia! Cai fora daqui! — Meu mundo se silenciou e sua voz chegou abafada aos meus ouvidos. — Você não devia ter entrado para o time. Ele acreditou em você e isso aconteceu! Vai embora! 

Olhei para Cacele, que continuou em silêncio, mas seu olhar de horror me disse que ela concordava com o parceiro.  



------------------



Andando pela rua, eu senti minhas bochechas molhadas. As pessoas trabalhavam para reconstruir o que foi perdido, outros choraram ao verem os corpos dos entes queridos.

Simplesmente travei e desisti de andar. 

Era muita informação, meu cérebro se recusava a processar seja lá o que fosse, e meu corpo protestava a todo momento. Eu estava confuso, triste, alegre por vencer… 

Saí das muralhas, coloquei as costas contra uma árvore e sentei. As lágrimas desciam e eu desconhecia o seu valor, não sabia e nem queria reagir. 

O cemitério apareceu na minha visão sem foco, me mostrando as diferentes maneiras e motivos pelo qual as pessoas o frequentavam. Se eu fosse mais forte…

Eu era um inútil. Kaled tinha razão. Funguei o nariz, minhas lágrimas já haviam molhado parte da minha roupa. Eu fui o culpado daquilo ter acontecido com Cirlan. 

Que droga. 

Corri pelas árvores, fui o mais afundo na floresta possível. As dores pouco importavam. Minhas mãos estavam tremendo.

Meus joelhos vacilaram e eu fui ao chão. 

Um soco. Dois. Três. 

Bati na esperança que todos esses sentimentos fossem embora. Gritei. 

Eu deveria ter morrido lá. 

Aproximei minha cabeça no lago e vi o meu reflexo. 

Quando eu ia me deixar afundar, uma pessoa aterrissou do meu lado, trazendo um estrondo no chão. Direcionei meu olhar vazio para ele. 

— É perigoso sair com o que houve — falou o homem vestido com uma armadura real.

— Minha vida não importa — falei, casualmente. 

— Sabe, acima de eliminar aquele minotauro… meu propósito era salvar a sua vida — Ele… O cavaleiro real que me salvou. — Eu sei como é falhar e perder alguém. Posso dizer que você já era muito forte desde de quando tentou salvar aquele menino. 

— Eu fui incapaz. Pessoas morreram por minha causa! Eu sou um fraco inútil. Se eu ao menos fosse forte como você… Mas como eu poderia? — resmunguei.

— Eu tive um objetivo para chegar aqui, mas como qualquer outro ser vivo eu falhei. Ninguém é inabalável, ninguém é invencível. Você tem pessoas que o amam e que acreditam em você, isso vale mais do que qualquer poder que você possa alcançar. 

— Eu tenho… — falei, minha voz falhando. 

O Guarda Real andou rumo a cidade, até que ele virou o rosto e eu esperei sua resposta. 

— A dor é inevitável, Lumi Kai, mas é passageira. Eu espero seu crescimento, sei que vamos nos encontrar de novo — Sem dizer mais nenhuma palavra, ele voou. 

Encarei meu reflexo na água. Eu sabia que pensar agora seria inefetivo, então larguei o meu corpo na grama e senti o vento bater. As árvores cobriam o céu com o balançar, mas as folhas rosadas e vermelhas decoravam o ambiente. 

Uma ideia de repente veio até mim e mesmo abalado com tudo que queria tentar. 

Ao menos isso podia me manter longe de tudo.

Fechei os olhos e estiquei o meu braço para cima, procurei qualquer mínima energia emitida dentro e fora de mim. 

Meus ouvidos foram preenchidos pelo uivar do vento e alguns chiados de animais. Até que eu senti a água alcançar os meus pés e pulei de susto. Voltando à minha concentração, fiquei em pose de meditação. 

Inspirei calmamente o ar e finalmente perguntei:

— Você pode me ouvir?



Comentários