Reino da Verdade Brasileira

Autor(a): Lucas Baldi


Volume 1

Capítulo 13: Conto de um Kai

Era verdade, de fato. 

O que ocupou a maior parte do jornal foi a imagem do grande Rei Enguerrand nos portões de Karin. A cidade estava segura em um nível imensurável se comparado a antes, me senti realmente seguro durante esses últimos dias; os quais precisei manter o foco nos treinos contra os bonecos de madeira. 

Também foi escrito que o décimo rei pretendia permanecer na cidade e iria fechar algum tipo de acordo com a guilda para motivar os "usuários de magia talentosos". 

Me perguntei como ficaria seu enorme reino sem sua presença. Eu jamais pisara lá, porém é um reino; com certeza poderia se defender de qualquer ameaça sem seu rei presente.

— Nossa, é verdade mesmo. Isso é bom, filho, talvez você tenha a chance de conhecer um rei — disse Kanro. — Se ele visse suas habilidades com os bonecos de madeira…

— Eu estou treinando a seis dias, pai. Eles me amassam de soco.

— Você está muito melhor que antes, pode ter certeza. Vencer dos bonecos de madeira de Gerould não é para qualquer um — falou Ataz, logo então mordeu um pedaço do seu pão recheado com manteiga e presunto. 

— Esse é o ponto, meu querido guarda de cabelos longos, eu só apanho. 

— Ainda assim, uma boa melhora. Acredito que você esteja raspando no nível Sombra.

— Qual é a ordem disso, afinal? — perguntei, Gerould ficou de pé e estendeu o seu cajado, criando pequenas esferas de magia de várias cores. 

— Você precisa saber disso, pequeno Kai, se quiser elevar os seus conhecimentos — Esse apelido me era pouco bacana, mas seu tom era pura zombaria. — Sombra, Penumbra, Fulgor, Dilúculo, Aurora, Real e Caos. Os Reinos adotaram essa medida desde a época do devaneio, sendo a Sombra a mais fraca e o Caos o mais forte. Cada um desses níveis tem seu significado e sua maneira de conquistar. 

Talvez eu devesse anotar… 

Peguei rapidamente um pedaço de papel e um lápis e pedi para ele repetir. Tomei um gole do meu chá, enquanto observava Emy comendo sua salada de frutas. Meu pai ajudava minha mãe a cozinhar e os dois guardas debatiam sobre o feitiço de manipulação. 

Sinceramente, eu estou farto desses bonecos malditos. 

— Espera, se eu estou beirando Sombra, como eu estou classificado? Nulo entra nessa medida? 

— Bem, acredito que você seja a única pessoa no mundo nessa categoria…

Senti minha sobrancelha tremer enquanto eles abafavam uma risada. 

— Pai, você comentou sobre a espada do vovô. Pode me mostrar? 

Ele gesticulou com a cabeça em concordância e se dirigiu até a porta do porão. Eu me preparei para segui-lo, mas Emy me pediu para preparar um sanduíche. 

Preguiçosa. 

Depois de fazer um para ela e mais uma para mim, eu fui até ele. 

A porta do porão rangeu ao ser aberta, e eu recuei um passo ao ver o local pouco iluminado e duvidoso. Ainda tinha receio por conta de tudo que aconteceu. 

Mas, cara… dez míseras moedas de bronze, ainda ficava chocado com isso. 

O porão estava bem vazio, havia uma arma ou outra espalhada e três móveis cobertos por um pano cinza e grosso — além de aranhas vermelhas que me trouxeram um arrepio. 

Assim como o resto da casa, tudo aqui era de madeira polida das Árvores de Pandora, e pequenas velas abastecidas de mana iluminavam pobremente o ambiente. 

A dor surgiu em meu peito assim que desci as escadas, e a sensação do tempo desacelerar retornou por um instante, mas a voz de Kanro me trouxe de volta. 

— Seu avô disse que achou em uma masmorra anormal e que, surpreendentemente, essa espada interage com magia — Meu pai se aproximou do único móvel descoberto, o qual tinha uma caixa negra com símbolos dourados de dragão e… uma ave?

— Por que tem um dragão e um passarinho na caixa?

— É a lendária fênix, Lumi. Não sei ao certo o porquê, mesmo após ter viajado e pesquisado tanto, é como se a espada tivesse sido criada pela própria masmorra sem interrupção humana. Divindade? Um feitiço antigo de um ser que habitou a terra? Seria difícil tentar responder. O avaliador deu um preço bem picante para essa coisinha, dada sua interação anormal com magia. 

Ele abriu a caixa e eu pude ver uma katana com o pomo escuro. Sua lâmina possuía uma leve camada de aura branca, a área do punhal tinha uma espécie de dragão e sua bainha, constantemente, liberava cargas de energia. 

Isso era incrível, como uma arma podia fazer isso? 

Me aproximei para vê-la, porém esse foi o meu erro. A dor que atingiu o meu peito foi pior, era como se estivesse apertando o meu coração até que ele desistisse de bater. 

Contive um gemido de dor, mordi o lábio inferior até sentir o gosto de sangue. Sabendo que, se eu permanecesse ali, eu iria cair de joelhos de chorar, me afastei com um passo rápido e dolorido e disfarcei enquanto meu pai a admirava. 

Que merda. 

Meu corpo inteiro estava tremendo, essa sensação de agonia foi igual a minha quase morte com aquele maldito cara de capuz. Olhei para aquela linda arma, com o receio de chegar perto. 

Para mim podia ser fatal. Estar a três metros me fez querer chorar, então se eu a segurasse… 

Que a resposta ficasse longe do meu conhecimento. Demorei a perceber que eu havia perfurado minha mão com as unhas e rapidamente limpei o sangue na borda da minha blusa. 

— Como você ficou tão forte?

— Bem, no início de tudo, eu ingressei em um grupo pequeno. Me lembro que o objetivo era explorar uma dungeon que tinha se transformado em uma alrofy, por algum motivo, meu time queria, ansiava, entender o porquê desse fenômeno — Ele virou para mim, um sorriso estava estampado no seu rosto. — Quer saber das aventuras do seu velho, é? 

— Sabe que quero — falei, permiti que a felicidade atingisse a minha voz. 

A dor maldita voltou a latejar e agonizar o meu corpo, dando um enfoque agora na cicatriz que o psicopata fez, mas dei o meu melhor para fingir a inexistência dela. 

— Eu era adolescente na época, queria aventura como qualquer outro. A minha magia estava começando a se manifestar e eu estava com dificuldade em entendê-la, mas eu fui. Admito que o começo me assustou muito, meu poder… feitiço surgia sozinho e gastava a minha mana inteira. Se misturasse isso com aqueles esqueletos e os sons de vozes bizarros, virava um terror. Imagine só, você, incapaz de se defender, no meio de tanto perigo?

Arqueei uma sobrancelha após o último comentário. Meu pai se desculpou e afofou o meu cabelo. Com um olhar mais sério, ele continuou. 

— Percebi, durante as lutas, que a minha mana desacelerava tudo, então eu comecei a usar a velocidade como meu ponto forte. Mas ao mesmo tempo eu sentia medo, ela exigia muito do meu corpo. Os estrondos, o sangue, os rugidos, eu podia ouvir todos eles lentamente. É engraçado tentar explicar isso — Abri a boca para fazer uma pergunta, mas ponderei. — Sabe… O início foi difícil, mas eu tive um mestre incrível. Ele só falava bastante de um ser meio sorridente-

— Amor! Você esqueceu de tirar a roupa da corda! 

— Oh, não. Estou indo! — Meu pai me lançou um olhar assustado e subiu as escadas apressadamente. 

Minha cabeça passou a latejar quando me aproximei, meu peito me fez cair de joelhos, e um zumbido tomou conta dos meus ouvidos. 

Cada passo mais próximo era como sentir o meu corpo duas vezes mais pesado, eu podia jurar que o ambiente ao meu redor escureceu se minha visão estivesse cem por cento. 

A sensação agonizante me fez ouvir claramente um som raro, que eu tinha ouvido apenas uma vez… 

O som da magia. 

Caí de bunda e quando me toquei estava longe da espada. Cheguei a conclusão que eu era um cara estranho, desde que eu decidi treinar só desgraça aconteceu. 



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Eu odiava correr, e era pior quando tinha um boneco de madeira mais veloz que um cavalo me humilhando em uma corrida. Eu já estava arrastando os pés no chão, minha blusa estava encharcada de suor e meu pulmão doía. 

Então como diabos meu adversário inorgânico conseguia deixar o chão de terra rachado? Essa mana não acaba não, Gerould?

Estávamos na trilha principal do milharal, a corrida se dava por dar uma volta completa, desde o início da casa até o final dos vastos campos. 

Ele já estava lá na frente ao lado do Gerould e do Ataz. Eles querem ensinar para o boneco ou para mim?

Fiz o resto do caminho em passos lentos, e uma maneira mais eficiente de correr surgiu em meus pensamentos desprovidos de magia; se bem que tirar esses pesos… 

Que presentão, João.

— Que bom que chegou! Acredito que tenha ficado claro que o boneco venceu — disse Gerould, enquanto eu lançava um olhar de ódio para cima do meu adversário que fazia a dancinha. 

— Eu guiarei a parte dois do treino de hoje — disse Ataz. — Vai ser simples, irei colocar um objeto no topo daquela árvore ali. 

— Não — recusei, enquanto tremia só de pensar em subir onde seu dedo mirava. 

— Vamos, você sabe que precisa tentar. 

Uma energia azul cobriu as suas pernas e com um único pulo ele alcançou o topo. Ele se agarrou lá como um macaco e esperou a árvore terminar de sacudir. 

Acenando para mim e sorrindo, ele colocou uma faixa branca de pano no último galho. 

Gerould disse que seria uma competição. Sendo assim, peguei a adaga que deixei no chão e gesticulei que ia usá-la. Ataz saltou e caiu de pé, causando um estrondo no chão. 

Que força nas pernas. 

— Vamos lá, jovem. Vão!

Disparei em corrida e saltei, sem nem esperar o boneco de posicionar. 

Prendi a minha arma no tronco e comecei a subir, mas o ser inorgânico cobriu as pernas com aura branca e pulou para o galho superior ao meu. 

Com raiva, grunhi e me impulsionei para cima até agarrar a perna dele, e uma outra mão segurou a minha. 

— Dois, Gerould!? — Virei meu olhar para reclamar, mas vi que meu pai estava assistindo de braços cruzados com um olhar curioso e atencioso ao mesmo tempo.

Talvez fosse a hora de eu finalmente decidir, de parar de deixar o pé atrás. 

Se eu não desse tudo de mim agora, nesse treino, como eu poderia caçar um goblin? 

Eu estava cansado de só apanhar, me deixei levar pela desculpa de ser incapaz de acessar algo que todos têm. 

Uma limitação patética dessa estava mesmo me limitando? Ellie, Bruno, João, Aria… 

Todos se esforçaram para serem os melhores dentre os melhores, deram tudo para superarem suas próprias limitações com magia. Eu precisava agir, avançar. 

Qualquer coisa. 

Eu jamais alcançaria essa meta se usasse como desculpa toda vez o fato…

— De não ter essa porra! — gritei, e puxei com ódio a perna de madeira em minha mão.

Minha perna também foi puxada. Nós três caímos no tronco inferior, ficamos pendurados enquanto lutávamos contra o escorregar. Os dois rapidamente subiram e correram para o tronco principal. 

Senti o meu corpo aquecer, uma risada dominar os meus lábios. Fiquei de pé. Os dois pararam, se encararam e viraram para mim. Com a guarda levantada, deixei uma risada escapar. 

— Sabe… Eu realmente queria descer o cacete em vocês. 

Nos aproximamos ao mesmo tempo. Lancei dois socos no boneco 1, George, enquanto defendia um chute do boneco 2, Alf, erguendo a minha perna. 

Mantive meu olhar afiado quando eles me cercaram com um movimento circular, mas continuei na defensiva. 

Cada soco, chute, cotovelada e joelhada, eram bloqueados por mim. 

Me agachei e, abrindo minhas pernas ao máximo e apoiando as duas mãos no chão, bandei os dois. Fiquei de pé e acertei o joelho no que deveria ser o queixo do George. Alf ficou com um soco no pescoço. 

George acertou a boca do meu estômago com um soco embutido de magia, e Alf chutou com o peito do pé a parte traseira do meu joelho. 

Ajoelhado, vários golpes penetraram na minha defesa. 

Eu perdi a conta de quantos diretos levei no maxilar e quantos chutes levei nas costelas. Eu conseguia bloquear um ou outro dos dois ao mesmo tempo.

Até que ele surgiu. 

O cara de capuz tomou a forma e o lugar do boneco de madeira. Aquele sorriso maligno e seus olhos vermelhos fizeram-me tremer e afrouxar as minhas defesas. 

Só podia ser brincadeira. 

Levei um golpe na orelha e o mundo se calou, deixando apenas um zumbido tomar conta. Me deparei com o meu corpo na direção do chão, minha visão começou a escurecer. 

Mas uma voz me fez acordar de novo. 

— Lumi! — Um grito longo e gutural de uma criança. 

Agarrei o grosso tronco da árvore e girei de volta para a plataforma de luta. Entrei no mesmo jogo de antes, eles eram muito rápidos e era impossível achar uma brecha para atacar. 

Táticas, pense

A cada quatro socos do George e cinco chutes do Alf, os dois se moviam o mínimo para a esquerda, mantendo o círculo. 

Essa seria minha chance. 

Puxei todo o ar que pude e vi o braço de George passar rente ao meu nariz, porém ele acertou o próprio amigo, e eu saí correndo. 

Saltei de galho em galho para o topo, a adrenalina estava duas vezes aumentada naquele momento. O som dos galhos balançando me deixou tenso, se eles me alcançassem, já era. 

Escalei, e o suor me atrapalhava cada vez mais. 

Foi quando vi a faixa branca que ondulava por causa dos fortes ventos. 

Ignorei o balançar do tronco principal e pulei para o galho mais próximo do ápice. 

Me recusei a olhar para baixo, porém uma lágrima escorreu do meu olho quando toquei a bandeira e um som de algo quebrando surgiu. Sentindo minhas mãos formigarem, meu galho quebrou. 

Eu caí e gritei.  

Uma espécie de nuvem voou rapidamente até o ponto onde eu ia me espatifar. Aterrissar nela foi como cair em uma cama hiper fofa, o pior foi vê-la ser manchada por um vermelho escuro. 

Eu fiquei confortável — ou em choque — e ignorarei o latejar e a ardência. Porém, quando minha alma voltou ao meu corpo, eu me levantei. 

— Nunca mais eu vou subir nessa merda, Gerould e Ataz! Vocês me pagam! Eu pensei que fosse morrer! — Depois de alguns minutos reclamando com eles, e meu pai rindo, minha mãe veio correndo me ver junto de minha irmã.  

Aparentemente, todos estavam me observando. 



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Devorei a sopa velozmente. 

Estávamos sentados na mesa de jantar. Gerould, Ataz, Emy, eu, meu pai e minha mãe. Enquanto eu banhava, eles prepararam uma refeição rica em legumes e carnes variadas. 

Colocamos algumas velas para iluminar a mesa e dois orbes de luz para a sala. 

Todos conversávamos essa noite. 

Durante o jantar, me peguei diversas vezes perdido no meu mundo, relembrando cada segundo do treino de hoje e cada ponto que a Ellie me fez perceber. 

Como será que ela está?

— …irmã surgiu, você conseguiu evitar a queda e ainda lutou com todo vigor. Isso foi impressionante, filho. — disse Kanro, com um belo sorriso no rosto.

Emy gritou? Eu jurava que tinha sido aquela voz.

— Eu ajudei. Hehehe. Mas foi maldade com o Lumi. Ele já é estranho, imagine se batesse o rosto no chão?

— O jovem ainda tem muito a praticar, porém os resultados de hoje são de se comemorar —  falou o velho guarda.

— De acordo — Ataz disse ao pegar uma taça vazia da mesa.

— Vamos brindar! — Meu pai ergueu o seu copo cheio de vinho, e todos fizeram o mesmo. 

— Lumi… Tem uma carta pra você. — Amice disse, bebendo calmamente seu copo com suco de laranja.

— De quem é?

— Ela veio aberta, então… Você tem uma missão em grupo daqui a três dias.



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Lendo o livro de Luir em minha cama, senti meus olhos pesarem. Bom saber que sairia com eles de novo, assim eu mostraria os resultados do meu treino. 

Ainda me acanhava por causa do cara de capuz, seria errado negar que eu tinha pavor dele. Treino, Ellie, missão, a voz… 

Eu só queria descansar. 

O baque do livro contra o chão me acordou. Levantei arrastando os pés no chão, peguei o livro e o guardei. 

Sim, eu iria dormir. 

Me joguei contra a cama e vislumbrei o mundo dos sonhos bem rápido. 

Quando tudo se apagou, quando minha consciência estava longe, eu a ouvi. Eu ouvi a voz, a mesma que me salvara de Grannus, dizer:

— Cuidado… 

E por algum motivo, no vazio em fim, eu tive a impressão que ela estava se despedindo. Se distanciando…

Me abandonando.



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