Rei dos Melhores Brasileira

Autor(a): Eme


Volume 1

Capítulo 32: PROMESSA

As gotas de suor manchavam o tapete, porém o treinamento havia apenas começado. Gabrio concentrava a chama azul e vermelha, uma em cada mão e, ao mesmo tempo, era obrigado a desviar dos objetos que flutuavam pela sala, a sua missão era aprender a manter sua combustão sem perder a noção do ataque inimigo.

A ruiva estava sentada no sofá movendo os vasos, quadros e mesas com os fios fantasmas. No entanto, sua atenção nele era pouca, se concentrava intensamente na tigela de sopa que sustentava no colo.

Gabrio esquivava e, por consequência, uma das chamas da sua mão apagava, quando não conseguia, era brutalmente acertado e derrubado no chão.

Ele caiu pela décima vez.

— Vamos! Para de moleza! — mandou ela, após colocar mais uma colherada de sopa na boca. — Vou aumentar a velocidade.

— Ei! Isso já tá rápido demais! — reclamou ele.

— Então, seja ainda mais rápido! — rebateu Bel.

Aos resmungos, Gabrio reiniciou e caiu de novo, dois segundos depois, foi para chão mais uma vez.

Bel raspou o fundo da tigela, praticamente virando-a de cabeça para baixo e puxando até a última gota com a colher. Em seguida, olhou para a direção de Gunner.

O atirador estava ao lado usando um avental branco, seus olhos marejados de lágrimas encaravam os objetos quebrados pelo chão. Além disso, vigiava o caldeirão de sopa borbulhante em cima do fogão que a ruiva fez questão de arrastar até a sala.

 — Rum! Rum! — Bel deu o sinal com a garganta.

— Mas um pouco, senhora? — falou Gunner, deixando claro o deboche no tom.

— Claro, meu nobre garçom — respondeu ela, do mesmo modo que ele.  

Gunner abastecia a tigela da ruiva com um sorriso largo, mas por dentro suprimia a vontade de tacar a concha na cabeça dela e afogá-la naquele caldeirão.

Desgraçada... — murmurou Gunner, ao terminar de servi-la.

Ela não deu importância, pelo contrário, sua atitude a divertia. Durante a partida, a reação de Gunner foi satisfatória ao seu teste.

“Diante da morte que as pessoas mostram sua verdadeira face!”, pensou ela, ao relembrar da maior lição que recebeu daquela competição.

O atirador era alguém que não oferecia risco algum para eles.

No momento que fingiu querer matá-lo, esperava que fizesse uma negociação com informações falsas, tentasse um combate usando Gabrio de refém ou, até mesmo, uma manobra suja de fuga. Contudo, Gunner só esperou pela morte, sabendo que viria a qualquer momento, por algum motivo, já havia desistido há muito tempo de lutar.

— Ai! — gritou Gabrio, após outro vaso quebrar na sua cabeça.

— Vamos dar uma pausa — informou Bel.

— Ah! Claro! Depois que destruiu tudo! — retrucou Gunner. Afinal, todos os objetos que usou para treiná-lo estavam quebrados.

Bel fez silêncio, sem sentir a menor culpa. Logo, estendeu a tigela na direção dele.

Gunner tremia de raiva enquanto colocava mais e mais sopa para a ruiva.

***

A noite chegou depois de um dia exaustivo. Finalmente, para alegria dos dois jogadores, Bel decidiu dormir.

Gabrio varria o tapete juntando os cacos do que sobrou da sala do atirador. Não muito longe, Gunner lavava os pratos e panelas que usou para fazer litros de sopa. Assim, após acabarem suas tarefas, os dois se lançaram no sofá, deixando o corpo afundar no estofado.

— Deixa em ver se entendi... — começou Gabrio. — O fato dela me bater até quase me matar era pra ativar essa tal Ligação Astral?

Bel havia explicado sua intenção durante a partida, mas havia uma certa parte que o deixava com dúvidas.

— Isso mesmo — afirmou Gunner, abrindo um dos seus portais circulares.

O atirador enfiou a mão e retirou a garrafa com uma espécie de bebida alcoólica envelhecida.

 — O que é isso? — perguntou Gabrio, curioso.

— Já ouviu falar de rum? — respondeu ele.

Gunner encheu dois copos com o líquido e estendeu na sua direção.

— Ah! Eu passo... não bebo nada com álcool — relatou Gabrio, mas pegou o copo, sentindo o aroma peculiar da bebida.

— Você que sabe.

O atirador bebeu em um gole.

— E se espada não tivesse acionado a ligação? — Gabrio retomou o assunto. — O que teria acontecido?

— Bem... nesse caso... não estaria aqui, tendo a oportunidade de provar o melhor rum do mundo! — respondeu, erguendo a garrafa.

Por curiosidade, Gabrio provou a bebida e o álcool desceu queimando sua garganta, quase se engasgou e saiu cuspindo o líquido no tapete. Por fim, deixou-a de lado.

O atirador encheu o copo novamente.

“Quer dizer que foi mesmo um experimento.” Aquilo foi exatamente como Gabrio imaginou, mais uma vez, Bel testou a sorte dele.

— O que você fazia antes de entrar nesse jogo? — perguntou Gunner.

Ele pensou por um momento, mas não viu motivos para não contar a verdade.

— Digamos que... era um cientista.

Gunner o encarou de cima a baixo, foi algo surpreendente.

— Como assim?! Cientistas não são os reis dos nerds?! — rebateu ele, como se fosse inaceitável. — Deve saber tudo de jogos, tecnologia, quadrinhos e coisas como Guerra nas Estrelas, não é?!

 Gabrio deu uma leve risada antes de responder aquilo.

— Nem todos são assim, alguns dos cientistas são como eu, que dedicam todo seu tempo, cada segundo para tentar provar uma teoria — falava risonho, lembrando de quantas vezes foi estereotipado daquele jeito —, sem deixam sobrar espaço para qualquer outra coisa na vida como amor, lazer, diversão... nada disso, somente a busca incessante por uma verdade que talvez nem exista.

O atirador levou a mão ao queixo coçando a barbicha.

— Se não tinha tempo... Como diabos veio parar no RDM? — perguntou ele.

— Sorte ou Azar... — Gabrio previu que essa pergunta viria, já estava com a resposta ensaiada. — Tô decidindo ainda.

— Por Júpiter! De todos os cientistas descolados desse planeta... — Gunner o encarou com um sorriso cínico. — Inventei de tomar uma com o mais sem sal deles.

Gabrio baixou a cabeça, aos risos, também ouviu demais aquela frase.

— E você?! O que fazia antes disso aqui? — perguntou ele, retornando a pergunta.

— O que acha? Chuta aí! — falou Gunner, cruzando os braços e erguendo o queixo, montando uma expressão digna da capa de revista.

 — Sei lá... lutador de box — sugeriu Gabrio, indicando os seus braços musculosos.

— Ah! Não! Isso aqui foi o Reborn que me deu — informou ele, tensionando os músculos, mas pela expressão confusa do novato, percebeu não ser uma explicação satisfatória e continuou. — O Reborn modifica o corpo dos jogadores, dependendo muito do jogo matriz.

— Tá de sacanagem! Esse jogo também faz isso? — retrucou ele, abismado.

— Os braços fortes ou exageradamente altos, mulheres com curvas bem graciosas, alguns com a cor dos olhos sobrenaturais, muita coisa estranha, já deve ter se deparado com algum tipo esquisito por aí...

“Aqueles dois albinos, o careca que parecia um sorvete e o intenso cabelo vermelho de Bel.” Gabrio resgatava na memória coisas que se encaixavam no padrão de esquisito.

— Mas o que você era? — perguntou Gabrio, as opções eram tantas.

— Um jogador de videogame profissional, o que a sociedade chama de pro-player! — revelou Gunner, com um sorriso orgulhoso. — Sabe o que é um streaming de jogo, né?!

— Claro! Streaming são as plataformas de conteúdos que cresceram com o uso da internet... Caramba! Eu não vivia numa caverna! — disparou Gabrio, sentindo-se insultado.

— Por sinal! Tava muito famoso nisso! — continuou Gunner. — No meu jogo matriz, eu era o melhor do mundo! Reunia milhares de pessoas pra me ver jogar!

Gabrio observava a animação do atirador, se ele amava ciência, o rapaz ao seu lado tinha o mesmo sentimento por jogos.

— Uau! Largou tudo isso pelo RDM? — perguntou ele, parecia uma decisão difícil.

Gunner suspirou, sua alegria foi parar em zero com aquela pergunta.

— Sim — respondeu, entorpecido. — Pode me chamar de idiota.

— Jamais! Se tivesse uma chance de viver meus sonhos... — Gabrio o fitou complacente. — Não pensaria duas vezes em tornar tudo realidade.

O atirador deus algumas risadas, bem escandalosas, não esperava nada tão poético.

— Por ser um jogador profissional... pensei que ia me dar bem aqui — disse Gunner, aquilo era quase uma confissão. — Mas só ser um bom jogador não basta.

Gabrio apenas escutava, sempre foi um bom ouvinte.

— Noob... dentro dessa competição tem uns caras bizarros! — deixava transparecer seus temores, talvez um efeito do álcool. — Jogadores que faziam coisas ridículas no mundo comum, mas aqui... não... aqui são soberanos! Tão assustadores que fazem pessoas como nós ter pesadelos.

— Tipo uma certa ruiva?! — sugeriu Gabrio, sua única opção no momento.

— Sim, mas você não sabe da missa à metade! — disse ele, falando demais.

“Que competição insana... devem ser monstros”, pensou Gabrio, só de imaginar outros tão fortes quanto a ruiva.

— Noob... tinha família antes de entrar? — perguntou Gunner.

“Esse cara... Bem na ferida.” Gabrio evitava pensar nisso.

— Não, todos se foram — respondeu rápido. — E você?

— Uma grande! — respondia em um tom animado — Era o terceiro filho de seis irmãos.

Gabrio escutava sua frase cheia de emoção, encoberta por sua voz grave.

— A fama e o público, isso não faz falta — disse Gunner, com um sorriso frágil no rosto. — Mas deles... não consigo nem descrever. Quando esse jogo terminar sonho em voltar pra eles.

O novato queria fazer uma pergunta, mas tinha receio. Contudo, não foi preciso, Gunner respondeu.

— Quando aceitei entrar na partida o sistema deletou tudo, eles sumiram completamente.

— Todos eles?! Toda sua família?! — perguntou, abismado.

— Apagar as memórias dos fãs e dos amigos é fácil — relatava cada vez mais imerso nos pensamentos —, mas família é diferente, se ela continuasse existindo, o jogador jamais teria coragem de se dedicar completamente a isso aqui! Imagina quantas vezes você tentaria fazê-los lembrar de você... ou do tempo que dedicaria pra protegê-los. Então...

— O sistema acha melhor apagá-los, se livrar delas, de todas as pessoas que você ama, pra que o jogador mantenha o foco em vencer a competição — Bel completou a frase do atirador.

Gabrio levantou a cabeça surpreso, a ruiva estava escorada na soleira da porta, não tinham ideia de quanto tempo estava ali.

— E qual é o prêmio do vencedor? — perguntou ele, na direção dela.

— Ninguém sabe, mas... o que acha que o Rei dos Melhores te daria?

— Qualquer coisa — deduziu Gabrio.

O novato encarou profundamente os olhos sérios de Gunner, não precisava de muito para saber o que ele queria.

— Quando eu vencer essa competição... trago sua família de volta! — prometeu Gabrio.

Gunner ficou boquiaberto, em seguida, caiu nas gargalhadas e, do outro lado, Bel também se debruçava em risos.

— Ah! Qual é?! — protestou Gabrio, emburrado.

— Por Jah! Ele tem não ideia do que tá falando, né?! — disparou Gunner, na direção da ruiva.

Nah! Completamente sem noção! Mas achei fofo! — declarou ela, limpando as lágrimas do riso.

— Pois bem... — Gunner levantou, esticando a mão. — Não vou te deixar esquecer dessa promessa!

Apesar de contrariado, Gabrio segurou seu aperto, no fundo, suas palavras foram sinceras e o atirador sabia disso.

— Vocês não vão se beijar, né? — perguntou Bel, destruindo o clima

Ambos lançaram um olhar de fuzilamento.

 — Nada contra! — disse ela, imitando um tom meigo. — E que talvez vocês queiram privacidade e tudo mais...

Os olhos dela seguiram para as mãos deles, que estavam segurando uma à outra. No automático, os dois largaram rapidamente, com a expressão envergonhada.

— Por que não volta a dormir? — implicou Gunner. — A conversa aqui é só de rapazes.

Bel apontou a janela, os raios de sol começavam a atravessar a cortina.

Amanheceu e eles nem perceberam.

— Nossa... a conversa foi boa — relatou ela, maliciosamente.

Ela se divertia, chorando de rir.

***

O restante da manhã foi complementado por uma série de deboches até a ruiva se cansar de fazer piada.

— Tá pronto?! — disse ela, aproximando-se do novato com o celular na mão.

— E pra onde vamos? — indagou o Noob.

— Marque a ilha, lá te conto o resto — mandou.

O atirador se apoiava com o ombro na parede.

— Boa sorte, crianças — disse ele, com seu tom grave.

— Não vem com a gente? — perguntou o novato, confuso.

— Vocês são legais, mas eu sou um caubói solitário — falava sacando a arma, girando-a no dedo e a colocando de volta na cintura —, além disso, quero distância absoluta de vocês dois.

O sorriso cínico dele deixava implícito a brincadeira nas suas últimas palavras.

— Nos encontramos por aí — falou ele, com leve aceno de despedida.

Como de costume, o flash surgiu transportando-os, ou deveria ser, porém somente o Noob sumiu, Scarlet continuava ali parada.

— Esqueceu algo? Se for sopa... você acabou tudo! — brincou Gunner, mas já imaginava o motivo dela ter deixado o novato ir primeiro.

— Esse lugar aqui não é mais seguro para você — relatou ela. — Eles têm...

— A Oráculo, né? — Gunner adiantou o fim da frase dela.

Scarlet assentiu.

— Não se preocupe, vou incendiar tudo assim que saírem.

Gunner apontou para uma porta.

Scarlet sabia pelas misturas de cheiros que se tratava de uma dispensa de mantimentos, rapidamente, fungou o ar tentando identificar algo novo entre eles e sentiu suavemente o odor de combustível.

— Providenciei isso na primeira noite de vocês aqui — falava ao perceber que notou a gasolina com seu olfato apurado. — Como consegue fugir dela?

— A minha presença some quando entro em uma partida e depois vou para um lugar que me neutraliza. Uma Zona Oculta, um dos locais que o Remake apagou do mapa comum, só existindo para os jogadores.

Scarlet lançou a informação despreocupada.

— Não demore, dependendo da distância que ela estiver de alguém, pode encontrá-la em alguns dias — informou séria.

Gunner absorveu suas palavras boquiaberto, aquilo era uma informação valiosa, algo que poderia ser essencial para sua sobrevivência.

— Pode deixar!

— Ah! Como última aula... faça de tudo para sobreviver ao RDM e rever sua família! — ordenou ela.

— Prometo que vou, mestra! — falou, prestando continência.

— Em algum momento vamos ter que parar de fugir — disse, ao clicar na tela. — Certo?! Won Gunner, o Arsenal Divino.

O flash levou a ruiva e o atirador ficou estático.

“Então ela sempre soube”, pensou ele, assombrado ao escutá-la, há tanto tempo não ouvia aquele título.

— Se cuida... Rainha Demônio — pronunciou ele, na solidão da sala.

Gunner espalhou a gasolina por toda a residência e, depois de uma leve hesitação, colocou fogo no lugar que lhe serviu por muito tempo.

Pela perca de um segundo, só precisava de pouco tempo e tudo teria dado certo.

— Olá! Tudo bem, Won?!

A voz de criança veio das suas costas, trazendo um calafrio, fazendo até seus ossos tremerem.

O atirador sacou a arma e disparou, a sua vida dependia de não errar aquele tiro, porém, o pro-player uma vez conhecido por ser o atirador mais rápido do mundo, infelizmente, se atrasou.

Naquele dia, quebrou uma promessa.



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